Quando usamos a palavra “protagonista”, pensamos numa figura central nas histórias do teatro, da literatura e do cinema. E essa centralidade não significa apenas ser o personagem principal de uma narrativa, mas também ser agente de seu próprio desenvolvimento, com poder para influenciar os seus arredores. Por isso, ao falarmos de protagonismo infantil, buscamos entender que a criança não é valiosa apenas porque será o adulto de amanhã, mas sim porque ela já tem muito a contribuir e construir com seus saberes respeitados, que pode participar de forma ativa em diferentes contextos de seu dia a dia: na comunidade, na família, na escola e nos outros espaços que frequenta. Assim, a criança precisa ser valorizada e incentivada a expressar pensamentos, sentimentos e necessidades – e um dos jeitos de inspirar essa postura é por meio da literatura.
“Ao observar uma criança crescendo e acompanhar seu aprendizado, seus primeiros passos, sua linguagem, suas descobertas, seu olhar sempre atento a tudo o que a cerca, podemos caminhar lado a lado com esse pequeno ser que vai se desenvolvendo e descobrindo o mundo que o cerca, ora percorrendo atalhos previamente traçados, seguindo os passos dos seus antecessores, ora abrindo novas trilhas, fazendo percursos com seus próprios pés.”
A pesquisadora Laís de Almeida Cardoso descreve assim a sensação de trabalhar com a criança e o protagonismo infantil. Em sua tese de doutorado A infância revisitada: um estudo sobre o protagonismo infantil na literatura brasileira ao raiar do século XX, ela estuda, entre os vários campos de estudo sobre a criança e no debate que envolve os termos “infância” e “novo milênio”, como meninos e meninas aparecem enquanto protagonistas na literatura brasileira e mundial.
Nem sempre a infância foi alvo de representações literárias, até porque não houve sempre uma ideia de infância. Na sociedade medieval, o sentimento de infância não existia: a partir do momento em que a criança já não exigia da mãe ou da ama os constantes cuidados de que carecem naturalmente os bebês, ela estaria apta a ingressar na sociedade dos adultos, “e não se distinguia mais destes”. Com isso, mais do que uma “fase da vida”, o termo “infância” comportaria uma “ideia” ou uma “concepção” construída histórica e socialmente, e para a qual existem inúmeras imagens correlatas.
Nisso destaca-se a importância da escola na “evolução do conceito de infância” num primeiro momento. Como a escola se destinava a formar adultos instruídos, os jovens passaram a ser vistos não mais como miniaturas de adultos, mas como algo completamente diferente: adultos ainda não formados. Do mesmo modo, a invenção da prensa tipográfica, no século XV, teve um papel decisivo na mudança de postura da vida em sociedade, criando uma cisão entre o mundo adulto e o infantil, os que leem e os que não leem, engendrando uma nova concepção de infância. Essa ruptura começa a desaparecer ao observar crianças e adultos compartilhando o mesmo mundo, “seja por meio da erotização precoce, do trabalho infantil ou das próprias atividades que atraem um e outro, indiscriminadamente, como, por exemplo, as vestimentas modernas e o interesse pelos jogos computadorizados (videogames)”.
E de onde começou a infância na literatura?
A especialista entendeu que o diálogo entre infância e literatura pode ser compreendido de duas maneiras: com as crianças que “habitam” as páginas dos textos e com as obras concebidas ou adaptadas para a criança. Por isso, mesmo que seu foco seja a infância representada na narrativa literária, não é possível fazer isso sem considerar todo o trabalho da literatura infantil.
É interessante pontuar isso ao notar que a criança como personagem não é unanimidade nas primeiras obras voltadas à infância. Ao pensar nos famosos contos dos Irmãos Grimm – mundialmente conhecidos e ainda hoje alvo de constantes adaptações cinematográficas – existem protagonistas crianças como em Chapeuzinho Vermelho, O Pequeno Polegar, João e Maria, mas a maior parte dos protagonistas não são crianças. Entre seus personagens mais populares, há a Branca de Neve, Cinderela e Rapunzel, por exemplo, todas geralmente lembradas em sua forma jovem ou adulta, e não infantil. Mesmo quando há nesses contos um relato da infância do personagem, como em A Bela Adormecida, por exemplo, essa passagem serve para explicar algum ponto ou contextualizar a situação anterior ao conflito principal, que se estabelece com o personagem já em sua forma adulta.
“Essa constatação pode estar relacionada diretamente ao fato de que as narrativas de Grimm não foram inicialmente concebidas para a criança, uma vez que os irmãos buscaram suas fontes da oralidade, ou seja, em contos populares que circulavam pela Alemanha e eram assim passados de geração a geração”, explica a pesquisadora. Depois, no que se refere à recepção, existe uma nova preocupação com a criança: alguns contos foram “suavizados” e foram ficando menos sangrentos e mais leves com o passar do tempo.
Já nos contos dinamarqueses de Hans Christian Andersen, é possível perceber uma abordagem bastante diferente na representação da infância, uma vez que a criança e o universo infantil são inseridos de forma mais realista e natural, sem deixar de lado, porém, o recurso “mágico” característico dessas narrativas. De acordo com o jornalista, escritor e poeta italiano Gianni Rodari, citado no estudo de Laís, embora o “mundo das fábulas” tenha servido como matéria-prima e inspiração tanto para Grimm como para Andersen, diferentemente dos irmãos alemães que se interessavam “em construir um monumento vivo da língua alemã”, o autor dinamarquês “revivia aquelas fábulas em sua memória” como um modo de “reaproximar-se da sua infância para resgatá-la, sem se preocupar em dar voz a seu povo”. Com isso, Andersen optou por “dar voz” à criança.
Em Andersen, a infância encontra lugar de destaque até mesmo em enredos em que o personagem criança não é o centro da narrativa. Um exemplo é o conto O Soldadinho de chumbo, que narra as aventuras vividas pelo brinquedo que chega à casa de um menino. Nesse conto, embora o protagonista tenha a forma “adulta” de um soldado, a história se passa no “mundo encantado dos brinquedos”, cenário que nos remete a um universo infantil por natureza, inclusive com a presença de personagens crianças que ocupam um papel secundário – porém, fundamental – na trama: o menino que ganha o soldadinho de presente, os garotos que o encontram na calçada e aquele que, no final, o atira no fogo.
Em sua tese, Laís também destaca outro conto de Andersen, com outro viés: ao apresentar como personagem central uma criança desvalida e desprotegida, a menina protagonista de A pequena vendedora de fósforos denuncia o trabalho infantil, a desigualdade social e a miséria. E ainda expõe, por meio da figura infantil, a fragilidade em um mundo injusto e imperfeito. Mas também chama a atenção do leitor para o poder da imaginação, capaz de renovar as esperanças e de criar uma contraposição entre a beleza do sonho e a aspereza da realidade. Com isso, o autor consegue falar sobre a criança e para a criança, apresentando a infância aos pequenos, abrindo caminhos para que outros autores fizessem o mesmo.
De um lado brasileiro, a pesquisadora aponta inicialmente a presença da criança com duas obras cujo tema central não é a infância propriamente dita: o endiabrado Brás Cubas e o romântico Bentinho, ambos personagens de Machado de Assis, cujas infâncias são descritas nos livros Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Apesar desses exemplos de representações infantis, é somente nas primeiras décadas século XX que "um olhar diferenciado para a infância se faz realmente notar tanto nas representações da infância na literatura como na criação de uma literatura infantil originalmente brasileira", como diz em sua tese.
“O ponto de partida certamente é Monteiro Lobato, considerado um ‘divisor de águas’ no que se refere à criação de uma literatura infantil genuinamente brasileira”, diz. A tese sugere que é com Narizinho e Pedrinho de Monteiro Lobato que surge Cazuza, de Viriato Correa, os primos Eduardo e Henrique, de Maria José Dupré; as crianças de Taquara-poca, de Francisco Marins; a “turma do Gordo”, de João Carlos Marinho; a menina Raquel, de Lygia Bojunga; o questionador Marcelo, de Ruth Rocha; o Menino Maluquinho e outros tantos meninos de Ziraldo.
A produção lobatiana abriu as portas do mercado brasileiro para outros autores e editoras interessadas na publicação de obras voltadas para o público jovem, com obras em que “as personagens infantis são protegidas, amadas e, principalmente, incentivadas a brincar e a utilizar a imaginação para descobrir e interpretar o mundo”. Com isso, “Monteiro Lobato surge como uma possibilidade real de se criar algo novo para a criança brasileira, afastando-se dos modelos europeus e criando uma narrativa capaz de contar histórias da nossa terra, que despertasse o interesse da criança sem o ufanismo e o patriotismo exaltado em obras precedentes”, explica Laís. Assim, na obra infantil, a situação inicial de Pedrinho e Narizinho é a melhor possível: diferente dos meninos de Capitães da areia, que tem sua infância assaltada na obra contemporânea de Jorge Amado, os meninos do Sítio possuem uma família amorosa, são bem alimentados, brincam e estudam.
Com essa noção, a ideia de infância se espalha entre autores da literatura, gêneros artísticos e nos mais diversos meios de comunicação. Hoje discutem-se as relações entre criança e tecnologia, redes sociais, sexualidade, seu papel na família, pensando no protagonismo que podem exercer. “A infância está em evidência nas propagandas, nas telenovelas, no cinema, nos musicais, nos canais pagos que dedicam vinte e quatro horas por dia de sua grade a uma programação exclusivamente infantil. Está presente também nos jogos, aplicativos e games desenvolvidos especialmente para essa faixa etária; nos equipamentos eletrônicos, brinquedos, livros e objetos e em toda a indústria do entretenimento projetada para atrair e sustentar um número cada vez maior de crianças e adolescentes em sua teia de comunicação”, mostra a pesquisadora, que, ao realizar seu estudo, notou a importância de pautar a infância também nesse campo do saber: “Escrever sobre a infância é também uma maneira de perscrutar o futuro”.
E qual é o futuro que queremos construir? O Blog da Letrinhas preparou uma lista com personagens que trazem esse protagonismo infantil na literatura, confira!
Píppi, a clássica espoleta dos livros Píppi Meialonga
Narizinho e Emília, as meninas do Sítio que se aventuram em Reinações de Narizinho
Mortina, a menina zumbi da série Mortina
Jorge e Haroldo, amigos parceiros na série Capitão Cueca
Rônia, a filha do bandoleiro do livro Rônia
Mabel Jones, a heroína da série Mabel Jones
Malala, a menina real que inspirou a obra Malala: a menina que queria ir para a escola