´O dia em que meu prédio deu no pé´, a estreia de Estevão Azevedo na literatura infantil

14/07/2021

O dia em que o meu prédio deu no pé, recém-lançado pela Companhia das Letrinhas, é o primeiro livro infantil do autor Estevão Azevedo, que começou sua carreira literária com livros para o público adulto. Com ilustrações de Rômolo D’Hipólito, o livro nasceu a partir de um comentário da filha mais velha de Estevão, Iolanda, então com 3 anos, numa noite logo antes de se entregar de vez ao sono: "Papai, os prédios fugiram do Brasil", disse a pequena.

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Os prédios se cansam e vão embora do Brasil, em livro infantil de Estevão Azevedo

Um relato sobre o tempo em que as construções
resolveram simplesmente ir embora do Brasil. Leia +.

“Eu achei essa imagem dos prédios indo embora muito poderosa e simbólica, e fiquei com ela na cabeça. Até que me dei conta de que os prédios estavam realmente indo embora: o prédio ocupado no Largo do Paissandu, em São Paulo, o prédio construído pela milícia em Muzema, no Rio de Janeiro, o Museu Nacional etc”, revela o autor.

O texto do livro se dirige à neta do narrador, que escreve à menina uma carta, contando sobre o tempo em que as construções começaram a ir embora do Brasil. Em vez de as pessoas saírem dos prédios, são os prédios que decidem sair das pessoas - aos poucos, um aqui e outro ali, rumo a outras paragens, como os nossos países vizinhos.

Os casos foram se avolumando, sem receber muita atenção, até o momento em que uma casa de condomínio de luxo também deu no pé: aí as pessoas começaram de fato a se preocupar. Não demorou e logo até prédios famosos, como o Museu Nacional e a Igreja do Bonfim, resolveram ir embora. Por fim, todos sem teto, os brasileiros se veem obrigados a buscar novas formas de vida, mais simples, nos campos e nas florestas do país.

Dá uma olhada no booktrailer:

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Estevão recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015 por seu romance Tempo de espalhar pedras (Record, 2018), quando ainda era publicado pela Cosac&Naify. Também é autor de Nunca o nome do menino (Record, 2016), de uma coletânea de contos e um livro de crítica literária. Mas chegou à literatura infantil para ficar: “Dessa brincadeira tão séria não quero mais sair, não.”

Na entrevista abaixo, ele fala sobre as diversas camadas de sentido de O dia em que meu prédio deu no pé, sobre as inversões da nossa “civilização” e sobre como nossos prédios devem estar cansados de todos nós, depois de quase um ano e meio de pandemia.

 

Blog da Letrinhas: O dia em que meu prédio deu no pé aborda uma multiplicidade de temas. Como surgiu a ideia para o livro?

Estevão Azevedo: A ideia veio de uma fonte muito rica e de que eu nunca tinha me servido. Certa noite, eu colocava minha filha mais velha, Iolanda, então com cerca de três anos, para dormir. No momento que precede o sono, talvez para evitá-lo, Iolanda tagarelava. Já com as ideias um tanto embaralhadas, no momento em que os sonhos começam a querer tomar conta, ela me disse: "Papai, os prédios fugiram do Brasil". Eu perguntei a razão e ela me disse apenas, antes de a conversa tomar um outro rumo: "Por causa da explosão". Eu achei essa imagem dos prédios indo embora muito poderosa e simbólica, e fiquei com ela na cabeça. Até que me dei conta de que os prédios estavam realmente indo embora: o prédio ocupado no Largo do Paissandu, em São Paulo, o prédio construído pela milícia em Muzema, no Rio de Janeiro, o Museu Nacional etc. 

Os prédios fogem do Brasil em livro infantil

O primeiro prédio a dar no pé, na ilustração de Rômolo D’Hipólito

O livro toca muitas questões civilizatórias fundamentais do nosso país, como a infraestrutura precária, o descaso com o patrimônio, as tragédias que sempre assolam primeiro as periferias, o colapso ambiental, a urgência de se pensar em formas de vida que não sejam predatórias. Você pode comentar um pouco sobre como o formato do livro infantil pareceu o mais acertado para costurar todos esses temas em uma história?

Além de a imagem ter surgido da imaginação de uma criança, o livro infantil me pareceu um terreno fértil porque um prédio que vai embora, se pensamos nele com perninhas, chacoalhando as vigas, caminhando pela estrada, compõe uma cena muito divertida. Meu lado criança ficaria contente de ver uma construção gigante dando seus pulinhos - desde que isso não significasse dor ou sofrimento para ninguém, claro. Ou seja, pensei que, apesar de ser uma alegoria do momento triste do Brasil, uma história dessa poderia ter muita graça para os pequenos leitores. E me pareceu também um bom desafio escrever um livro que tivesse camadas, que apresentasse uma complexidade diferente de acordo com a maturidade de cada leitor. O texto para crianças também permite a liberdade de não se explicar. A criança pensa num prédio indo embora e não questiona como aquilo é possível, se a estrutura de concreto e aço suportaria, como pode ninguém ter morrido...

 

Há ainda outras múltiplas questões que também estão ligadas a essas anteriores e que aparecem “invertidas” no livro: em vez de mais prédios aparecendo do nada todos os dias, as construções vão embora de repente; a especulação imobiliária passa a ser sobre qual vai ser o próximo a partir; em vez de receber mal os imigrantes dos países vizinhos, passamos exportar edificações, que são bem recebidas por lá. Você sente que nós já vivemos um momento todo invertido, para o qual você deu forma com o livro?

No livro, há uma espécie de inversão, sim: para termos a chance de tentar um outro modelo de civilização, mais justo, mais humano, mais diverso, é como se precisássemos voltar atrás, ir até lá no início para recomeçar de outra maneira. É como se o "progresso" se desse conta de que "opa, dei errado, melhor eu dar no pé". Em vez de as pessoas fugirem para Miami ou Lisboa, como tem acontecido, são alguns supostos símbolos do "progresso" que fogem das pessoas, pois é das pessoas que tem nascido a barbárie que temos enfrentado.

Em livro infantil, Estevão Azevedos realata a fuga dos prédios do Brasil,

A Igreja do Bonfim também se vai, depois de ter suas escadarias lavadas

Com a pandemia, houve um movimento intenso de pessoas que se mudaram das grandes cidades para o interior, mimetizando de certa forma o que acontece no livro. Você escreveu durante esse período ou foi uma coincidência?

Eu escrevi o livro antes da pandemia, em 2018 e 2019. Não poderia imaginar que teríamos mesmo que considerar seriamente a hipótese de viver melhor e com menos mais perto da natureza, longe das aglomerações. 

 

Ainda sobre a pandemia, vivemos falando que estamos cansados de ficar em casa e que queremos voltar a sair. Você acha que, depois desse período, nossas casas também se cansaram de nós? Se o prédio onde você mora resolvesse sair andando, que destino você acha que ele escolheria?

Eu acho que minha casa se cansou de mim, sim. Eu percebo pelo modo como as portas às vezes batem, meio irritadas. Elas não querem ficar mal comigo, afinal gostam de mim e é só excesso de convivência, por isso disfarçam, tentam me fazer crer que foi o vento que entrou pela janela aberta. Meu prédio, se pudesse escolher, talvez quisesse um pouco mais de espaço. No bairro de São Paulo onde moro, ele fica se acotovelando com outros prédios, vive numa eterna sombra provocada pelos irmãos maiores. Ele gostaria de pegar um pouco de sol, poder enxergar o horizonte. Talvez ele fosse para alguma serra, a da Mantiqueira, da Bocaína, do Mar.

 Em seu primeiro livro infantil, Estevão Azevedo narra o momento em que os prédios se vão do nosso país

Num país sem construções, uma nova maneira de viver se faz obrigatória

Esse é o seu primeiro livro para crianças. Como foi essa experiência? Quais as diferenças entre escrever para o público infantil e o adulto, na sua visão?

Escrever para crianças é prazeroso e difícil porque você não pode trapacear recorrendo a referências, citações, supostas complexidades. Com um número mínimo de elementos, de preferência simples, você tem de dizer o máximo. E também o texto para crianças é amigo das repetições, das rimas, das brincadeiras com as palavras, algo de que os textos adultos foram erroneamente privados, via de regra.

 

Você pensa em escrever outros livros infantis? Tem algum projeto futuro?

Eu vou lançar um outro infantil muito em breve, chamado Pronto, foguete, vamos!, pela editora FTD, e tenho ainda três originais prontos e algumas ideias na cabeça, que certamente desenvolverei. Dessa brincadeira tão séria não quero mais sair, não.

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