Por Antonio Castro
Das lembranças que tenho da minha infância, uma das mais marcantes é a de passar a semana juntando trocados para, na quinta-feira, ter os sete reais que me permitiriam comprar o novo número da Recreio que chegava religiosamente na banca do seu Zé, pertinho da minha casa.
Naquela época, a revista quase sempre vinha acompanhada por brindes colecionáveis, e continha uma grande variedade de textos, reportagens, curiosidades e desenhos que eu devorava — um sonho frustrado foi nunca ter tido uma pergunta respondida na seção “Curiosidades”, no início da revista.
Nesse tempo, nem passava pela minha cabeça que eu não era a primeira criança a mergulhar e me divertir com uma Recreio. Aliás, tudo vai muito além disso — eu tinha em mãos um dos marcos da literatura infantil brasileira, que surgiu em um dos momentos mais delicados da nossa história.
O período em que o Brasil esteve governado por um regime militar, de 1964 a 1985, foi marcado por incontáveis atrocidades aos direitos humanos e sociais — entre elas, está a censura aos meios de comunicação e à produção artística da época. Para tanto, a mais significativa das atitudes do governo foi o Ato Constitucional n. 5, assinado pelo então presidente general Artur Costa e Silva, que instituía a censura prévia da imprensa e de produções artísticas — um ato que visava, nas palavras de Roberto Schwartz, “liquidar a cultura viva do momento”.
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Capa da primeira edição da revista Recreio
Foi nesse cenário tão impróprio à literatura e quaisquer outras manifestações, que nasceu uma revista voltada para o público infantil, cujas páginas coloridas guardavam uma produção literária extremamente potente: a revista Recreio.
Lançada em maio de 1969 pela editora Abril, então dirigida por Victor Civita, a Recreio tinha como objetivo entreter e educar o público infantil (algo que, na visão de Civita, era essencial para a formação de um país leitor), e era composta por uma proposta de brincadeira, um brinde e uma história original — um formato de sucesso estrondoso, já que ainda nos primeiros meses de vida, a revista chegou a ter uma tiragem semanal de 250 mil exemplares.
Segundo a jornalista Sonia Robatto, responsável pela idealização e produção dos primeiros números da Recreio, a proposta da revista era “ser uma revista infantil de caráter brasileiro, oferecendo textos com uma linguagem coloquial; e a linguagem escrita deveria aproximar-se cada vez mais da linguagem oral” (MACHENS, 2009, p. 43).
As histórias giravam em torno das experiências comuns à infância, e variavam de tema: podiam ser sobre um jogo de futebol, um caso engraçado da vizinhança ou de uma família. Muitas delas continham elementos fantásticos, e várias outras traziam à tona histórias folclóricas e culturalmente importantes para o Brasil. A representatividade também marcava as narrativas, que não raro falavam sobre indígenas e tinham crianças negras como protagonistas.
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A estreia de autores infantis clássicos
Sandra também foi a responsável por encontrar e reunir autores que desejassem ter suas histórias publicadas na revista — a maior parte deles seria estreante na literatura infantojuvenil, mas isso não os impediu de desenvolver histórias ricas e complexas, que não subestimavam a inteligência do leitor nem pretendiam produzir um texto pedagógico ou moralizante. Ana Maria Machado, Ruth Rocha e Joel Rufino dos Santos estrearam os primeiros números da revista, iniciando ali uma longa e profícua produção para o público infantil.
Esses escritores chegavam num momento de entrave na literatura infantil brasileira, que desde a morte de Monteiro Lobato vinha com um crescente número de autores cuja produção se resumia a uma literatura moralizante e com fins pedagógicos — Regina Zilberman e Marisa Lajolo comentam que essa geração produziu “obras repetitivas, explorando filões conhecidos e evitando a pesquisa renovadora” (1999).
Na Recreio, a exemplo do escritor paulista, os autores encontraram espaço para produzir textos que exploravam o poder transformador da palavra, valorizando a função lúdica da literatura infantil, e abusando de metáforas, polissemias, símbolos e outros recursos de linguagem.
Nelly Novaes Coelho também pontua que esses novos escritores, além de se darem à liberdade de experimentar com a linguagem, deixam de lado uma literatura já segura e padronizada e a substituem por “uma literatura inquieta/questionadora, que põe em causa as relações convencionais existentes entre a criança e o mundo em que ela vive, questionando também os valores sobre os quais nossa sociedade está assentada” (2010).
Formar leitores em meio à ditadura
Assim, a literatura infantil produzida no início dos anos 1970 com a Recreio não era ausente de intenções — era um veículo de transformação social, produzida por autores que queriam formar leitores conscientes da realidade do país em que viviam. Levando em consideração a época em que aqueles textos estavam sendo escritos, é notável o fato de terem passado despercebidos pela censura dos militares.
Mas como a própria Ana Maria Machado pontua em uma palestra proferida na Academia Brasileira de Letras, “Pelas frestas e brechas: A importância da literatura infantojuvenil brasileira”, diversos intelectuais procuraram em gêneros alternativos brechas “que permitissem o uso de uma linguagem altamente simbólica, polissêmica, multívoca. [Esses intelectuais] Faziam uma aposta num leitor inteligente que os decifrasse e embarcasse com naturalidade em seu universo metafórico” (2016).
Não à toa, além da literatura infantojuvenil, esse período assistiu ao crescimento da Música Popular Brasileira e da poesia marginal, gêneros igualmente frutíferos quando tratamos do uso metafórico e polissêmico da linguagem.
A Recreio circulou nas bancas brasileiras neste formato até 1981 — ela volta a ser publicada em 2000, também sob comando da Abril, mas é extinta em 2018, quatro anos depois de ter passado a fazer parte do grupo da editora Caras. Ao longo dos anos, ainda lança uma série de novos escritores e ilustradores de literatura infantil como Marina Colasanti, Sylvia Orthof e Renato Canini, e marca gerações de crianças que, como eu, entraram em contato pela primeira vez com a literatura através das suas páginas — e começaram, aí, a se formar enquanto leitores.
Antonio Castro é editor da Companhia das Letrinhas e Seguinte e mestrando em literatura infantil na Universidade de São Paulo.
Bibliografia
COELHO, Nelly Novaes. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: Das origens indo-europeias ao Brasil contemporâneo. 5. ed. Barueri: Amarilys, 2010.
MACHADO, Ana Maria. Ponto de fuga: Conversas sobre livros. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
MACHENS, Maria Lucia. Ruptura e subversão na literatura para crianças. São Paulo: Global, 2009.
ZILBERMAN, Regina; LAJOLO, Marisa. Literatura infantil brasileira: história & histórias. 6. ed. São Paulo: Ática, 1999.
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