Por Alexandre Coimbra Amaral
Olá, este é meu primeiro texto neste blog da Companhia das Letrinhas, e agradeço com uma sonora gargalhada a esta possibilidade de conversar com você, que se encanta com a literatura infantil como a suavidade sempre bem-vinda à vida de todas as idades humanas. Eu sou psicólogo, terapeuta familiar, de casais e de grupos, e sempre disponível para ser e acolher das gargalhadas às lágrimas, das ousadias aos medos, dos silêncios de todo volume aos berros que não se escutam. Estou falando com você hoje, depois de mais de vinte e cinco anos conversando com pessoas sobre suas dores de alma. E, de fato, sempre chegaram muito mais mulheres que homens a qualquer lugar que eu tivesse habitado como profissional.
LEIA MAIS: Os meninos precisam falar sobre o que sentem
Um pai que se permite apreciar as miudezas do olhar do filho em Eu grande, você pequenininho, de Lilli L'Arronge. Leia +.
Trazê-los para o debate com suas perguntas mais dolorosas sempre foi e sempre será um dilema, porque estamos longe de erradicarmos a cultura patriarcal que faz isso acontecer de forma tão sistemática. Desta forma, sempre me fiz algumas perguntas, que divido agora com você. Como me comunicar melhor com os homens que chegam até mim, mas que de alguma maneira não conseguem nomear seus sentimentos? Como apoiá-los para que se sintam em um espaço terapêutico protegido para aprender a colocar palavra no que sentem?
O grande desafio sempre será a vergonha. Ser homem é estar sempre defensivo, dizendo que não, imagina, eu não tenho problemas, eu sou forte e dou conta de tudo. Somos treinados culturalmente para, ao crescermos, excluir as vivências que nos aproximam do saber sobre nós, sobre o que sentimos e como queremos falar do que sentimos. O desenvolvimento do homem tradicional vai exilando a intimidade com o sentir e suas externalizações.
Todo trabalho terapêutico com homens é, portanto, um resgate essencialista, um retorno ao que jamais deveria ter deixado de ser. E esse tipo de convocatória pode acontecer numa terapia individual, de casal, de grupo, num trabalho num hospital, na Cracolândia ou em empresas (que faço muito também, com cenas extraordinárias de homens engravatados abrindo seus corações e trazendo-os para dar as mãos a suas mentes racionais).
LEIA MAIS: Como o pai é representado na literatura infantil?
Eu beijo, você beijinho: um livro encantador sobre um pai presente na vida do filho. Leia +.
Para vencer tantas travas históricas e vívidas em todas as facetas de uma identidade masculina, decidi começar a usar a literatura infantil. E, desde então, os resultados têm sido de maravilhosos a inacreditáveis. Eu sei que você concorda comigo, inclusive por me ler neste espaço tão belo que é o Blog da Companhia das Letrinhas: é uma grande fake news acreditar que a boa literatura infantil é feita para crianças.
Ela é um instrumento de profunda conexão com o que um adulto tem de mais belo, fundante e visceral. Ela acontece enquanto lemos para nossos filhos, mas também quando lemos para nós. Há quanto tempo você não pega um livro infantil para ler para você? Eu sempre faço esta experiência comigo, e tenho surpresas acachapantes. Tomo um livro supostamente escrito para meus filhos, e faço daqueles minutos um silêncio que dialoga com partes de mim que recebem pouco espaço entre nós, os adultos deste mundo estranho.
Quando faço isso com um homem no consultório, acontece algo lindíssimo: ele se encanta sem se envergonhar, ele se permite achar legal uma história que não é para a idade dele. Isto pode ser muito revolucionário: acreditar que a vida possa acontecer de mãos dadas com a ludicidade, com a imaginação, com o sentimento se fazendo parte inequívoca do existir. Trazer isso aos poucos para uma vida masculina, como um túnel do tempo que repara uma ausência tão sentida, é mais do que um abraço de urso. Ele é um pó de pirlimpimpim que reedita mistérios, um feitiço que devolve a vulnerabilidade a quem só se via com poderes, geralmente autoritários.
LEIA MAIS: Um ano de pandemia: como está a saúde emocional das crianças?
O pai entra na brincadeira do filho em Eu grande, você pequenininho. Leia +.
A literatura infantil tem me ajudado nesse processo belíssimo de trazer homens de volta a si. Há quatro anos e meio eu medio um grupo terapêutico gratuito, virtual desde o início da pandemia, em que homens podem falar sobretudo de seus medos e tristezas, de seus lutos e saudades, de suas falhas e ausências. Ali, não precisamos ser impávidos colossos. Ali podemos simplesmente ser. Ao ler livros infantis, sinto o barulho das lágrimas evitadas acontecendo inclusive através das telas com microfones silenciados. Vejo acontecer sorrisos que não podiam se expressar diante de cenas simples, e testemunho um fragmento de experiência inesquecível acontecer em tanta gente ao mesmo tempo.
Ler literatura infantil para homens é como fazer uma contracultura: um ato que gera estranhamento, talvez aversão, mas que jamais captura a indiferença em qualquer uma ou um de nós. Tudo bem, eu acolho os estranhamentos a qualquer ação que não esteja posta como parte da cultura vigente. O importante é fazer acontecer cenas que devolvam a nós, homens, a parte que somos ensinados a deixar de lado. Porque sim, somos humanos, e não, não somos apenas este tipo de presença parcial que o mundo nos conclama a ser: produtivistas, silenciadores de sentimentos, distanciados da empatia com o outro. Podemos ser mais, muito mais.
O amor e a rotina de pai e filho em Eu grande, você pequenininho. Leia +.
E um livro infantil praticamente desenha este caminho de volta, tomando-nos pelas mãos perdidas sobre qual caminho trilhar para reencontrarmo-nos. Eu só tenho a agradecer a cada autora e autor de literatura infantil, que traz um pedaço da vida humana para habitar desenhos e palavras, que voam pelo mundo afora fazendo a revolução mais importante que há de haver entre nós: o sentir livre, o viver com autenticidade e a coerência entre o que pensamos, o que sentimos, o que fazemos e o que somos.
Alexandre Coimbra Amaral é psicólogo e escritor, autor de Cartas de um terapeuta para seus momentos de crise (Paidós, 2020).
***
Leia mais: