Por Rogério Coelho
Lembro-me bem de um primeiro livro de literatura infantil, que me veio às mãos por serendipidade (termo usado por Ana Maria Gonçalves, em Um defeito de cor, para designar “algo” que nos acontece “por acaso” e passa a ser aquilo que estávamos buscando sem saber) e me fez retomar um pouco de minha própria realidade periférica pelo olhar de uma criança. O livro era Amanhecer Esmeralda (Objetiva, 2005), do Ferréz, que redesenhava minha infância entre os barracos e vielas da periferia do Barreiro, em Belo Horizonte, nas páginas do livro. Em preto e branco, as imagens compõem o volume até a metade do miolo. Depois disso, nos faz sonhar com as cores que ali podemos imprimir em nossa realidade.
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Ilustração de Bruna Lubambo, no livro 'De passinho em passinho', escrito por Otávio Júnior
A estória da personagem Manhã, menina negra, marcada pelas mazelas do racismo estrutural, ainda inconsciente por ela, encontra-se com histórias de milhões de crianças negras brasileiras que precisam, cotidianamente, superar a subalternidade a que são vitimadas para se afirmarem como protagonistas de suas próprias existências. Manhã encontra na escola um pequeno gesto que a faz transformar sua realidade e enxergar o seu próprio corpo. E a partir daí, colore sua comunidade inteira. Um exemplo mínimo de conquista da percepção de sua subjetividade, desejo, afeto, esperança.
Amanhecer Esmeralda me veio na fase adulta. Fosse eu criança com ele nas mãos, imagino que teria melhores condições de colorir diferente, também, o meu mundo...
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O poder de inclusão corporal pela leitura
A leitura é instrumento de poder desde que a escrita se fez presente no mundo. É fundamental que se entenda a relação de inclusão social a partir da leitura, principalmente para pessoas pobres e alijadas de um capital cultural. No caso do livro De passinho em passinho (Companhia das Letrinhas, 2021), do escritor carioca Otávio Júnior, premiado pelo Jabuti, é de “inclusão corporal” que devemos falar. O livro traz uma poesia dançada, fazendo fluir em letras o que a realidade mostra na evidência dos corpos presentes e dançantes nas comunidades periféricas do Rio de Janeiro, do Brasil.
O que se vê nesse movimento de uma escrita atenta ao que se passa nas ruas é fazer crer na relevância do pertencimento. O pertencimento de que o público infantil/juvenil das periferias já experimentam em seus espaços de convivência, pelo trânsito acelerado de seus corpos que dançam à batida do funk; que se lançam ao ar pela capoeira no ritmo da mandinga; que se manifestejam nos mais variados movimentos culturais existentes no país.
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Porém, esses mesmos corpos estão cotidianamente cerceados pelo “olhar sanguinário do vigia”, como diria os Racionais MCs. São corpos perseguidos pela polícia, estranhos à classe média, subjugados, subalternizados, multilados, desumanizados aos olhos de uma justiça higienizadora e racista. Basta olhar os índices de violência sobre os corpos pretos de jovens e crianças no cenário brasileiro.
A inclusão desses corpos na literatura, como bem faz a escritora americana bell hooks em seu livro Minha dança tem História (Boitatá, 2019), atualiza-nos de um passinho a mais em direção à redução dessas tragédias. Uma vez que meninos e meninas negras periféricas têm a possibilidade de se ver numa literatura destinada a elas, relevando seus corpos como protagonistas da história, acredito que será possível pensar que terão melhores condições de se afirmarem como sujeitos.
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Literatura marginal e os signos das periferias
A literatura, nesse momento, tem um papel crucial de ressignificar os espaços de poder, promovendo um distanciamento (e aproximação) que faz ver o jogo híbrido em que se está inserido. Assim, poesia, corpo, dança, rua, comunidade sugerem múltiplas formas de ler e de serem lidos e lidas em seus mundos. E essa leitura amplia a dimensão simbólica da cultura periférica em suas bases essenciais à vida dessas comunidades.
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A literatura marginal/periférica de agora, feita por escritoras e escritores oriundos das periferias, já assume oralidade, musicalidade e um corpus de signos latentes em nossas periferias e favelas. Poetas marginais dos saraus e Slams (competições de poesia falada) reinventam a cidade, transfiguram a palavra em suas performances, na autorrepresentação de suas identidades. Todo esse movimento está a serviço de uma literatura expandida e em expansão. Está tanto para a Geografia, quanto para as Letras; tanto para a Antropologia, quanto para as Artes, e no campo da Interartes. A educação multi-transdisciplinar a que essa literatura se propõe é sem limite, assim como os corpos devem ser.
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Rogério Coelho é poeta, articulador do Coletivoz Sarau de Periferia desde 2008 e Slammaster do Slam Clube da Luta e SLAM MG, desde 2014, de Belo Horizonte. Graduado em Letras pela PUC-MINAS, é mestre em Artes pela EBA-UFMG, com a pesquisa em performance da poesia oral Sarau Coletivoz e Slam Clube da luta. É doutorando pela FALE-UFMG, com a pesquisa nas “Afrografias” de performances negras nos Slams. É dramaturgo de teatro desde 2006 e foi dramaturgo e vice-diretor do CICALT - Centro Interescolar de Cultura, Arte, Linguagens e Tecnologias, no programa Valores de Minas, onde escreveu dramaturgias para os espetáculos multidisciplinares de encerramento de 2011 a 2019.
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