Grande parte do que chamamos de sociedade se organiza a partir de um determinado ponto de vista. O que vemos, de onde vemos e como vemos são fatores que estruturam nossas percepções sobre nós mesmos, sobre o “Outro” e sobre o mundo. Porém, a pequena parcela que pensamos conhecer na verdade se limita a uma série de aspectos culturais e sociais. Quando transformamos essas três condições do viver coletivo em pergunta – O que vemos? De onde vemos? Como vemos? – o que se revela são as diferenças de perspectiva, um elemento capaz tanto de construir culturas quanto de invisibilizá-las - e até de destruí-las.
Em convívio com diversas comunidades indígenas desde que estava na barriga de sua mãe, a multiartista Rita Carelli parte de sua condição de habitante “entre mundos”, como ela delicadamente define, para compartilhar visões de vidas plurais.
Retrato de Rita Carelli no Xingu - ela é autora de diversas obras voltadas ao público infantil e acaba de assinar a parceria que marca a estreia de Ailton Krenak nos livros ilustrados com Kuján e os meninos sabidos (Companhia das Letrinhas, 2024) (Crédito: Carlos Fausto)
Seja nos palcos, nos livros ou nas telas, a busca da autora é por fazer de suas criações um lugar para provocar novos modos de olhar para além daqueles que nos são oferecidos, equivocadamente, como verdade única. “Esse é o grande desafio na tarefa de narrar e ilustrar histórias indígenas: fugir do genérico e das ideias pré-concebidas”, explica.
“Minha criação me ajuda muito nesse trânsito, mas também as relações que sigo cultivando ao longo da vida. É um estado de disposição para o encontro e a partilha.” (Rita Carelli)
O que nos forma ou deforma enquanto humanidade? Como desfazer a ideia limitada da centralidade do humano para praticar outras maneiras de habitar o mundo, em que bichos, plantas e outros seres vivos tenham suas importâncias valorizadas? Esses e outros pontos de vista – e de interrogação – aparecem no lançamento Kuján e os meninos sabidos (Companhia das Letrinhas, 2024), de autoria de Ailton Krenak e Rita Carelli, que narra a primeira visita de deus aos burum, que é “ser humano” em língua krenak. O nome remete às palavras “kren” e “nak” que significam juntos “cabeça da terra”.
LEIA MAIS: Um novo olhar para um velho mundo: a importância das narrativas não-eurocêntricas
O encontro entre criador e criaturas
“Como será que minhas criaturas estão se virando na Terra?” É o que se pergunta deus quando vislumbra suas criações. Na história, o mundo é apresentado como um jardim onde as criaturas podem fazer tudo o que querem, exceto uma coisa: encontrar-se cara a cara com quem criou todos os seres. Assim, o tempo foi passando, até que um dia, não mais que de repente, Marét-khamaknian, o criador, fica com saudade do mundo e resolve visitar a Terra. Para isso, decide tomar a forma de um tamanduá, um “kuján”.
Porém, logo que chega vira alvo de caça: querem transformá-lo em jantar de uma festa na aldeia. É aí que Roti e Cati entram em cena. São as crianças que conseguem enxergar o que outros não percebiam: aquela era uma visita ilustre. “Nossos tios pensam que você é mesmo um tamanduá, mas nós sabemos quem você é e decidimos guardar segredo”, dizem os meninos sabidos.
A narrativa de Kuján e os meninos sabidos (Companhia das Letrinhas, 2024) convida a refletir sobre as atitudes que tomamos enquanto humanidade e sobre o poder das ações das crianças
Não por acaso, o vocativo que as crianças usam para chamá-lo é uma chave de leitura fundamental na narrativa. Ao se referirem a ele como “Avô”, as crianças trazem à tona toda uma cosmovisão que enxerga outros seres, de bichos a vegetais e minerais, como parte da família, diferente da visão mercantilista das sociedades de consumo que está por trás das tendências destrutivas da chamada "civilização”.
LEIA MAIS: 8 autores de origem indígena para ler com as crianças
Rita e Ailton Krenak: uma parceria de longa data
A publicação desdobra, pela primeira vez em livro ilustrado, uma parceria literária iniciada em 2019. Rita e Ailton se conhecem desde a infância da autora, e passaram a trabalhar juntos a partir da trilogia formada pelas obras Ideias para adiar o fim do mundo (Companhia das Letras, 2020), A vida não é útil (Companhiadas Letras, 2020) e Futuro Ancestral (Companhia das Letras, 2022) . Ailton é ambientalista, filósofo, escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras - e agora, também escritor para as infâncias.
Mesmo que ainda não conheça essa nova publicação, é provável que o leitor (re)conheça a história de kuján das falas de Ailton Krenak, que costuma contá-la em seus encontros, e chegou a registrá-la também no livro A vida não é útil . Dessa vez, as imagens e o projeto gráfico trazem outras possibilidades para o texto que surge do encontro entre as linguagens.
Rita Carelli chama atenção para o bioma e as relações que são retratadas nas ilustrações de Kuján e os meninos sabidos. “Temos ali uma vegetação de cerrado, não estamos na floresta amazônica, nem na mata atlântica ou nos pampas, mas em um cenário específico que faz parte do modo de ser dos Burum. E, para os olhares mais apurados, o livro também tem várias brincadeiras visuais sobre o perspectivismo indígena”, conta. Formigueiros, cupinzeiros, colmeias de abelhas e outras formas de vida coletiva aparecem nas imagens, formadas a partir de colagens e recortes de papel que jogam com efeitos de luz e sombra. No livro, podemos brincar de ser bicho, gente, coisa. Na pele de um tamanduá, de um deus ou de uma criança, as experiências ficam diferentes, e o que vemos ou deixamos de ver alteram o rumo das coisas. As assimetrias das relações se revelam para questionar nossos modos de viver.
Rita Carelli, Ailton Krenak e Ricardo Teperman (Foto: Acervo pessoal)
“Viver entre mundos”
Diretora de cinema e teatro, atriz, ilustradora, escritora. Os múltiplos ofícios de Rita Carelli refletem a pluralidade que perpassa sua formação desde criança, em que não há um modo de ser, mas muitos – e em constante possibilidade de complementação. A autora nasceu em São Paulo, em 1984. É filha da antropóloga paulista Virgínia Valadão (1952-1998) e do cineasta francês Vincent Carelli, diretor do premiado Martírio (2017), que documenta o massacre dos Guarani Kaiowá. Ambos dedicaram sua carreira a questões indígenas e aos direitos das populações indígenas, integrando, em 1979, o grupo de jovens que fundou o CTI (Centro de Trabalho Indigenista), organização de apoio a projetos voltados aos povos originários. No final dos anos 80, os pais de Rita criaram o Projeto Vídeo nas Aldeias, que existe no Brasil há 35 anos como uma referência em formação e produção audiovisual indígena no país.
Cena do filme Yãkwa: o Banquete dos Espíritos (1995), dirigido por Virgínia Valadão
Conforme a própria Rita conta, esse contexto afetivo impactou diretamente seus primeiros passos pelo mundo. O cotidiano profissional de sua família a levou a conhecer, desde a gestação da mãe, diversas aldeias indígenas brasileiras, enquanto acompanhava os pais em pesquisas de campo e filmagens. “Essa era a minha vida. A melhor parte dela, pelo menos. A comida, as brincadeiras, o contato estreito com a natureza”, conta. Hoje, a proximidade com os povos originários se mantém por um caminho profissional escolhido em grande parte a partir das inspirações da infância. Se a poeta Louise Glück acertou quando escreveu que “olhamos para o mundo uma vez, na infância", o que foi visto naqueles anos não deixou de povoar a sensibilidade que a formou como artista.
Exemplo disso é Menina mandioca (Pallas Mini, 2022), escrito por Rita Carelli e ilustrado por Luci Sacoleira. O livro conta um mito de origem Enawenê Nawê, em que a mandioca simboliza a roça dos espíritos, “o alimento essencial para a sobrevivência dos povos originários”, como diz a sinopse. A obra nasceu justamente de uma vivência da escritora no início dos anos 90, enquanto a mãe realizava o documentário Yãkwa: o Banquete dos Espíritos.
Rita conta que, aos três anos, assistiu a um ritual vivido pelo irmão de cinco anos, quando ele foi emplumado junto aos meninos da aldeia Krahô, no Tocantins. É um acontecimento significativo, celebrado por toda a comunidade com música, dança e aplicação de penas de aves em seus corpos.
Parte da infância de Rita se passou junto da comunidade Enawenê Nawê, no Mato Grosso, que conheceu quando tinha cinco anos. A experiência deu origem ao premiado Minha família Enauenê (FTD, 2018), ilustrado por Anabella López. A obra recebeu o Selo internacional White Ravens da Biblioteca de Munique, na Alemanha, o Selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), foi eleito melhor livro infantil de 2019 pela Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AELIJ) em 2019 e também foi semifinalista do prêmio Jabuti.
A convivência intensa com a cultura indígena durante a infância faz parte de quem Rita de tornou, da forma como ela enxerga o mundo e de sua produção artística (Foto: Acervo pessoal)
Nas dinâmicas de vida em que a autora cresceu, o coletivo e a partilha eram não apenas um elemento natural na paisagem das relações, mas um modo de ser e estar, que hoje conduz todo um pensamento crítico e o olhar para a sociedade. O que ela descreve como “viver entre mundos” é o denominador comum de seu trabalho, que torna públicas vivências íntimas de imenso valor comunitário.
Aos oito anos, Rita já sabia que queria escrever livros, mas antes passou pelos palcos; nas palavras dela, foi “emprestada pelo teatro”. Estudou Letras na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE ) e teatro na Escola de Teatro Jacques Lecoq, na França. E novamente voltou aos livros.
LEIA MAIS: 8 autores de origem indígena para ler com as crianças
O encontro de um refúgio nas histórias
“Quando voltava pra cidade, os livros, os lápis e papéis eram meu refúgio, o lugar onde eu começava a elaborar, talvez, esse viver entre mundos”, relembra a autora. Desde seus primeiros livros, publicados em 2014, é na literatura – sobretudo em diálogo com as infâncias – que Rita ecoa, até hoje, suas percepções sobre a vida.
Mãe de duas meninas pequenas, com idades entre um e cinco anos, Rita conta que escrever ganhou outra dimensão a partir da maternidade, somado a um contexto específico de isolamento social. “A escrita tomou mais tempo da minha vida a partir da pandemia e da maternidade, momento em que estive afastada das criações coletivas e da cena”.
“Acho que a infância é sempre o principal reduto de inspiração para a criação.” (Rita Carelli)
Seus livros voltados ao diálogo com as infâncias oferecem variadas janelas para essa compreensão de mundo. Carelli é autora de diversas obras nesse segmento, dentre elas O caminho para a casa de barro (Baião, 2023), em parceria com Xadalu Tupã Jecupé; Menina mandioca (Pallas Mini, 2022); Amor, o coelho (Caixote/o-Tal/, 2021). É autora também de Terrapreta (Editora 34, 2021), contemplado com o Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria Melhor Romance.
Entre 2014 e 2015, publicou seis volumes da coleção Um dia na aldeia (Cosac & Naify), composta por seis livros que foram reeditados em 2018 pela SESI-SP, dentre eles A história de Akykysiã, o dono da caça, Um dia na aldeia Wajãpi, No tempo do verão: Um dia na aldeia Ashaninka, ilustrado por Mariana Zanetti, e Depois do ovo, a guerra: Um dia na aldeia Panará. A autora ilustrou também dois livros de Daniel Munduruku – Memórias de índio: Uma quase autobiografia (Edelbra, 2016) e A chave do meu sonho, ou como um parafuso frouxo fez-me encontrar a chave e o sonho ( Uka Editorial, 2021) – e também um de Marcia Kambeba – O curumim e o rio (Krauss, 2023).
Rita ajuda a pensar o seu trabalho a partir de uma palavra: “aliança”. Para ela, trata-se de fazer “reflorestamentos dos imaginários” e cultivar a “construção de pontes”. Em um tempo histórico cindido por pensamentos coloniais e explorado por ideais de dominação, enxergar a realidade a partir de perspectivas diversas oferece caminhos para reconstruir a humanidade.
“Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo”, escreve Ailton Krenak no livro Ideias para adiar o fim do mundo. Afinal, quando nos dispomos a adotar não um, mas múltiplos pontos de vista para viver, passa a ser natural nos perguntarmos que mundos são esses que correm perigo, assim como o tamanduá-Avô de Kuján e os meninos sabidos. Sem as tais alianças que Rita sugere, quais mundos poderão continuar?
(Foto: Acervo pessoal)
Confira a entrevista na íntegra com Rita Carelli
Blog Letrinhas: Você nasceu em São Paulo e passou a infância entre territórios diversos. Como eram essas viagens? Pode contar um pouco sobre as famílias e comunidades que visitava?
Rita Carelli: A primeira viagem a um território indígena de que tenho lembrança (não a primeira de fato), foi para uma aldeia Krahô, no Tocantins. Eu tinha três anos de idade e acompanhei o ritual de iniciação do meu irmão, dois anos mais velho, que foi emplumado junto com os meninos da aldeia. São de lá as primeiras imagens que carrego. Aos cinco, comecei a frequentar um povo indígena com que me relaciono intensamente até hoje, os Enawenê Nawê, no Mato Grosso.
“Nós éramos, evidentemente, diferentes deles, tínhamos uma outra história de vida e uma bagagem diversa, mas a infância é esse território mágico em que somos permeáveis e até diferenças tornam-se matéria de brincadeira no cotidiano compartilhado e profundamente coletivo de uma aldeia.” (Rita Carelli)
Blog Letrinhas: Você circula por aldeias indígenas desde quando estava na barriga de sua mãe. O que essa relação significava pra você, nos primeiros anos de infância?
Rita Carelli: Essa era a minha vida. A melhor parte dela, pelo menos. A comida partilhada, as brincadeiras sem fim, o contato estreito com a natureza, a presença constante dos amigos, os banhos de rio, os rituais. O contato com mundos indígenas desde a mais terna infância segue sendo meu oásis de felicidade, esperança e sabedoria em um mundo tão machucado pela ação humana.
Blog Letrinhas: Você lia, desenhava, fazia arte desde criança?
Rita Carelli: Sim. Aliás, não quando eu estava na aldeia, ocupada demais em brincar e correr, mas quando voltava pra cidade. Os livros, os lápis e papéis eram meu refúgio, o lugar onde eu começava a elaborar, talvez, esse viver entre mundos.
Era onde eu registrava minhas experiências e inventava outras vidas. Aos oito anos já queria ser escritora, mas o teatro me pegou emprestada primeiro. Fui palhaça, atriz de cinema, até voltar para os livros.
Blog Letrinhas: Você estudou Letras em Recife e Teatro em Paris, e hoje é escritora, atriz, diretora, ilustradora. Como essas diversas funções se conciliam no dia a dia?
Rita Carelli: Acho que essas diferentes formas de expressão, ao invés de se chocarem, se complementam. Uma história às vezes pede uma determinada forma para encontrar o outro. Para mim pode ser em forma de peça, de filme, de texto, de imagem. Gosto de passar de uma forma de criação artística para outra, isso cria respiros, novas conexões. Também te faz encontrar diferentes públicos.
A escrita tomou mais tempo da minha vida a partir da pandemia e da maternidade, momento em que estive afastada das criações coletivas e da cena. O problema é que agora ela não quer devolver o espaço que conquistou!
Blog Letrinhas: A partir de quando a proximidade com comunidades indígenas se mostrou pra você como um caminho profissional?
Rita Carelli: Eu demorei um tempo para fazer dessa proximidade um caminho profissional. Ela sempre foi muito constitutiva para mim, mas a princípio eu não achava que precisava falar disso diretamente em minhas obras. Até que a necessidade chegou, com a idade, em um certo momento da vida, e principalmente vendo o tanto de ignorância que ainda cerca os mundos indígenas.
Em determinado ponto, tornou-se impossível carregar tantas experiências preciosas e me furtar de compartilhá-las. Tive uma enorme sorte em minha criação por conta da trajetória dos meus pais e, já sendo artista, foi natural voltar-se para essa seara.
Blog Letrinhas: Como você se coloca hoje nessas relações de universos culturais distintos? Quais os desafios de narrar histórias de autores indígenas na escrita e na ilustração?
Rita Carelli: Gosto de pensar em termos de alianças. Tenho muito prazer em compartilhar alguma expertise acumulada até aqui a serviço de um projeto maior que eu, de reflorestamentos dos imaginários, de construção de pontes entre mundos. Tem muita gente envolvida nesse projeto e adoro ser mais uma.
Minha criação me ajuda muito nesse trânsito, mas também as relações que sigo cultivando ao longo da vida. É um estado de disposição para o encontro e a partilha. Sendo mais específica, quando organizo os livros de Ailton, por exemplo, o que ele diz, mesmo se sua forma de dizer é deliciosamente provocadora e original, me é familiar, eu reconheço os princípios que guiam seu pensamento, e isso facilita muito.
Em outro exemplo, quando fui convidada pela Mell (Brites), da Baião (selo infantil da Todavia) para compor o texto do livro do artista indígena Xadalu. Eu sabia quais perguntas devia lhe fazer para encontrar um caminho que nos guiasse através de sua história, e isso é bastante. Na ilustração, minha bagagem também me faz ganhar muito tempo e não incorrer em equívocos para os quais ideias pré-concebidas podem nos levar.
Acho que esse é o grande desafio nessa tarefa de narrar e ilustrar histórias indígenas: fugir do genérico e das ideias pré-concebidas, colaborando, minimamente, para diminuir a ignorância que ainda cerca esses povos e não aumentando o fosso.
Blog Letrinhas: Em termos de valores, referências e modos de habitar o mundo, quais são suas identificações pessoais com os povos originários?
Rita Carelli: Talvez uma das heranças dessas vivências seja relativizar a centralidade da humanidade e dessas categorizações – raciais, mas também de espécies e entre o visível e o invisível. O mundo indígena está baseado sobre outras alianças e cambialidades, as identidades são mais fluidas e eu me sinto parte desse fluxo. Mas se é para fazer uma leitura do mundo baseada na racialização, o exercício de circular entre mundos e de ser “o outro” me serve para nunca esquecer de racializar, antes de tudo, os brancos.
“Em um mundo perspectivista, é no encontro radical com o outro que eu amplio minha visão de mundo.” (Rita Carelli)
Blog Letrinhas: Enxergar a diversidade das centenas de etnias brasileiras passa por evitar generalizações, idealizações, distanciamentos. Como você busca acomodar tantas particularidades nas suas criações, sobretudo as infantis?
Rita Carelli: Evitar as generalizações e até mesmo as idealizações é fundamental. Nas ilustrações de Kujan e os meninos sabidos, por exemplo, temos ali uma vegetação de cerrado, não estamos na floresta amazônica, na mata atlântica ou nos pampas, mas em um cenário específico que faz parte do modo de ser dos Burum. E, para os olhares mais apurados, o livro também tem várias brincadeiras visuais sobre o perspectivismo indígena.
Na coleção que organizei em parceria com a Vídeo nas Aldeias chamada Um dia na Aldeia, que foi editada originalmente pela Cosac Naify e reeditada pela editora do SESI, você não vai encontrar indígenas genéricos nas imagens, mas indivíduos com traços, adornos, grafismos, casas, aldeias etc. específicos de cada povo retratado nos livros. É uma responsabilidade grande, mas quando se faz junto com os indígenas as chances de acertar aumentam muito.
Blog Letrinhas: A produção contemporânea de autores indígenas vem lutando por espaço no mercado editorial – e em outros setores da arte. Nos livros, como você vê essa trajetória? O que falta?
Rita Carelli: A produção dos autores e artistas indígenas é muito profícua e potente e tem, felizmente, ganhado cada vez mais espaços. Nos livros, já temos algumas décadas de estrada com pioneiros como Daniel Munduruku, Eliane Potiguara e Kaká Werá, que abriram caminho para muita gente, mas, na última década, o movimento dos autores indígenas ganhou mais força e novos espaços dentro do mercado editorial. A maior parte da produção dos autores indígenas estava voltada para a infância, que é um segmento maravilhoso, mas ela não deve se restringir. Arrisco dizer que veremos muitas novidades nesse sentido nos próximos anos.
Blog Letrinhas: Como foi a parceria de criação com o Ailton Krenak neste primeiro livro ilustrado dele?
Rita Carelli: Essa parceria vem de longa data, marcou os livros adultos de Ailton na Companhia das Letras e agora fizemos esse primeiro livro para a infância juntos – que eu espero que seja o primeiro de vários. (Quem sabe depois da trilogia para adultos, a gente não emende em uma trilogia para crianças?).
Ailton também tem um pé nas artes visuais e gostou muito da criação gráfica que eu fiz para a história do Kuján, o que me encheu de alegria. Devo dizer que é uma parceria bastante fluida, que conta com muita liberdade e intimidade. Na verdade, fui eu que botei lenha na fogueira para fazermos esse livro, baseado nessa história que ele já tinha compartilhado anteriormente e toquei o barco junto com a ótima equipe da Companhia das Letrinhas. No final, Ailton fez alguns ajustes de texto e o livro nasceu.
Blog Letrinhas: O livro reconta, agora em múltiplas linguagens, uma história que Ailton traz em um livro organizado por você, A vida não é útil (Companhia das Letras, 2020). Como vocês pensaram a tradução desse mito de origem Krenak para o formato livro ilustrado, em diálogo também com as crianças?
Rita Carelli: As histórias são o tesouro comum do povo, sua fonte de sabedoria e conhecimentos. E aqui eu não estou falando apenas de histórias moralmente enaltecedoras no modelo eurocêntrico que muitos podem estar imaginando, mas de todas elas, também com seus anti-heróis, tropeços, picardias.
“Eu vejo a fonte das histórias de uma nação indígena como um grande tipiti, o cesto comum para escorrer a mandioca ralada e que fica no centro de algumas casas indígenas do qual todos que vivem naquela casa podem se servir para fazer os seus beijus.” (Rita Carelli)
Nos mundos indígenas, não existe a categoria “história para criança”, mas como na nossa sociedade tudo é mais segmentado achei que valia pena pegar a história do Kuján e compartilhá-la também com as crianças. É o que eu gostaria de fazer ainda com outras histórias e palavras de Ailton – e quem sabe de outros autores indígenas que estão aqui na editora também?
Blog Letrinhas: Em Kuján e os meninos sabidos, as crianças exercem o importante papel de enxergar o que os adultos não veem. No nosso atual contexto, de urgência de repensar todo um sistema de existir, como escutar as crianças?
Rita Carelli: Acredito que as crianças são muito infantilizadas em nossa sociedade, e não necessariamente de um modo positivo. Muitas vezes, elas são vistas como incapazes, como projetos de algo vindouro e não como seres inteiros em sua potência e capacidades – que são diferentes das dos adultos, naturalmente, mas não inferiores.
Esses temas, inclusive, foram abordados no livro Futuro Ancestral, que era um desejo antigo meu, reunir as observações de Ailton sobre essa fase tão especial da vida de qualquer ser humano. Acabei conseguindo organizá-las em um texto que batizamos de “O coração no ritmo da terra” e incluí-las nesse último volume adulto que fizemos juntos. Depois que entreguei o texto final à editora, fiquei pensando: “por que não falarmos agora diretamente com as crianças?”. E assim nasceu a ideia desse novo livro.
“Se quisermos mudar alguma coisa em nossa maneira de habitar o planeta, o que parece a cada dia mais necessário e urgente para uma parcela cada vez maior da humanidade, é preciso começar a ouvir as novas gerações – e também falarmos com elas sobre os nossos erros e acertos.” (Rita Carelli)
Blog Letrinhas: Um adjetivo chama atenção no título Kuján e os meninos sabidos. Pra você, qual é a sabedoria de ser criança?
Rita Carelli: Para muitas sociedades indígenas as crianças estão mais próximas do mundo espiritual, por isso sua visão é mais límpida sobre o que concerne esse aspecto da vida, o que é uma grande forma de sabedoria. Eu compartilho dessa visão.
Blog Letrinhas: Como a sua maternidade se conecta à infância que você teve? Como é a relação de suas filhas com os universos que você retrata nos seus livros e outras produções?
Rita Carelli: Minhas filhas, por enquanto, estão seguindo nossos passos. A mais velha atravessou uma pandemia de COVID-19 que a deixou mais reclusa em boa parte da sua vida, mas já nos acompanhou em várias aldeias; esteve entre os Enawenê Nawê, no Mato Grosso, onde foi amamentada por várias mulheres, fez visitas com o pai aos amigos Mbya Guarani, em São Paulo, e foi conosco à aldeia Krenak, em Resplendor-MG. A mais nova também nos acompanhou neste ano à Serra do Padeiro, território Tupinambá na Bahia. O que aparece nos livros ou filmes que faço elas conhecem de perto.
Blog Letrinhas: Quanto às inúmeras infâncias não indígenas, em territórios urbanos, rurais e outros, o que elas podem aprender com as crianças indígenas?
Rita Carelli: Podem conhecer bichos que nunca viram, saber que no Brasil se falam muitas línguas além do português, que tem muitos jeitos de brincar, de viver, de estar no mundo.
As crianças já têm essa abertura, o prazer da descoberta de novos conhecimentos, cabe a nós cultivá-la. É assim que construiremos um mundo mais respeitoso e plural. E também, ouso dizer, mais bonito e cheio de sentido, onde as relações não são todas mediadas pelo consumo.
(Texto: Renata Penzani)
LEIA MAIS: Vamos recuperar a floresta?