Se, desde os anos 90, as crianças brasileiras podem imaginar um rosto brasileiro – ou melhor, um focinho peludo cor de caramelo – para o famoso vilão de Chapeuzinho Vermelho ou de Os três Porquinhos, há dois autores que certamente contribuíram para essa identificação. Estamos falando dos parceiros de criação Lázaro Simões Neto e Laura Beatriz de Oliveira Leite de Almeida, conhecidos como Lalau e Laurabeatriz, que em 2024 celebram 30 anos de carreira e parceria. “Olha lá / o lobo brasileiro / diferente do mundo / inteiro / Olha lá o lobo-guará”. Versos como esses são abundantes na poética dos dois, alinhavada entre a contemplação dos animais e o alerta para sua extinção iminente.
Como parte da comemoração, a dupla acaba de lançar um novo livro: Brasileirinhos da Mata Atlântica: Poesia para os bichos de uma linda floresta (Companhia das Letrinhas, 2024), que dá continuidade à série Brasilerinhos ao apresentar a fauna da Mata Atlântica, um dos mais ricos biomas brasileiros - e extensos também. No Brasil, ele ocupa uma área correspondente a 15% do território e está presente em 17 estados, além de ser considerado patrimônio nacional pela Constituição de 1988. No quinto volume da coleção, os autores trazem para as crianças poemas sobre o mico-leão-da-cara-preta e a cuíca-cinza, uma espécie de marsupial, além de muitas aves como a saíra-lagarta e a jacutinga. E até nosso lobo brasileiro dá as caras...
Lalau e Laurabeatriz em ação na divulgação de Bebês brasileirinhos (Companhia das Letrinhas, 2017), parte da série Brasileirinhos
Quando apontam seus poemas para o nosso ameaçado guará, Lalau e Laura não só reformulam o lobo mau no imaginário das crianças brasileiras, mas contribuem desde a infância com a desconstrução de uma cultura colonizada, em que é mais comum ter como brinquedo um urso panda que uma capivara ou uma arara azul. “E por que isso importa em um mundo globalizado de referências culturais que se cruzam entre continentes?”, podemos nos perguntar. Se a fauna do Brasil é habitada por animais que não existem em nenhum outro lugar do mundo, conhecê-los é o primeiro passo para garantir a permanência da maior biodiversidade do planeta, crucial para a manutenção da vida. Para eles, narrar a representatividade da fauna é um gesto de humanização.
Brasileirinhos que são o bicho
São 30 anos de uma poesia dedicada a aproximar o meio ambiente do encantamento das crianças. Não por acaso, os poemas da dupla são repletos de perguntas infantis, ao mesmo tempo em que são questões que não se diluem ao longo da vida. “Curiosidade é o que move a criança quando abre um livro”, diz Lalau. “Não só hoje, sempre. Qual a cor do passarinho? Onde vive o tatu? Qual o tamanho da onça? Por que esse peixe tem esse nome?”, conclui o escritor.
“Falar de um bicho é falar da vida de todos nós.” (Lalau e Laurabeatriz)
Brasileirinhos da Mata Atlântica: Poesia para os bichos de uma linda floresta (Companhia das Letrinhas, 2024) tem o texto de apresentação assinado por Marcia Hirota, presidente da Fundação SOS Mata Atlântica, e leva conhecimento sobre a floresta com uma das maiores biodiversidades do país, ao mesmo tempo em que é também a mais ameaçada, com 90% do território. Segundo a Fundação, a Mata Atlântica representa o lugar onde vivem 72% dos brasileiros, porém, apenas 24% da floresta original continua preservada. Os esforços para a conservação da Mata Atlântica culminaram em uma legislação própria, a única a proteger um bioma brasileiro: a Lei da Mata Atlântica (11.428/2006).
Para Lalau e Laura, podemos conhecer os problemas do mundo na infância, e as linguagens artísticas são uma oportunidade de respiro nesse sentido.
“A arte é uma descompressão para a criança.” (Lalau e Laurabeatriz)
Era uma vez dois artistas que floresceram na poesia infantil
Lalau e Laurabeatriz integram o catálogo do primeiro selo infantil da Companhia das Letras desde seu surgimento, em 1992. São desse período inicial as obras Bem-te-vi e outras poesias (1994), Fora da gaiola (1995) e Girassóis (1995), trilogia que ganhou, cada um em seu ano de publicação, o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, a FNLIJ. Depois, vieram dezenas de outras criações, como Uma cor, duas cores, todas elas (Companhia das Letrinhas,1997).
Mas, afinal, como tudo começou? Se, para muitos leitores que os acompanham há décadas, eles dispensam apresentações, celebrá-los passa também por relembrar a origem dessa parceria de sucesso. Ele: publicitário de formação e poeta marginal, da chamada “geração mimeógrafo”, nascido em São Paulo. Ela: artista plástica e ilustradora, nascida no Rio de Janeiro e residente em São Paulo desde os anos 80.
Depois de formada, Laura trabalhava com desenhos, xilogravuras, sempre no campo das artes plásticas, buscando outros meios de obter sustento com sua produção autoral. Então, arriscou-se na ilustração – inicialmente, para revistas, jornais e para o mercado de publicidade. Em 1984, ela ilustrou o primeiro livro, de autoria de uma amiga. Dez anos depois, já na década de 90, seus desenhos encontraram a poesia de Lalau, e vice-versa.
Enquanto isso, Lalau estava às voltas com uma vocação pela palavra, que se estendia a diversos gêneros literários; foi autor de contos e crônicas em jornais, e também redator publicitário. O curioso é que os dois foram apresentados por um terceiro artista, o poeta paulista José Paulo Paes (1926-1998), durante o lançamento de Olha o bicho (Ática, 1989), ilustrado com as aquarelas de Rubens Matuck. O livro em questão, em que os poemas são protagonizados por animais característicos do Brasil, como tamanduá, formiga e preguiça, tem algumas semelhanças com o caminho que a dupla escolheria seguir: poesia para criança, a partir dos bichos que nos habitam.
Desse encontro, resultou o primeiro fruto do trabalho de Lalau e Laurabeatriz: Bem-te-vi e outras poesias. Nascia ali uma longa parceria, que atravessaria muitos anos, biomas e espécies animais. Juntos, eles somam hoje mais de 60 livros, além de trabalhos produzidos em conjunto com outros artistas – Laura ilustrou a primeira edição infantil de um clássico da poesia brasileira, A Arca de Noé (Companhia das Letrinhas, 1991), de Vinicius de Moraes, A lista de Alice (Companhia das Letrinhas, 1996), de Betinho, e Alice através do espelho – e o que ela encontrou lá (Companhia das Letrinhas, 2023), de Lewis Carroll – em uma adaptação de Ruy Castro.
Lalau e Laurabeatriz: a bibliodiversidade de um ecossistema artístico
As publicações de maior sucesso dos autores – tanto de crítica especializada, quanto de recepção e circulação – são os livros da Coleção Brasileirinhos, publicados pela Companhia das Letrinhas. A série começou em 2017, e, de lá para cá, vieram as sequências que seguem até hoje incrementando a bibliodiversidade na arte voltada às crianças. São elas Bebês brasileirinhos - Poesia para os filhotes mais especiais da nossa fauna (2017) – publicado em versão brochura e também em capa dura –, Brasileirinhos da Amazônia - Poesia para os bichos da nossa maior floresta (2020), Brasileirinhos do Pantanal - Poesia para os bichos de um paraíso (2021) e o lançamento Brasileirinhos da Mata Atlântica - Poesia para os bichos de uma linda floresta (2024).
“A criança possui um desprendimento só dela para contemplar e entender a natureza. O que fazemos é simplesmente conduzir esse olhar para o meio de uma floresta distante, para o fundo das águas inatingíveis, ou para os bichos e flores que estão à sua volta na cidade.” (Lalau e Laurabeatriz)
E nem só de fauna poética vive a produção de Laura e Lalau. Há também livros que visitam outros cenários tipicamente nacionais, como o esporte mais popular do Brasil. A coletânea de poemas de humor Futebol (Companhia das Letrinhas, 2006), apresenta às crianças um time que, se não apareceu até hoje na Copa do Mundo, deve ser apenas por uma falha da realidade. O divertido “Esporte Clube Trava-Língua” é escalado por Caçarola, Marola e Carambola e outros tantos atletas inventados com a língua enrolada, como Aflito, Apito, Pirulito e Periquito.
Em Faz e acontece no faz-de-conta (Companhia das Letrinhas, 2005) a dupla visita contos de fadas em um livro que imagina uma outra vida para personagens clássicos, ao narrar o que acontece quando Pinóquio, Cinderela, Gato de Botas e Ali Babá se encontram fora de suas próprias histórias. A arte circense também tem vez, em Faz e acontece no circo (Companhia das Letrinhas, 2005), poema ilustrado criado em ritmo de brincadeira, em que um coelho escapa da cartola, vai parar na jaula do leão e desenrola uma trama inusitada.
Para a primeira infância, as indicações podem passar tanto pela Coleção Brasileirinhos – especialmente Bebês brasileirinhos – quanto por histórias que dialogam com as vivências dos bebês, como as publicações recentes Palmas para o bicho que ele merece (Companhia das Letrinhas, 2023), que propõe uma brincadeira de esconde-esconde com os animais dos biomas brasileiros, e Olha que eu viro bicho… de jardim! (Brinque-Book, 2018), que faz perguntas como “Joaninha usa pijama de bolinha?” “Borboleta voa de xale colorido?” e “Minhoca rebola?” para imaginar como vivem os bichos dos quintais e jardins.
A literatura de Laura e Lalau é formada também por livros capazes de alcançar tanto crianças quanto adultos, os chamados livros crossover. São obras de potencialidade intergeracional, que cativam leitores diversos pela universalidade da temática. É o caso de A poesia pede palavra (Escarlate, 2019), que busca novos sentidos nas palavras do dia a dia, e filosofa sobre as diferentes perspectivas que podemos oferecer a elas por meio da poesia. Perguntas como “Se há mais mistério entre o céu e o telescópio, o que há entre o olhar e o caleidoscópio?”, povoam esse livro, e são representativas de toda a obra dos dois, à procura de desacostumar o leitor por meio de perguntas incomuns.
Nesta entrevista – que você lê na íntegra, abaixo – rememoramos acontecimentos marcantes dessas três décadas de poesia ininterrupta, que hoje se afirma como uma obra fundamental na biblioteca de leitores em formação.
Nesses tempos em que as florestas dão sinais extremos da urgência de reinvenção da rota do humano na Terra, os livros de Laura e Lalau encontram lugar também entre adultos interessados em preservar o elo com os animais e as plantas como caminho de ressignificação dos modos de existência. Como eles próprios dizem sobre o futuro de suas criações, a infância e a arte são lembretes de que recomeçar é possível em qualquer ponto da História.
“O começo não acabou e o fim não começou.” (Lalau e Laurabeatriz)
Confira a entrevista completa com Lalau e Laurabeatriz
Blog Letrinhas: Laura, antes de entrar no mundo dos livros para as infâncias, você atuava como artista plástica. Lalau, você foi da geração mimeógrafo. São duas experiências menos populares, no sentido do alcance de grandes públicos. Nesse contexto, como foi entrar na literatura infantil?
Laura: Infelizmente, aqui no Brasil, ser artista plástica é ser marginal mesmo. Entrar na literatura infantil foi uma maravilha para mim. Continuei com o prazer da pintura e encontrei o melhor público do mundo.
Lalau: Na nossa época de faculdade, nos anos 70, a poesia acontecia nas ruas, nos bares, em pequenas confrarias. Na literatura infantil, o salto foi gigante. O livro Bem-te-vi (Companhia das Letrinhas, 1994), por exemplo, teve por volta de 2 milhões de exemplares distribuídos por uma ação na internet: o projeto Ler faz crescer, do Banco Itaú. Uma surpresa, tremenda repercussão. De uma hora para outra, saí de gatos pingados para um enxame de leitores.
Blog Letrinhas: Nessas três décadas, o que vocês destacam como mudança significativa no cenário da literatura infantil brasileira, tanto em termos de recepção dos leitores quanto da crítica especializada.
Laura: O nosso público realmente cresceu muito nestes 30 anos, tanto em relação às crianças, como em relação aos pais, que hoje são bem mais interessados e participativos nas atividades dos filhos.
Lalau: Destaco o surgimento de editoras e livrarias especializadas, incentivo a novos autores e autoras, as feiras literárias abrindo maiores espaços para o segmento, escolas intensificando as adoções e promovendo mais encontros e atividades com as crianças. Além da participação e o sucesso da literatura infantil brasileira em feiras internacionais.
Blog Letrinhas: Como vocês veem o conjunto da obra Lalau e Laurabeatriz? Ecopoesia, poemas ecológicos e literatura socioambiental são conceitos que aparecem aqui e ali, no campo da teoria e crítica. Faz sentido pensar em denominações para essa prática tão consolidada de vocês?
Laura: Todos esses nomes que você sugeriu podem se encaixar na nossa obra. Começamos com um bem-te-vi e hoje navegamos na nossa imensa biodiversidade.
Lalau: Fazemos aquilo que nossos corações e consciências conduzem. O importante é a recepção das crianças, pais e educadores, a abertura das conversas sobre preservação. Falar de um bicho é falar da vida de todos nós.
Blog Letrinhas: Os livros de vocês narram, há muitos anos, o pedido de socorro da fauna e da flora. Desmatamento, caça ilegal, destruição de territórios indígenas. Os personagens de seus livros, na realidade, vivem nesses cenários. Como chegamos até esse lugar? A literatura pode nos ajudar a sair?
Laura: Sim, chegamos nesse lugar tão dolorido e podemos dizer que todo o planeta também chegou, mas a luta continua! Continuamos empenhados nessa batalha e seguimos em frente com nossos leitores, que são nossos parceiros nessa jornada.
Lalau: Tudo é consequência da ganância, irresponsabilidade, falta de consciência, educação e empatia. Não existe parte do mundo livre dessas agressões.
“Por meio da beleza e do lúdico, pretendemos chamar a atenção para os problemas ambientais e provocar reflexões.” (Lalau, escritor)
Blog Letrinhas: Ansiedade climática, desconforto térmico, aumento de casos de depressão em crianças e jovens e outras pautas devastadoras estão no noticiário com frequência – no Brasil e no mundo. Como não sobrecarregar as crianças de hoje ao falar da importância da preservação ambiental?
Laura: Vivemos tempos difíceis mesmo, mas não podemos ignorar a importância da preservação ambiental. Vamos continuar sempre, com muita esperança de vencer essa batalha.
Lalau: Hoje em dia, acho pouco provável ter controle sobre o que a criança recebe de mídias sociais, noticiários e outros meios, principalmente, digitais. A arte, no nosso olhar, é uma descompressão para a criança. Não sobrecarrega, é uma oportunidade para a criança respirar e entender os problemas deste mundo.
Blog Letrinhas: Pensar em preservar a vida hoje em dia passa por mudanças fundamentais de paradigmas civilizacionais, com a escuta dos povos originários, das crianças, dos mais velhos. Como esses elementos aparecem na obra de vocês?
Lalau: Acreditamos que a fauna, a flora e também a língua são símbolos fortes dos povos originários. Quando criamos um poema para o muriqui, um macaco, ou uma ilustração para o jatobá, uma árvore, colocamos a história e importância dessas civilizações no livro.
Blog Letrinhas: O que é natureza para vocês? Que conexões enxergam entre o meio ambiente e as infâncias?
Lalau: Natureza é aquilo que nos mantém vivos e felizes. É tudo que nos cerca e nos conduz. A criança possui um desprendimento só dela para contemplar e entender a natureza. O que fazemos é simplesmente conduzir esse olhar para o meio de uma floresta distante, para o fundo das águas inatingíveis, ou para os bichos e flores que estão à sua volta na cidade.
Blog Letrinhas: No contato com as crianças em encontros e lançamentos, vocês percebem interesses que se repetem em diferentes contextos? No que as crianças que leem vocês hoje costumam estar interessadas?
Lalau: Curiosidade é o que move a criança quando abre um livro. Não só hoje, sempre. Qual a cor do passarinho? Onde vive o tatu? Qual o tamanho da onça? Por que esse peixe tem esse nome? E assim, vamos respondendo.
Blog Letrinhas: O que não fizeram nesses 30 anos e têm vontade de fazer nos próximos?
Laura: Estamos sempre conversando, trocando ideias para novos livros. Queremos também continuar a nossa viagem dos Brasileirinhos, nos biomas aonde ainda não chegamos. O Brasil é muito grande!
Blog Letrinhas: Antônio Bispo dos Santos dizia que somos “começo, meio e começo”. Nessa perspectiva, o que chamamos de “fim do mundo” talvez seja algo muito diferente do que imaginamos. Nesse momento de celebração de um marco na carreira, o que é fim e o que é começo para vocês?
Lalau: Celebrar 30 anos de parceria é uma bênção. E essa nossa história tem sido muito generosa, não só pelo trabalho, mas pelas pessoas que encontramos no caminho, os milhares e milhares de abraços das crianças, os motivos de orgulho e tropeços. Tudo vale e valeu! E, como disse a Laura, a viagem continua. O começo não acabou e o fim não começou.
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