Escrever para crianças: existe uma receita?

30/10/2018

 

Por Silvana Tavano

“Mãe, você não sabe segurar o drama!” Com essa sentença implacável, meu filho, na época com uns 5 anos, fez com que eu desistisse de inventar as histórias que contava para ele todas as noites. Pena não me lembrar da história daquela noite; só guardei a frase (e o tom ligeiramente irritado com que foi dita), mas tenho quase certeza de que estava tentando enredar alguma aventura entre o era uma vez e o felizes para sempre.

O fato é que, depois disso, passei o bastão para Eva Furnari, Ruth Rocha, Silvia Orthof, Roald Dahl e Andersen, e me limitei a ler seus autores preferidos, caprichando na interpretação. E lendo essas obras fui me dando conta de que “segurar o drama” ia muito além de prolongar o suspense, como pensei num primeiro momento; ação, mistérios e aventuras mirabolantes podem ser ingredientes saborosos, mas o enredo não se sustenta sem uma boa pitada de imaginação – só com esse fermento a história cresce e se multiplica em camadas de sentidos que são percebidos de um modo aos cinco anos, de outro, aos sete, e de muitos outros pelos leitores adultos.

 

Ilustração Marcelo Tolentino

 

Talvez essa tenha sido a primeira lição que aprendi, muito tempo antes de começar a escrever para crianças: se a massa não tiver consistência, o recheio se desfaz, perde o gosto. E como é difícil fazer um bolo saboroso! Erra feio quem lança mão de receitas simplificadoras, pois a senha de acesso ao universo infantil não funciona com códigos infantilizados; palavras no diminutivo também não abrem essa porta – pelo contrário, reduzem a capacidade da criança que escuta e, depois, lê, restringindo suas possibilidades de aquisição de conhecimento.

Mas, então, como escrever para crianças: será que tem receita? Em uma rápida busca no Google, encontro a resposta mastigada em oito dicas ou 20 passos ou, ainda, as melhores técnicas, com instruções sobre como e o quê vai agradar esses leitores. Vale dizer que nem tudo ali é desprezível, mas é provável que uma história criada a partir desse tipo de guia não desperte nada além de bocejos antes da terceira ou quarta página, com o mesmo desinteresse que faz o adulto abandonar um livro ruim. Talvez a resposta não esteja mesmo em nenhum guia, mas dentro de cada autor, na ponte que ele constrói com um universo que já não é o seu, mas onde ele ainda se reconhece. Quando escrevi a primeira história da bruxa Creuza, eu não estava pensando nos leitores; em “Medo de Avião”, brinquei com as palavras para tentar rir do meu bicho-papão, o pavor de voar, primo do medo de escuro, do monstro debaixo da cama, do palhaço assustador. Sem abrir mão do lugar de adulta na construção da narrativa, eu me permiti entrar no meu território infantil e penso que só assim pude escrever do ponto de vista da criança, pensando como ela, sentindo o que ela sente.

Nem sempre é fácil migrar para esse país antigo -- a infância que deixamos para trás quando nos tornamos adultos. Há que se reaprender o idioma, redescobrir palavras, conversar com as crianças para recuperar o ritmo das frases. Só assim obtemos o visto de entrada e podemos circular com naturalidade nesse país. Ouvir o que têm a dizer, brincar com elas ou simplesmente sentar numa praça no meio da tarde e observá-las para se lembrar: como era mesmo aquela imensa curiosidade sobre todas as coisas?

Escrever para crianças é falar com elas, ler todos os livros que as fascinam, reler os livros que marcaram a nossa própria infância, mergulhar no cânone com La Fontaine, Jonathan Swift, Charles Perrault, Irmãos Grimm, Collodi, Carroll, Roald Dahl, Rodari, Lobato, e passar horas nas livrarias entre Bartolomeu Campos de Queirós, Sylvia Orthof, Maurice Sendak, Tatiana Belinky, Wolf Erlbruch, Angela Lago, Lygia Bojunga, Marina Colasanti, Roger Mello e dezenas de autores geniais. Também é fundamental estudar com Peter Hunt, Nelly Novaes Coelho, Ana Garralón, entre tantos especialistas que se dedicam à literatura infantil.

Tudo isso entra numa possível receita, mas a verdade é que só temos certeza de que o bolo deu certo quando as crianças gostam. Nas visitas às escolas, sempre levo uma história nova – teste dos testes! E são eles, ouvintes atentos e exigentes, que me dizem se consegui ou não “segurar o drama”.

***

Silvana Tavano é escritora e professora do curso de Pós-Graduação em Formação de Escritores, pelo Instituto Superior de Educação Vera Cruz. Escreveu dezenas de obras para crianças e jovens, como Creuza em Crise – 4 Histórias de Uma Bruxa Atrapalhada e Encrencas da Creuza, pela Companhia das Letrinhas. Tem títulos publicados na Argentina, Japão, China, México, Alemanha, Suécia e Turquia.

 

 

 

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