Neste mês de maio, a Companhia das Letrinhas chega aos seus 30 anos! Uma adulta, que, ao longo da vida, já acompanhou crianças de três gerações em sua formação como leitoras. Ao longo desse tempo, a Letrinhas ajudou a consolidar uma nova fase da literatura infantil brasileira, com novos nomes de autores e ilustradores, mais qualidade e apuro gráfico, e lançamentos de clássicos internacionais.
Hoje são mais de 730 livros publicados, títulos lançados fora do Brasil (como Eleição dos bichos, que foi traduzido para 19 línguas) e temas urgentes para a infância contemporânea contemplados em seu catálogo.
Mas como era a literatura infantil brasileira quando a Companhia das Letrinhas foi criada? Como era esse mercado e como eram os livros publicados em 1992?
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Alguns dos primeiros livros livros publicados pela Letrinhas, de José Paulo Paes e Kiko Farkas
Em 1992, a Letrinhas já tinha cerca de 10 lançamentos. Por comparação, em 2021, foram 36 títulos. Entre eles estão os sucessos infantis internacionais Rã e Sapo são amigos, de Arnold Lobel, e Um dia de neve, de Ezra Jack Keats, dando continuidade a uma vocação que esteve presente desde o início: a de lançar clássicos da literatura infantil mundial.
Em seu primeiro ano, o selo trouxe ao Brasil os personagens Pedro Coelho, da britânica Beatrix Potter, o querido elefante Babar, do autor francês Jean de Brunhoff (que não está mais em catálogo), e Alice, de Lewis Carrol, recontada por Ruy Castro e ilustrada por Laurabeatriz.
As capas de O rei Babar e Alice no País das Maravilhas
Outra tradição que continua é a de trazer para o catálogo novos nomes da literatura e da ilustração para crianças, como a manauara Irena Freitas, a mineira Bruna Lubambo, a recifense Ianah Maia e o paulistano Estêvão Azevedo, que estreou na literatura infantil em 2021. Há 30 anos, José Paulo Paes fazia sua estreia como autor para o público infantil, assim como os artistas Laurabeatriz e Kiko Farkas.
De lá para cá, o mercado do livro infantil se profissionalizou, houve uma enorme conquista de espaço e de reconhecimento por parte de ilustradores como co-criadores e a qualidade da literatura para a infância produzida no Brasil se consolidou dentro e fora do país, com autores como Ana Maria Machado e Roger Mello premiados com o Hans Christian Andersen - o mais importante prêmio da categoria no mundo. E, como é possível verificar no panorama abaixo, a Companhia das Letrinhas surge em um momento de transformação e passa a contribuir com ela e inflenciá-la de maneira decisiva.
Anos 1960 e 1970: uma abertura de caminhos na literatura infantil brasileira
Paulo Verano, que é professor do curso de Editoração da ECA-USP e editor e fundador das Edições Barbatana, e Ana Crélia Dias, professora da UFRJ e integrante da FNLIJ (Fundação Nacional para o Livro Infantil e Juvenil), ressaltam que o início da década de 1990, quando surge a Companhia das Letrinhas, marca uma consolidação de movimentos que tiveram início nos anos 1960 e 1970, em plena ditadura.
De acordo com Ana Crélia, para entender como era a literatura infantil brasileira no início dos anos 1990, é preciso fazer uma volta ainda maior ao passado, para dois momentos muito importantes. “O primeiro é o momento em que Monteiro Lobato, como editor e escritor, faz a primeira grande virada da literatura infantil e juvenil. Ele escreve pensando na criança como um ser que tem potência para pensar e criar, e que, portanto, precisa de uma literatura que compreenda a complexidade desse pensamento infantil e que também seja um espaço de transformação, de construção de saberes”, contextualiza a professora.
Ela argumenta que Lobato formou uma geração de escritores que começou a produzir nos anos 1960 e 1970. Em 1968, têm início os trabalhos da FNLIJ, que viria a ser seção brasileira do órgão internacional de promoção de leitura e literatura para crianças, o IBBY (International Board on Books for Young People). É quando começa a se desenhar um corpo crítico e de pensamento sobre o que significa escrever e ler para crianças. Também se desenvolve a abordagem da literatura infantil como objeto estético, artístico.
Nesse momento, a editora Abril cria a revista Recreio, que apresenta conteúdos produzidos por nomes que se tornariam o cânone da literatura infantil nacional, como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Ziraldo, Luiz Raul Machado e João Carlos Marinho. “Existiu, na década de 1970, um projeto de criação literária que pretendia desenvolver na criança a capacidade de pensar, de criar, de ser livre. Era quase uma utopia, criada no meio de uma ditadura, de que a literatura infantil talvez desse conta de formar a criança para um mundo mais diverso”, contextualiza Ana Crélia.
Para Paulo Verano, as literaturas infantil e juvenil têm esse papel importantíssimo, em períodos autoritários, de produzir obras altamente questionadoras. E, nesse caso em especial,essas produções artísticas passaram longe da censura por tratar, teoricamente, ‘apenas de assuntos de crianças’.
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Anos 1990: a consolidação de um caminho na produção literária infantil e juvenil
Os anos 1990 marcam, então, uma nova etapa da literatura infantil no Brasil, com duas direções. De um lado, ganham força os programas de governo e as políticas públicas de leitura criados logo depois da redemocratização, o que promove uma capilarização os livros marcadamente voltados aos interesses escolares – uma característica da produção dessa época.
“No começo dos anos 1990, ao mesmo tempo em que se tem o período conturbado que levaria ao impeachment de Fernando Collor de Mello, para os livros infantojuvenis o momento é de consolidação desse mercado escolar forjado mais diretamente a partir dos anos 1970, que coincide com a universalização do ensino brasileiro. A literatura para crianças de então é marcadamente voltada aos interesses escolares. As principais editoras são escolares (Ática, Scipione, Moderna, FTD, entre outras), e o principal público é o escolar”, explica Paulo Verano.
Ao mesmo tempo, ele aponta para a abertura dos mercados brasileiros ao capital internacional, o que impulsionou as produções mais inovadoras, de mais qualidade gráfica e temas mais diversos. É nesse espaço, em que há mais condições para o estabelecimento do projeto quase utópico dos anos 1970, que nasce a Companhia das Letrinhas.
“É um período de consolidação das batalhas anteriores, que permite à literatura infantil ganhar um espaço de autonomia em relação à pedagogia. Nós já tínhamos um certo cânone, formado por esses autores que seguiam produzindo muito, como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sylvia Orthof, Eva Furnari, Bartolomeu Campos de Queiroz, Lygia Bojunga, João Carlos Marinho. Mas também começa a entrada de novos autores e ilustradores, como Ângela Lago, Marilda Castanha e tantos outros.”
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A evolução da ilustração e da qualidade gráfica
O início da década de 1990 também aponta para essas mesmas duas direções no quesito da qualidade gráfica e estética, especialmente em relação à ilustração. Numa ponta, há os livros mais escolares - mais prescritivos, utilitários e homogêneos -, que respondem a uma demanda dos documentos governamentais e permanecem, assim, mais estagnados.
“Ao mesmo tempo, porém, as ilustrações paulatinamente vão deixando de ter caráter secundário, e a importância e o reconhecimento de nossos ilustradores são cada vez maiores. A abertura do mercado editorial brasileiro, nos anos 1990, em direção à sua internacionalização, de certo modo também vai contribuir para um novo salto de qualidade da produção brasileira. Nisso, então novos players, como a Companhia das Letrinhas e a Cosac Naify, entre outros, serão fundamentais”, contextualiza o professor Paulo Verano.
Ana Crélia afirma que esse é um período de reeducação do olhar para pensar novas formas de imagem, e a literatura infantil brasileira foi muito influenciada por essa mudança. “Havia uma certa tradição, com autores que já tinham um percurso consolidado, e também uma renovação e um diálogo com novos autores que estavam antenados com essa virada para a maior qualidade visual e estética, no que diz respeito à imagem e ao acabamento.”
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A Feira de Bolonha de 1994: uma mudança de paradigma
Esse momento de valorização do aspecto visual das obras tem inclusive um episódio que entrou para o folclore da ilustração brasileira. Na esteira dessa tendência de abertura internacional apontada por Paulo Verano, o Brasil foi homenageado, em 1994, na prestigiada Feira do Livro de Bolonha, uma das mais importantes da produção voltada ao público infantil e juvenil no mundo.
Alguns artistas que estavam em início de carreira, como Graça Lima, Roger Mello, Mariana Massarani e Odilon Moraes, entre outros, participaram do evento e tiveram um choque, de certa maneira, ao constatar o enorme desnível de qualidade que havia entre a produção brasileira e a estrangeira.
Como conta Graça Lima no livro Traço e prosa (Cosac Naify, 2012), o “grupo de ilustradores brasileiros ficou meio triste. E a diferença do nível de desenho exposto pelo Brasil para o desenho dos europeus era muito grande. Algumas pessoas ficaram impactadas e falavam que a gente nunca iria chegar ao mesmo resultado. E eu e o Roger chegamos à conclusão de que o impacto do trabalho deles se devia ao respeito à própria cultura que eles têm. Começamos a ver que o que não tinha no nosso desenho era uma reflexão da cultura que a gente vivia.”
A autora chama atenção não apenas para a questão da produção gráfica e da qualidade de acabamento, mas também para um redirecionamento das temáticas, que resultaria numa maneira mais brasileira de criar, no sentido de valorizar o que nos torna únicos. Um tanto paradoxalmente, para atingir um nível de qualidade autêntico e tão bom quanto o europeu, nossos ilustradores se voltam para o Brasil: o folclore, os artistas e festas populares, a natureza, as cores, num movimento bastante similar ao que ocorreu com os artistas brasileiros do movimento modernista.
“Pode ver, é nítido, daquele ano para cá, eu, a Marilda, o Roger, todo mundo faz uma reflexão sobre a estética do trabalho, tem uma mudança grande, uma modificação na palheta de cores, nas formas, com temas mais regionais etc”, exemplifica a autora.