Por Guilherme Semionato
Entre as muitas acepções do verbo “nomear”, a que melhor casa com o extraordinário livro A velhinha que dava nome às coisas, da Brinque-Book, é “dar início a algo que não existia”. Quem nomeia, cria — não só aquilo que é nomeado, mas toda uma realidade ao redor.
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A tal velhinha (jamais nomeada) que nomeia as coisas já perdeu toda a sua família e seus amigos. Para enfrentar a solidão, ela arrumou uma estratégia engenhosa: dá nome e conversa apenas com seres inanimados; sua casa se chama Glória, seu carro, Beto, sua poltrona atende por Frida. Mas nem todos são nomeados: apenas os que ela sabe que vão sobreviver a ela; a cerca branca da casa, que está toda torta e combalida, não ganhou um nome, por exemplo. Mas essa velhinha não podia sair por aí e fazer novos amigos? Não. Ela acha muito arriscado trazer alguém novo para a sua vida e não quer perder mais ninguém.
Esse mundo povoado de coisas materiais, em boas ou más condições, tem muita história. É certo que, ao imbuir de personalidade seu carro, sua cama, sua casa inteira, essa velhinha sem nome montou para si um restinho de vida seguro e confortável, bem longe dos perigos de amar-e-perder alguém. Ela é ativa, altiva e independente: mantém sozinha sua casa e um belo jardim, dirige um Cadillac azul, calça botas de caubói e tem um penteado nababesco e divertido. Tudo parece funcionar a contento...
Um belo dia, aparece um vira-lata na casa dela. No dia seguinte, lá está ele de novo. A velhinha lhe oferece comida dia sim, dia também, mas não pode ficar com ele. Para isso acontecer, ela teria de nomeá-lo e isso é muito perigoso: imagina se ele morre antes dela? E é claro que não é só a opinião da velhinha que conta: Glória (a casa) não quer ficar coberta de pelo de cachorro, Belinha (a cama) não é larga o suficiente para um companheiro canino, Frida (a poltrona) não permite que filhotes se sentem nela, e Beto (o carro) deixa os animais enjoados. Só que um dia o cão não aparece... No dia seguinte, nada dele. E agora?
Quando imagino uma criança bem pequena escutando essa história, me pego pensando de que jeito ela entenderia, assim tão cedo na vida, que a velhinha não nomeou o cachorro e não o acolheu em casa para proteger seu coração. Será que, quando ela virasse a página e visse a velhinha toda triste por mais um dia ter passado sem a presença do cachorro, ela diria para si mesma: “Não adiantou nada; a velhinha ficou triste do mesmo jeito”? O conceito que sustenta a história — fechar-se num casulo e se cercar de seres inanimados e eternos como uma forma de resistir à solidão e à dor — é magnífico, uma dessas ideias de ouro pelas quais um escritor daria um braço. Sei que crianças adoram dar nomes às coisas, e talvez por isso essa velhinha seja uma figura adorável para elas, mas o motivo para ela fazer isso está naturalmente distante da criança pequena, que não tem nem experiência nem muitos anos de vida.
A genialidade deste livro, porém, está no texto tão bem construído e “clássico” — tem início, meio e fim; clímax, epílogo, personagens esféricos: tudo está aqui, tudo é perfeito. Eis uma história contada com tanta simplicidade e maestria que acho que consegue fisgar qualquer criança. Cadê o cachorro? E agora? A velhinha precisa encontrá-lo! Mas ele não tem nome! Ele vai voltar? E agora?! A criança leitora acessa, aos poucos e ao seu tempo, o lado mais melancólico do livro, mas a relação da velhinha com o cachorro (e todo o turbilhão de sentimentos decorrente disso) já enche o livro de emoção e de expectativa.
Uma história luminosa, um livro transformador
Eu já li trocentos livros ilustrados, mas nenhum, absolutamente nenhum, me deixa mais feliz que A velhinha que dava nome às coisas. Aqui, o texto faria total sentido sozinho, sem um desenho sequer. Se a junção de texto e imagem neste livro não é tão vital, como acontece em alguns dos livros ilustrados mais interessantes, esses outros livros não têm a sorte de ter este texto... De todo modo, aqui, texto e imagem trabalham em conjunto para contar a história. Basta ver como os belíssimos desenhos em aquarela antropomorfizam os objetos nomeados pela velhinha — a casa parece ter rosto, o para-choque do carro se abre num sorrisão de lanterna a lanterna...
Para quem não gosta muito de ler livros em que as personagens terminam a história do mesmo jeito que começaram (e o leitor também), A velhinha que dava nome às coisas é uma revelação. No curtíssimo espaço que o texto tem num livro ilustrado, é quase um milagre que esta obra crie um arco (narrativo e de personagem) tão poderoso. O momento em que a velhinha se refere ao cachorro como “meu cachorro”; o lampejo que ela tem quando se vê refletida numa vidraça enquanto nós, do outro lado, a vemos através do vidro (um mergulho em si mesma que arrasta o leitor junto; eis a página mais bonita do livro mais bonito); o cachorro, preso no canil, de olho grudado em Beto (o carro, lembra?) e com tanta esperança de ser resgatado; e tudo que vem depois disso: eu não conheço um livro com um desfecho potente assim, perfeito assim.
(Se não quiser saber detalhes do fim do livro, pule o parágrafo seguinte.)
Amar alguém, trazer alguém novo para a nossa vida, é dar um salto no escuro. O belíssimo final feliz está permanentemente gravado na última página, como se a velhinha sem nome e o cãozinho com nome fossem sobreviver para sempre. Não interessa mais a certeza cabal de que um perderá o outro: ou a velhinha perde o cão ou o cão perde a velhinha. É um final tão glorioso que a gente fecha o livro pensando que aquela felicidade é eterna, à prova do tempo. E é um final tão esperançoso que até fica parecendo que há mais livro depois do fim do livro: imagino essa velhinha com botas de caubói e penteado maluco fazendo novos amigos a todo instante na quitanda, na biblioteca, na rua mesmo, e adotando mais um monte de bichos até ficar na dúvida se Glória (a casa, lembra?) já não virou um zoológico de vez. Está aí, bem diante dos nossos olhos, uma vida transformada.
Ao contrário de O rei e o mar (motivo do texto anterior desta pequena série), que me parece um livro pouco lido e discutido, A velhinha que dava nome às coisas é superquerido no Brasil e não precisa de ajuda alguma para ser mais conhecido. Mas seria impossível comentar livros do catálogo e não escrever sobre este aqui, que eu toda hora pego para reler; de novo e para sempre, fico encantado com a força simbólica da história sob a calmaria e a doçura da superfície. O pequeno universo que Cynthia Rylant criou é tão profundo e bonito que eu me pergunto como é que alguém pode ir tão dentro da personagem que inventa...
E, ao pensar nisso, volto para o começo do texto, quando me referi ao verbo “nomear” como “dar início a algo que não existia”. Penso que grande parte da emoção que sinto ao ler e reler A velhinha que dava nome às coisas é ter nas mãos uma realização tão simples e perfeita, a materialização de uma ideia de ouro num livro de ouro. É sentir uma personagem tão intensamente, acompanhar seu dia a dia, sua velhice, sentir essa pessoa presa num jeito triste de viver, sentir o vento da mudança, sentir a esperança varrendo tudo. Imagina só: dá para acreditar que este livro transformador um dia não existiu? Parece impossível. Coisas da grande literatura, que completa o nosso mundo, que nos presenteia com histórias que se confundem com a nossa vida. Ler este livro é tirar a sorte grande, então pode me chamar de Sortudo.
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Além de A velhinha que dava nome às coisas, Cynthia Rylant tem outro livro publicado no Brasil: o simpático Café Van Gogh (José Olympio, 1998). Seu livro mais conhecido é Missing May, uma novela curtíssima e delicada de 1992 sobre uma menina órfã criada pelos tios mais velhos. Premiado com a Medalha Newbery, o livro não foi traduzido ao português, mas é fácil encontrá-lo: há exemplares usados na Estante Virtual e cópias escaneadas no site Open Library, além do e-book na Amazon.
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Guilherme Semionato nasceu no Rio de Janeiro, em 1986, e escreve histórias para crianças, jovens e quem mais quiser ler. É formado em Comunicação Social pela UFRJ e tem especialização em Literatura Infantojuvenil pela UFF. Em 2020, publicou seus primeiros cinco textos; dois deles no Brasil: Um belo dia... (Editora do Brasil) e Nossa bicicleta (Edições SM), que recebeu o Prêmio Barco a Vapor e o Selo Altamente Recomendável da FNLIJ.