“Esteja à escuta”.
O primeiro verso de Converseiro da natureza (Companhia das Letrinhas, 2025) é também um apelo.
Em uma narrativa poética, André Gravatá nos convida a fazer um movimento de reconexão com a natureza que implica em decifrar silêncios, se deixar sentir, saber olhar além de ver. O texto desliza em um ritmo suave, como se fosse falado, acompanhado pelas ilustrações delicadas de Kammal João, que também é o responsável por dar traços e cores à coleção de Manoel de Barros (1916-2014) - uma coincidência intencional, bem coisa de poeta.
“O poeta das infâncias” e Gravatá têm vozes consonantes. Ecoam o mesmo encantamento pela natureza em versos. Brincam com a palavra de forma despretensiosa e tocante. Não foi Manoel quem apresentou a poesia a André, mas foi ele quem o aproximou dela. “Foi como se o Manoel me puxasse para respirar outros ares, me enraizasse nessa vontade e nessa intimidade com a poesia”, conta o autor.
Manoel se inspirava nas singelezas. André também. Foi a visita de uma catende, uma espécie de lagartixa, que motivou a escrita de Converseiro da Natureza, que só ganhou forma definitiva depois de algum tempo de maturação e de um sonho. “Os processos são muito misteriosos. Fiquei alguns meses com essas palavras e imagens em movimento dentro de mim. E depois de um sonho foi que encontrei um jeito de costurar tudo isso”, revela André.
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“O silêncio fala”
Para o autor, que tem uma longa trajetória como educador percorrendo escolas e desenvolvendo oficinas de poesia, essa é uma das mensagens mais poderosas de Converseiro de Natureza . “Não é só ouvir, é aprender a ler no olhar, no sentir. Como educador, a gente precisa de porosidade, a sensibilidade é a expressão de um corpo poroso no encontro com o mundo e as crianças nos ensinam muito sobre isso".
André Gravatá participando de uma exposição coletiva
Faz tempo que André mantém uma conversa permanente com a natureza, que começou no quintal onde cresceu em Embu das Artes (SP), município localizado na região metropolitana da capital paulista. Filho de dois migrantes que deixaram a região de Paripiranga, interior da Bahia, e criaram raízes em São Paulo, André viu brotar desde cedo uma profunda conexão com a natureza, que começou no quintal de sua casa.
Em entrevista ao Blog Letrinhas, o autor fala de seu caminho pela poesia e de seus laços com a natureza, revela o processo de criação de Converseiro da Natureza e pensa a relação da literatura com o mundo em que vivemos.
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Confira a entrevista com André Gravatá
Blog Letrinhas: Como a sua conversa com a natureza começou?
André Gravatá: Em Embu das Artes (SP), onde eu cresci. Morava em uma casa pequena, na periferia, que sempre foi uma casa com muitas plantas. Ainda hoje quando eu visito meus pais, fico pensando como é possível caber tanta vida em um quintal. Tem de jabuticabeira até pé de romã, de cana a pitanga sem contar as flores, as rosas. Eu lembro muito de quando era pequeno ver a romã e ficar inquieto com o seu formato. Desde criança, eu tenho essa relação com a natureza, que passa pelo meu corpo.
E naquela época, por morar em uma região que era perigosa, nós ficávamos muito em casa, meus pais não me deixavam sair. Na minha casa não tinha livro, mas desde sempre nutri uma curiosidade muito grande pelas histórias, pelas palavras. Isso foi dando mais importância para minha relação com cada elemento perto de perto de mim e fez crescer ainda mais a importância desse quintal.
Tem um livro chamado Sumário de plantas oficiosas: um ensaio sobre a memória da flora (Fósforo Editora), lá o Efrén Giraldo fala sobre como migrantes que vivem primeiramente em um contexto de roça, quando se mudam para uma cidade, levam essa fome de natureza que acaba desembocando em um quintal, como uma tentativa de conservar o lugar deles. O quintal da casa dos meus pais é um pedaço do lugar de onde eles vieram.
Blog Letrinhas: E como foi que a sua relação com a natureza encontrou a poesia, a palavra?
André Gravatá: Na natureza, incontáveis idiomas se encontram, se esbarram. Em Converseiro da natureza, o urubu fala com a castanheira, existe uma língua que junta essas duas espécies. É isso: os encontros mais inacreditáveis acontecem. Acredito que a palavra é muito mais alargada, muito mais multiforme do que a gente considera hoje em dia. Pode ter uma relação muito mais brincante. Muitas vezes a palavra fecha, define, cria uma cisão. E a gente passa a acreditar que uma coisa só pode ser uma coisa. Mas não precisa ser assim.
Em Converseiro da natureza, é possível ser borboleta e lagartixa ao mesmo tempo. É um encontro mágico, mas radicalmente possível em alguma medida. Me faz lembrar Guimarães Rosa com o homem que se transforma em onça. Manoel de Barros também fala “eu preciso ser outros”. O Converseiro da Natureza faz com que a gente se torne outros seres, outras presenças no mundo.
Blog Letrinhas: A obra de Manoel de Barros também dialoga com a sua em muitas medidas - na natureza, na singela, nesse brincar com a palavra. Foi ele quem te apresentou à poesia?
André Gravatá: Não, eu já lia poesia. Mas foi Manoel que me fez sentir as palavras mais próximas de mim.
Me lembro que um amigo trouxe um livro dele para lermos em um cortejo de poesia. É curioso porque quando você está prestes a conhecer alguém que vai se tornar um grande amigo, uma grande referência, você ainda não tem dimensão de quão importante aquela pessoa vai se tornar. Fiquei com a impressão de que a voz do Manoel conversava muito comigo. Nessa época eu estava fazendo jornalismo e comecei a andar com os livros dele para cima e para baixo.
A pessoa que faz poesia tem essa vontade de agarrar o tempo, de agarrar as imagens. Manoel nos ensina muito em relação a essa porosidade no encontro com a natureza. Ele nos ensina a viver esse encontro com a disponibilidade de ser atravessado, surpreendido com coisas que nem achávamos que seria possível viver. Nos conta também que o encontro com a palavra pode ser um encontro brincante.
Lembro do dia exato em que Manoel morreu. Foi um período em que eu estava muito envolvido com os poemas dele, decorando, declamando… ele já estava internado há um tempo e todos os dias, quando eu acordava, a primeira coisa que fazia era procurar notícias sobre o estado de saúde dele. Fui encontrar um amigo em um café e me ofereci para ler um poema de um livro do Manoel que estava comigo para a pessoa que veio servir nossa mesa. Dei o livro na mão dela, para que ela abrisse em uma página ao acaso. E ela abriu em uma página em branco. Não tinha poema para aquele dia. E eu não insisti para que a pessoa tentasse escolher outra página. Mais tarde, vi que Manoel havia falecido.
Blog Letrinhas: Como nasceu Converseiro da Natureza?
André Gravatá: Eu estava já há um tempo na busca por escrever essa história que tinha a ver com o que eu vivi com a minha mãe e a minha avó quando estava com elas em Paripiranga (BA). Numa noite, passou por nós uma catende, que parente da lagartixa, um pouco maior que ela. E minha avó foi me dizendo: ”Tá ouvindo o que a catende tá falando? Quando a catende balança a cabeça, ela diz' tem de tudo nesse mundo e ainda sobra”. E minha mãe emendou, lembrando que a catende também fala: “Quem sabe, sabe, quem não sabe fica por saber”.
E fiquei com vontade de escrever algo a partir disso. Os processos são muito misteriosos. Fiquei alguns meses com essas palavras e imagens em movimento dentro de mim. E depois de um sonho foi que encontrei um jeito de costurar tudo isso.
Sonhei com um ritmo e acordei com a sensação de um verso, que se repetia começando por “fala”, “fala”, fala”. Esse jeito de dizer em que o verbo começa a frase gera movimento e traz uma musicalidade que se conecta com a experiência da oralidade. . Vale dizer que uma das referências mais importantes para o Converseiro é um mestre malinês chamado Amadou Hampâté Bâ, que transborda a sabedoria das culturas orais. No livro Amkoullel, o menino fula, ele menciona um provérbio africano que se tornou a epígrafe do Converseiro: “Esteja à escuta, tudo fala, tudo é palavra, tudo procura nos comunicar um conhecimento”. Senti que o texto ficou com uma atmosfera de sonho, mas também de realidade, com vários falares. Mas só fui entender a história da catende que ficou me martelando bem depois.
Bordado feito por André Gravatá com o provérbio africano lembrado pelo escritor, filósofo e etnólogo Amadou Hampâté Bâ, do Mali
Blog Letrinhas: Depois que o livro foi publicado?
André Gravatá: Sim. Minha mãe me explicou exatamente o que essas frases que ficaram ecoando para mim significavam. Acontece que a catende não gosta muito de andar pelo chão. Ela prefere andar pelas paredes e pelos telhados, por isso vê tanta gente e tantas histórias. A catende observa gente passando fome, espia mulheres parindo, marido batendo em mulher. Sim, a catende observa muitas violências e o cotidiano mais íntimo das pessoas. Por isso, a minha avó diz que quando a catende fala: “Tem de tudo nesse mundo e ainda sobra” é porque a catende vê de tudo, principalmente histórias de muita dor. “Quem sabe, sabe, quem não sabe fica por saber”, a outra frase atribuída à catende, significa que só sabe quem sente na pele como as coisas acontecem. As crianças às vezes perguntam: “A catende fala mesmo com a sua avó?”. A catende não fala do mesmo jeito que os humanos, mas fala sim. E histórias assim ampliam o mundo, nossa imaginação, nossa curiosidade.
Blog Letrinhas: E a escolha do Kammal, que ilustrou as obras do Manoel de Barros, foi feita por você?
André Gravatá: Foi a Companhia das Letrinhas quem o sugeriu, mas eu me identifiquei com o trabalho dele de cara. Senti no Kammal uma escuta muito especial sobre essa atmosfera do sonho. Ele é quem trouxe esse personagem que vai acompanhando a história, trouxe as imagens em movimento, foi capaz de reunir muitas naturezas se esbarrando, se misturando. Ele conseguiu trazer camadas para o livro que me surpreenderam muito. Com elas, consigo ler muito mais do que o texto trazia, o Kammal oferece ainda mais portas de entrada para quem vai entrar no livro, reforça que a natureza tem pólen e raios de sol mas também dentes afiados e espanto. Há uma relação pulsante entre palavra e imagem. É assim que o livro para a infância acontece em sua potência.
Blog Letrinhas: A partir de uma perspectiva de educador, como você enxerga que deve se estabelecer essa relação entre a literatura e a escola, sem que os livros fiquem limitados ao papel de ensinar os conteúdos previstos?
André Gravatá: Gosto muito de pensar no livro como uma catapulta que leva a gente para mais perto do nosso corpo, das outras pessoas, da realidade, nos jogando mais perto de nós mesmos. Eu escrevi um poema já há um tempo que repete o verso: “a poesia me achou”. Escrevo: “a poesia me achou, não para eu me apegar ao poema, mas para eu não desprezar a realidade”. Tem um jeito talvez mais conservador de se relacionar com a literatura colocando o livro com um objeto intocado, meio descolado da realidade. Mas acredito que a relação entre literatura e vida é muito bem-vinda e muito ancestral. Tem a ver com a oralidade, com a relação primordial entre palavra e corpo, da palavra como expressão do que o coletivo está palpitando.
Blog Letrinhas: E nas suas observações nas escolas, como é que se faz essa ponte entre a literatura e a realidade?
Estou na escola como escritor, dou oficinas de poesia, é um outro jeito de se relacionar com a aprendizagem. Nas várias escolas pelas quais passei pra escrever um outro livro em que estive envolvido, o Volta ao mundo em 13 escolas, um livro que nasceu em coautoria com outros amigos, percebi que as escolas que mais conseguiam transformar suas realidades são aquelas que mais escutam o que acontece no seu próprio contexto, que consideram a história do lugar, as demandas locais e coletivas. Essa escuta pode parecer apenas abrir os ouvidos e se sentar na frente dos outros, mas ela é muito mais desafiadora no sentido de quando a gente realmente é capaz de escutar, pode ser que a gente escute o que não quer, o que não sabe lidar. A escuta exige da gente um envolvimento tão grande! Bem maior do que muitas vezes estamos dispostos coletivamente.
O artista catalão Antoni Mutadas tem uma frase que diz: “Percepção requer envolvimento”. Isso me dá vontade de dizer que a poesia requer envolvimento, que a literatura requer envolvimento. Se eu me envolvo, aquilo é capaz de revelar lugares novos em mim - e vai me levando para outras direções. O mestre quilombola Nêgo Bispo (1959-2023) falava da urgência de enfeitiçar a língua, de trazer pra perto “palavras germinantes” como “envolvimento”. Mais envolvimento em cada conversa que acontece no nosso dia a dia poderia desabrochar na gente uma outra presença, outro jeito de agir.
Blog Letrinhas: E como você espera que aconteça esse envolvimento das crianças e dos leitores em geral com Converseiro da natureza?
André Gravatá: Desejo que as pessoas possam brincar com nosso livro. É um livro brincante, mas que também convida para mil desdobramentos. Um deles é se perguntar: o que a natureza está falando para nós agora? A poesia te pergunta o tempo todo: você se interessa pela vida? Pra onde você está olhando? Você realmente se deu conta do mistério? Essas perguntas são muito urgentes, muito cruciais.
(Texto: Naíma Saleh)