Aos 92 anos, a paulistana Ruth Rocha é leitora há mais de 80. Oito décadas de ler e reler, e reler outra vez. A leitura é o primeiro ofício de uma das mais importantes escritoras brasileiras, que tem mais de 200 livros infantojuvenis publicados e traduziu mais uma centena de títulos. Com a palavra, e um olhar sempre indagador sobre a realidade, ela recria o mundo que poderia ser. E é exatamente sobre a palavra, e sobre tudo o que permite seu ofício, que ela (re)lança em 2023 O livro da história da comunicação e O livro da história do livro.
Ilustração de O livro da história da comunicação, de Ruth Rocha e Otávio Roth, que acaba de ser relançado pela Companhia das Letrinhas
Repletos de fatos curiosos, os dois volumes mostram como a capacidade de se comunicar e registrar histórias foi imprescindível para chegarmos até aqui, reconstituindo a longa jornada de comunicação que teve início com gestos e símbolos, e seguiu por línguas, letras, escrita, tintas, lápis e papel até chegar ao livro.
As duas obras fazem parte da Coleção O Homem e a Comunicação, (1992), que Ruth escreveu ao lado do artista plástico e professor Otávio Roth (1952-1993), com quem também criou a versão para crianças da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lançada na Organização das Nações Unidas em Nova York, em 1988. “O Otávio era uma pessoa muito especial. Muito inteligente e um pesquisador muito cuidadoso. Era muito sociável, de maneira que não havia quem não gostasse dele”, disse Ruth Rocha, na ocasião do lançamento das novas edições. Originalmente, a coleção era composta por oito volumes, reagrupados agora em dois títulos e com nova proposta visual, por Raul Loureiro.
Para a autora, essas obras nasceram também da relação afetuosa que ela tinha com Otávio. “Assim que ele entrou na nossa família ficamos muito amigos e eu me interessei logo pelos estudos dele. Foi um passo para nossa ligação profissional. Nós tínhamos muitas ideias e muitos projetos. Começou com a ideia de contar às crianças como o papel é feito e daí por diante foram surgindo coisas ligadas ao papel”, relembra a escritora.
O sucesso de literaturas como essa, que atravessam gerações e contextos muito distintos, é um testemunho de que a humanidade continua precisando das histórias. Porém, nos 30 anos que separam os dois lançamentos de sua publicação original, muita coisa mudou em relação à linguagem e à forma de se comunicar.
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Ruth Rocha: quase meia década de dedicada à literatura infantil
Décadas dedicadas à literatura infantil
Em 50 anos dedicados a escrever para crianças, Ruth Rocha já teve seus livros traduzidos para 25 idiomas, assinou a adaptação para crianças do clássico Ilíada, de Homero, e produziu dezenas de livros premiados em parcerias afetivas que atravessaram sua carreira.
A autora tem como marca a capacidade de ler o mundo como uma criança indagadora, e daí extrair a substância de uma literatura viva, que sublima a realidade porque não se conforma a ela. Não por acaso, seus livros nascem de uma percepção que transcende uma leitura realista. Ela olha para tudo da forma que é, mas principalmente da forma como poderia ser, fazendo brotar o desejo de denúncia e da mudança, alimentada pela honestidade e a coragem que só as crianças têm. “O que seus livros revelam é o profundo respeito e o infinito amor de Ruth Rocha pela infância, isto é, pela vida em seu estado mais latente”, diz a biografia da autora, em seu site oficial.
Ruth construiu personagens cheios de defeitos quando muitos esperavam só as virtudes. Narrou a história do sapo gordo que quando vira rei se torna um governante autoritário, inventou uma metáfora infantil para a Guerra Fria com Dois idiotas sentados em um barril; denunciou um Reizinho Mandão em plena ditadura militar. A autora revolucionou a perspectiva sobre as histórias “infantis” em uma época de pedagogias moralizantes trazendo um novo olhar e sempre brincando com as palavras.
O best-seller Marcelo, marmelo, martelo, talvez o mais icônico de sua obra, foi publicado em 1976 e já teve mais de 70 edições, vendendo dezenas de milhões de exemplares. Ganhou seu mais recente spin-off em 2021: Almanaque do Marcelo e da turma da nossa rua. O original virou produção audiovisual em 2023, e é um dos livros mais lembrados daquele período de transformações históricas, políticas, sociais e culturais no país. No começo da história, Marcelo quer saber por que não se chama “martelo” ou “marmelo”, se tudo é, afinal, tão parecido. Depois, pergunta ao pai por que a mesa tem esse nome, e recebe uma explicação etimológica que não deixa a criança nada satisfeita, pois ela quer saber muito mais.
Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! (Ruth Rocha. Trecho de Marcelo, marmelo, martelo)
O germe para a curiosidade com a linguagem está presente desde sempre na obra de Ruth Rocha. Ao questionar o nome das coisas, o menino questiona o mundo como um todo. Por que as coisas são como são? Qual o sentido da existência? Acompanhados por suas criações, os leitores de Ruth – e, como não poderia deixar de ser, a própria autora – tentam entender o mundo há pelo menos 47 anos, desde quando lançou seu primeiro livro, Palavra, muitas palavras, em 1976.
A literatura, as infâncias e o Brasil nos anos 1970
Muitos dos primeiros leitores de Ruth Rocha hoje têm filhos, outros têm netos. Alguns podem ter deixado de ler, outros tantos começaram com seus livros um grato caminho sem volta, no qual as histórias mudam a História.
Ziraldo e Ruth Rocha: expoentes do mesmo período de efervescência na literatura infantil
Nos anos 1970, a chamada literatura infantil ou infantojuvenil brasileira viveu um momento de efervescência em termos de criação e publicação, impulsionado principalmente por uma valorização do texto a partir dos elementos gráficos na produção cultural para crianças e jovens. É o que explica a pesquisadora Nelly Novaes Coelho, no livro teórico Literatura: arte, conhecimento e vida, que apresenta uma narrativa cultural da expansão da literatura nesse segmento.
Nesse contexto de ruptura e transgressão, surgiram autores hoje considerados cânones do livro para as infâncias no Brasil. Além de Ruth Rocha, despontaram nomes como Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Ziraldo, cada um à sua maneira carregando as influências modernistas libertárias de Monteiro Lobato – de quem Ruth foi leitora desde a infância.
Essas novas histórias ofereceram outros pontos de vista para o retrato de infância comum até então; os personagens passaram a representar crianças não mais obedientes a normas de conduta, mas, sim, livres para romper com as expectativas do mundo adulto.
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As origens de Ruth Rocha: leitora, educadora, editora e escritora
Segunda filha de Álvaro e Esther, a Ruth criança ouviu da da mãe as primeiras narrativas de ficção. Muitas delas, historietas engraçadas de família. Mais tarde, o Vovô Ioiô apresentou a ela os contos de Grimm, Charles Perrault e Hans Christian Andersen. O avô baiano tinha o cuidado de conectar as histórias à realidade da infância brasileira. Quando chegou aos universos fantásticos de Lobato, Ruth teve certeza (ou tanta certeza quanto se pode ter uma eterna alma inquieta) de sua paixão pela escrita.
A partir daí, a adolescência foi uma gradação crescente de leituras apaixonadas: Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Machado de Assis. Já jovem adulta, Ruth entrou para a faculdade de Ciências Políticas e Sociais pela Escola de Sociologia de São Paulo, degrau fundamental de formação humanista, tão presente em sua literatura. E foi na universidade que conheceu seu companheiro, Eduardo Rocha. Veio daí o sobrenome Rocha que marcou seu nome no imaginário da literatura brasileira. Do casamento, que durou 56 anos, teve uma filha, Mariana Rocha, que inspirou as primeiras aventuras literárias da autora e até hoje influencia os rumos de sua obra pelo mundo.
Ainda na década de 70, depois de um período de mais de vinte anos como orientadora educacional, ela recebeu um convite que seria um marco em seu percurso. Sonia Robato, então diretora da revista Recreio – publicação especializada dedicada a conteúdos infantis – encomendou uma história para crianças. Surgiu assim a série ficcional Romeu e Julieta, publicada na Recreio e depois lançada em livro, com ilustrações de Mariana Massarani.
Ruth Rocha como editora da revista Recreio, publicação dedicada a conteúdos infantis que fez história no país
O seu próprio “grato caminho sem volta” para o universo infantil estava feito. Em 1973, Ruth se tornou editora da revista e, depois, coordenadora do departamento de publicações infantojuvenis da editora Abril. O primeiro livro veio ao mundo alguns anos depois desse período, em 1976. Em Palavras, muitas palavras, ela inventa uma espécie de cartilha poética para falar sobre alfabetização a partir de poemas de sua autoria. Mais um indício de que a curiosidade pela origem das palavras e da comunicação povoa os interesses artísticos da escritora desde suas primeiras criações.
Seja para contar sobre o dia do tomate, seja quantos fios de cabelo uma pessoa pode ter, quem foi Charles Darwin ou mesmo que diferença faz saber de tudo isso, Ruth Rocha conversa com os diferentes tipos de leitores. Tendo acumulado tantos ofícios quanto pôde no universo da arte e da educação, nunca deixa de ser acima de tudo criança, alguém com disposição para reinterpretar a vida a partir das palavras e tudo o que elas podem ser. Como ela mesma diz em um de seus poemas: “São sempre muito importantes / as coisas que a gente fala”.
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(Texto: Renata Penzani)