Como ajudar as crianças e os jovens a se autoconhecerem?

16/05/2022

Um polvinho chamado Maurício é do tipo que prefere aparecer o mínimo possível, seja nas aulas ou na hora do recreio, e faz um esforço enorme para ir a festas de aniversário. Ele é tímido e tem de lidar com isso, assim como sua mãe, que acompanha o filhote nesses momentos mais difíceis com muito carinho.

Agora, corta para uma criança que começa a perceber toda a sua potência interna e a descrevê-la por meio da metáfora de uma árvore. Com raízes profundas, tronco que tenta chegar ao céu, frutas saborosas e galhos fortes, ela reconhece sua própria natureza por meio da natureza que abriga essa árvore, e desperta para a percepção dessa mesma força no outro.

O polvo Maurício e essa criança que tem uma árvore dentro de si são os protagonistas de Tímidos, da autora italiana Simona Ciraolo, e A árvore em mim, de Corinna Luyken, lançamentos de maio da Companhia das Letrinhas e da Pequena Zahar, respectivamente. Em comum, esses personagens tão diferentes parecem ter o fato de que estão conhecendo melhor a si mesmos e entendendo sua forma de estar no mundo.

Esse processo de se descobrir e se fortalecer como sujeito único entre outros tem início na infância e faz parte da graça e do encantamento de ser criança. Mas... a beleza desse longo processo de adquirir consciência dos próprios limites e potências não alivia o fato de que ele também é caótico e desafiador. Como as crianças desenvolvem aos poucos as habilidades para regular suas emoções, esses movimentos internos de amadurecimento resultam, com frequência, em comportamentos que são considerados desafiadores e conflitos.

Como então a família pode acompanhar as crianças e os jovens nesse caminho e ajudá-las a se conhecer, mesmo quando elas agem de maneira considerada difícil e contestadora?

 

Entender a fase do desenvolvimento cognitivo e afetivo

A neuropsicóloga Danielle Rossini pontua que não há uma regra ou um manual para isso, mas que é possível lançar mão de alguns recursos essenciais para exercer uma parentalidade intencional e não apenas reativa. “Existe uma tendência natural, da nossa parte, de ser reativos diante desses comportamentos. Se uma criança ou um adolescente vem com essa força toda, nós, que somos adultos, vamos ler isso como agressividade, como desobediência. A nossa tendência é dar uma bronca e brigar.”

Como o papel dos pais e das famílias é ajudar as crianças a se conhecer e a modular as suas reações, é preciso considerar algumas estratégias para evitar a reatividade dos adultos diante de comportamentos mais explosivos das crianças, sem abafá-los.

Um estratégia é entender que os momentos da vida em que os comportamentos se manifestam de um jeito mais intenso e desproporcional são anúncios de que há uma grande revolução em curso dentro dessa criança ou desse adolescente. “São degraus do desenvolvimento cognitivo, em que acontece uma ‘alavancada’ na forma de pensar”, ela diz.

A partir do momento em que o adulto entende que aquele comportamento corresponde a um grande avanço no pensamento e é sua manifestação exterior, fica um pouco mais fácil tentar manejar a situação. “Assim, quando vemos que uma criança ou um adolescente tem um comportamento que nos pega de alguma forma, podemos dar um passinho para trás e perguntar: ‘por que será que meu filho está agindo dessa maneira? O que será que está acontecendo que está causando esse movimento emocional? Será que ele está passando por alguma dificuldade? Será que está com fome, cansado?’ É uma tentativa de entender o que ele precisa naquele momento”, orienta Danielle.

Esses momentos de intenso desenvolvimento cognitivo, manifestados em comportamentos reativos e intensos, acontecem ao longo de toda a infância, mas algumas idades apresentam uma mobilização maior. Isso ocorre, de maneira mais vigorosa, por volta dos 2 e 3 anos, entre os 5 e os 7 anos e, claro, na puberdade e na adolescência.

 

A criança entre 2 e 3 anos

Por volta desse período, acontece um processo de individuação, em que a criança passa a se perceber com alguma diferenciação em relação à figura materna, com quem tinha, até então, uma ligação quase simbiótica. Essa percepção está ligada a um enorme salto cognitivo, que é o desenvolvimento do pensamento simbólico - a base para a construção da linguagem falada de qualidade.

“A criança começa a perceber que as ideias e as imagens existem dentro da cabeça dela. Ela vê um gato e fala ‘gato’, porque a ideia do que é um gato já se desenvolveu internamente”, exemplifica Danielle. Com esses elementos cognitivos mais estabelecidos, a criança também começa a sentir mais claramente que seus movimentos afetivos (como desejos e vontades, por exemplo) são separados daqueles da mãe.

É quando a criança começa a marcar essa percepção socialmente - a apresentar e falar desse novo território mais independente que ela ocupa agora, e onde, com frequência, não vai mais querer fazer o que a mãe quer que ela faça. Afinal, agora suas vontades e seus desejos são outros, diferentes dos dela. “Mas a criança ainda não tem modulação emocional para fazer isso de maneira ajustada, colocando e organizando o próprio pensamento, vontade ou desejo da maneira que socialmente é esperada. Vamos imaginar que essa história está muito no começo, tudo ainda é muito cru”, pontua Danielle.

“Então, quando ela quer alguma coisa, quer agora. Quando fala, é mandando. Esse é o movimento muitas vezes chamado de terrible twos, injustamente. Porque, se pudermos entender o que acontece internamente, esse é o grande anúncio de um salto importante de desenvolvimento da criança.”

 

O que acontece entre os 5 e os 7 anos?

Nessa fase, que marca o fim da primeira infância, a criança começa a passar de uma forma de pensar mais autocentrada para uma que é mais marcada pela alteridade.

“Ela começa a perceber o pensamento do outro. Passa a entender que a forma como o outro percebe e sente as coisas não é igual à maneira dela de perceber e sentir”, explica Danielle. Ela também começa a entrever que só ela tem acesso à sua maneira de pensar e aos seus pensamentos.

Com essa grande mobilização, em que a criança descobre que as outras pessoas pensam a partir de referenciais diferentes dos dela, tem início um padrão de checagem para conferir se esla está lendo corretamente a expressão e o comportamento do outro. “Elas começam a fazer um tipo de pergunta para conferir o que o outro está pensando: ‘mas você está bravo? Você ficou chateado? Você não gostou?” Com essa "checagem", elas vão ganhando mais recursos para entender e interpretar as reações dos outros.

 

A adolescência

Esse período da vida é tão marcante quanto sofrido para toda a família. Adolescentes precisam, ao mesmo tempo, de muito de acolhimento e muito espaço - e essa necessidade contraditória resvala para o conflito com frequência.

Como explica Danielle, “a adolescência é outro grande salto, do ponto de vista cognitivo. É um momento que passa pelo amadurecimento do pensamento abstrato. Eles desenvolvem novos conceitos, concepções, valores. É uma revolução do pensamento, que atravessa o afeto e a socialização, e vai guiar a concepção de uma identidade”.

A neuropsicóloga esclarece que, para valorizar essas novas ideias e conceitos, os adolescentes comumente passam a desmerecer e menosprezar as concepções dos adultos. “Uma queixa comum dos pais é que, de repente, eles passam a não saber mais nada. Quem sabe é o adolescente. E é preciso ter em mente, mais uma vez, que essa 'afronta' é esperada, é o anúncio de uma enorme mudança cognitiva.”

 

A literatura como estratégia

A psicóloga reforça que a ideia central é orientar as crianças a modelar uma resposta emocional às situações difíceis e a se entender melhor a partir daí.

“E as histórias e a literatura são grandes oportunidades para os pais, porque a própria narrativa se apresenta como um modelo. Elas trazem situações que, muitas vezes, a família não viveu, mas isso enriquece seu repertório para lidar com o que de fato acontece. Nos momentos de leitura, as crianças, os jovens e os adultos se projetam nos personagens e na narrativa”, explica.   

Assim, a leitura compartilhada, mesmo com crianças mais velhas e pré-adolescentes, por exemplo, abre espaço para conversas sobre situações que aconteceram na família e para fazer comparações e analisar os personagens e suas maneiras de viver. Esse movimento de falar e refletir sobre o que aconteceu, por meio de uma narrativa, oferece recursos para a criança passar a nomear o que sente e o que vive, o que gosta e o que não gosta.

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