Por Guilherme Semionato
Existe um pequeno rei em cada um de nós. Às vezes nos maravilhamos com a força que temos, às vezes nos enfurecemos com nossa impotência. E quantas vezes nos encantamos de tal maneira com o mundo ao nosso redor que fica até parecendo que é um reino que governamos...
Um reizinho testa seu poder diante da
força da natureza e se rende a ela. Leia +.
No extraordinário O rei e o mar, Heinz Janisch e Wolf Erlbruch nos presenteiam com um rei — atarracado, quase afundado sob o peso da coroa — que passeia por seu reino manifestando sua autoridade, tentando controlar tudo que encontra pelo caminho. Que lhe obedeçam, que o adorem! Pois bem: em cada uma das 21 histórias curtíssimas deste livro, o rei participa de um embate que tenta vencer — e quase nunca consegue. Ao espantar uma abelha que visita uma flor, esta ferroa seu nariz dizendo que, se ele é o rei, ela é a rainha. Em outro duelo, ele late ordens para um cachorro que não sai do lugar. E o rei não fracassa apenas com animais... As nuvens lhe ensinam algo sobre efemeridade, uma rede de pesca fala de sua ambição descabida. O pobre rei não controla muita coisa, nem seu corpo colabora. Luta contra o cansaço, ordena que suas pálpebras permaneçam abertas, mas de que adianta? Ele cai no sono mesmo assim...
Este rei não é um déspota execrável, é preciso dizer. Ele é orgulhoso e prepotente, mas está sempre aberto à contemplação e a uma nova perspectiva de ver as coisas. Ele age por capricho, mas sabe escutar — e às vezes sabe até ceder e perder. Há várias pistas da afabilidade desse rei. Quando um gato tomando banho de sol (seu verdadeiro rei) mal lhe dirige o olhar, o reizinho resolve se aquecer também, juntando-se ao gato como súdito do sol. Em outra história, o rei ordena à chuva que pare de cair, para não enferrujar sua coroa, mas a chuva lhe responde que ele e a coroa vão enferrujar de todo jeito, e se recusa a obedecê-lo. O rei, então, resolve tomar um banho de chuva. Pouco a pouco — um banho de sol aqui, um banho de chuva acolá —, o protagonista de O rei e o mar vai amolecendo.
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De fato, há algo admirável nele: sua curiosidade. O rei anda maravilhado pelo reino. Ele acredita que aquele mundo é dele, mas, antes disso, acredita no mundo, mesmo que este mundo seja bem cético em relação a ele e ao poder que conserva (uma de suas derrotas mais infames é se confrontar com um espírito que não crê que reis existam). Outro traço marcante nele é sua perspicácia. O rei não está cego para sua aparente desimportância, para o fato de que o reino inteiro não vê sua grandeza e insiste em rebaixá-lo. O rei percebe que seu poder tem limites, que o mundo é diverso e que grande parte dele opera sob suas próprias regras. Assim, suas ilusões de grandeza caem por terra, mesmo que o livro lhe dê algumas (poucas) vitórias. Em uma delas, o rei mostra para a noite que, ao acender um fósforo, ele cria luz em plena escuridão, sendo, portanto, o rei do dia e da noite. E um dos momentos mais sublimes de O rei e o mar traz a vitória mais bonita: o rei pede um cobertor ao céu, que o presenteia com um manto de neve a cobrir o reino. Em vez de se sentir validado e vaidoso, o rei contempla, agradecido, a beleza que lhe foi proporcionada.
Aos poucos o rei descobre que seu lugar no mundo tem pouco a ver com sua coroa. Na história em que ele se digladia consigo próprio (e com seu cansaço), em determinado momento o rei cochila e a coroa até escorrega da cabeça, mas ele rapidamente a apanha antes de cair no chão, numa última investida para preservar sua autoridade. Mas, na última história — a mais bela —, ele, por livre e espontânea vontade, deposita sua coroa na areia e pula no mar, todo serelepe.
É justamente aí que o rei se mostra respeitoso diante da natureza, e não apenas em sua faceta mais grandiosa (o mar, o céu, o sol), que ele aprende a respeitar na marra ao longo do livro. Agora o rei vê o todo e, vendo o todo, enxerga o que é pequeno também, a natureza vestida com roupas mais modestas e delicadas: um caranguejo que rasteja sobre seus pés, uma borboleta que lhe roça o nariz. Não são só as coisas monumentais que são assombrosas, as pequenas também são. Nessa última história, diante de tudo aquilo que ele aprendeu ao longo do seu tortuoso caminho rumo à humildade, o rei chega à conclusão de que é um pedacinho de uma grande teia e agora está pronto para fazer parte dela. O rei não quer mais governar o mundo que o cerca, mas sim desfrutá-lo. Sem coroa. Rindo à toa.
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Do tamanho da criança, do nosso tamanho
Um dos trunfos de O rei e o mar é esse protagonista pequetito — feito de colagens, giz de cera, o olhar muitíssimo expressivo (repare só nos olhos do rei em cada história) —, bem do tamanho de uma criança. Os caprichos desse rei vêm muito da criança; sua alma infantil é mais pronunciada do que sua arrogância e autoritarismo. Um trompete que não emite um som sequer se o rei não o coloca na boca, um lápis falante que não conta histórias por si só... Esse nonsense, tão querido pelo leitor mirim, é um traço adorável de O rei e o mar, que mistura fantasia e filosofia, e convida o leitor criança a olhar com mais atenção para a vida ao seu redor. Está aí o potencial deste livro: ele pode oferecer às crianças uma excursão filosófica, uma das primeiras de suas vidas. Um trabalho conjunto da criança leitora com os pais e outros mediadores de leitura pode considerar o que está sendo contado e, então, relacionar as experiências do rei com o dia a dia da criança.
Eu não sou pai, mas imagino que paciência, criatividade, autoridade e tempo sejam imprescindíveis para mostrar às crianças que o mundo não gira em torno delas, que elas são parte de algo maior. Este livro existe, felizmente, e não consigo pensar em outro que propicie discussões mais instigantes fora dele ou entre uma história e outra. As crianças vão acompanhar alguém todo-poderoso descobrindo que não é tão todo-poderoso assim. No decorrer da obra, o rei aprende a lidar com sucessivas frustrações e vai ficando cada vez mais claro para ele que o respeito, a liberdade, a tolerância e a convivência pacífica deixam a vida muito mais bela. Tal é a riqueza deste livro que a criança pode se identificar não apenas com o rei, mas também com todas as coisas que questionam — de forma sutil ou incisiva — o poder do rei, já que ela está cercada de figuras de autoridade.
Nesse abraço gostoso a um jeito mais sereno de viver, fincado no aqui e no agora, este livro lembra um pouco O rei de quase-tudo, de Eliardo França. Mas O rei e o mar é mesmo um livro único, sem igual (ainda que pensemos no restante da obra do autor Heinz Janisch, com alguns títulos publicados no Brasil, não há nada parecido). Grande parte da literatura para crianças e jovens que traz reis como personagens trata de autoritarismo e democracia. Este é um livro diferente: é solitário e intimista, de imensa força poética. Aqui não há gente nem povo: é o rei (de nada e de ninguém), a natureza e nós. Conforme as histórias passam, O rei e o mar vai se revelando mais e mais um livro sobre nós, sobre nossa relação conosco e com o que nos cerca, convidando-nos a desbravar o mundo, a tirar a coroa e a mergulhar. Se você se olhar com honestidade neste livro-espelho, talvez encontre esse rei também — eu me encontrei.
Guilherme Semionato nasceu no Rio de Janeiro, em 1986, e escreve histórias para crianças, jovens e quem mais quiser ler. É formado em Comunicação Social pela UFRJ e tem especialização em Literatura Infantojuvenil pela UFF. Além da escrita, da pesquisa e da leitura, trabalha como tradutor e consultor editorial, trazendo livros estrangeiros para o Brasil. Em 2020, publicou seus primeiros cinco textos: Um belo dia... (Editora do Brasil), Mi padre (Editorial Edebé, México), Saving Friedenreich (SCOOP Magazine, Inglaterra), Os sinais do coração (Porto Editora, Portugal; vencedor do Prêmio Lusofonia 2018) e Nossa bicicleta (Edições SM), que recebeu o Prêmio Barco a Vapor 2020.
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