Lara ficou muito animada quando soube que ia estudar com seu melhor amigo Martim, companheiro de aventuras do parquinho. Por isso, também ficou bastante surpresa quando ele começou a ignorá-la na hora do recreio para jogar futebol com outro menino da mesma turma, Lucas, que não gostava de suas brincadeiras. É a partir desse desentendimento, uma situação bastante comum na infância, que Carolina Nalon desenvolve o livro O círculo: conversando a gente se entende (Escarlate, 2022), para falar sobre resolução de conflitos e comunicação não-violenta com crianças e adolescentes. E traz uma interessante dinâmica para lidar com a questão, que é a adoção do "círculo restaurativo", uma atividade os participantes são convidados a praticar a escuta e comunicar suas emoções. Mas como lidar com os diferentes conflitos, de brigas por ciúmes a bullying, que ocorrem com as crianças e jovens, nas mais diversas idades? É preciso intervir ou deixar com que eles mesmos resolvam entre eles. Como ajudar nesse processo, que muitas vezes envolve a própria reeducação do adulto?
O círculo restaurativo, abordado no livro O círculo: conversando a gente se entende, se baseia na comunicação não-violenta para resolver conflitos
O princípio da Comunicação Não-Violenta
Carolina Nalon e Roseli Caldas, professora do curso de psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, explicam como uma boa conversa pode pôr fim a maior parte dos conflitos que aparecem durante o desenvolvimento infantil e adolescente. E dão dicas de como conduzir esse processo, de modo não autoritário, e ajudar os pequenos a falarem de suas emoções. O círculo restaurativo, por exemplo, é alinhado a uma série de técnicas desenvolvidas por Marshall Rosenberg, conhecidas como Comunicação Não-Violenta (CNV). Elaboradas para aprimorar relacionamentos, são um “empurrãozinho” para quem tem dificuldade para comunicar seus sentimentos de forma saudável, principalmente em momentos de estresse. Foi o que aconteceu com Carolina, que decidiu estudar as dinâmicas da CNV para desconstruir algumas formas de se relacionar com os demais. Hoje ela é especialista em Comunicação Não-Violenta e mediadora de conflitos no Instituto Tiê, fundado por ela.
Não somos educados para nos comunicarmos de uma maneira conciliadora, mas para julgar os outros. Achamos que falar o que pensamos é sinal de autenticidade. Para ajudarmos as crianças, precisamos mesmo nos reeducar. Os conflitos fazem parte da vida e raramente paramos para tentar aprender como lidar melhor com eles (Carolina Nalon, autora e especialista em Comunicação Não-Violenta)
Esse é um passo essencial para ajudar as crianças a lidar com conflitos, já que muito do que os mais jovens aprendem é pelo exemplo. Nesse ponto, pais e educadores ocupam um papel de referência. O modo como se relacionam com os outros é também ensinado às crianças na convivência diária, e é importante que estejam em um processo constante de repensar suas ações.
Isso nem sempre é fácil. É o que explica Roseli Caldas, que também é membra da diretoria da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, a ABRAPEE. Segundo ela, quando o descontrole acontecer, o ideal é que o adulto saiba pedir desculpas. “A criança vai ver que os pais não são deuses, que eles erram, mas percebem e a partir do próprio erro ensinam.”
A autonomia e o momento certo para intervir
É preciso entender que a resolução de conflitos envolve uma série de habilidades que não estão dadas, mas que são aprendidas. Por isso, durante os primeiros anos de vida, o ideal é que os adultos garantam às crianças intervenções que não apenas resolvam o conflito de imediato, mas que funcionem de forma pedagógica para, com o tempo, ensiná-las a resolverem suas próprias brigas e discussões.
Algumas ações mais imediatistas, como o abraço forçado e o pedido de desculpas, podem atrapalhar esse processo, como explica Roseli, da ABRAPEE. Apesar de acabar com o conflito de maneira rápida e fácil, a ação não ensina a criança e, além disso, ainda banaliza o afeto e o perdão. Nesses casos, o melhor é conversar com os mais jovens e fazer perguntas: como a briga foi resolvida? Sua atitude funcionou? Qual outro jeito seria melhor para resolver essa situação?
O mesmo vale para o ambiente escolar: “Na escola eu vejo direto: a criança briga, vai pra diretoria e perde a chance de trazer ali uma situação pedagógica para os demais alunos”, lembra a profissional. Em vez da resposta fácil, vale ouvir as crianças e problematizar, fazer perguntas para que elas entendam o que fizeram, o que poderiam ter feito e como poderiam ter dito de outra forma, por exemplo. Nesse sentido, “tanto a escola quanto a família são laboratórios-oficina de relacionamento e, portanto, de lidar com conflito”, explica.
O livro de Carolina Nalon ajuda as crianças a falarem de seus próprios sentimentos
O conflito pode ser importante, inclusive, para o desenvolvimento da identidade da criança. É o que defende o autor Henri Wallon, citado pela psicóloga. Para ele, é a partir do conflito que se criam noções como a diferenciação, de que cada pessoa é de um jeito e tem gostos diferentes.
Mas vale lembrar que esse é um processo que envolve tempo. Até a idade de quatro a cinco anos, por exemplo, a criança ainda precisa da heteronomia, ou seja, da intervenção de um adulto para impor os seus limites. O aprendizado é constante e, ainda adultos, nos deparamos com conflitos que nos parecem desafiadores. É um processo da vida toda que não é fácil, mas essencial.
3 dicas de como ensinar as crianças a resolver conflitos
Aprender a lidar com conflitos é um processo que envolve tempo e diálogo. Muitas atividades do cotidiano da criança, no entanto, podem ajudar na criação de um repertório, que mais tarde servirá de base para lidar com esse tipo de situação de forma saudável e não violenta. A psicóloga Roseli Caldas deu algumas dicas de como exercitar isso com as crianças.
1. Praticar jogos
Nada como perder um bom jogo para aprender a lidar com a frustração. Além de envolver competição, ou seja, a vontade de se dar melhor que o outro, essa dinâmica também impõe aos jogadores regras que devem ser seguidas. Pode escolher o jogo de sua preferência, mas cuidado: não deixe a criança ganhar todas as vezes.
2. Ler histórias
As histórias têm um grande poder de ajudar adultos e crianças a lidarem com questões difíceis da vida. Isso também vale para os conflitos interpessoais, em que sentimentos como frustração, raiva e inveja entram em jogo. É importante, no entanto, que o momento da história (que pode estar em um bom livro, filme ou até no desenho animado) seja acompanhado de reflexão, e não moralismo. Busque fazer perguntas e construir conversas: está vendo o que os personagens estão fazendo? Será que esse é o melhor jeito? Como você faria?
3. Incentivar o faz-de-conta
Que tal brincar de teatro? As crianças têm a criatividade solta, e uma situação de brincadeira pode logo enveredar para uma conversa proveitosa. Tente exercitar isso e pergunte, por exemplo, como a pessoa diria aquilo que disse de uma outra maneira. Assim, vocês estão criando juntos recursos para que a criança resolva seus conflitos quando você não estiver por perto.
Outros livros que falam sobre emoções, frustração e conflito
A raiva, de Blandina Franco e José Carlos Lollo (Pequena Zahar,
Premiado com o Jabuti 2015, este livro mostra como uma raivinha à toa pode crescer e virar um grande monstro. Uma história que ajuda a pensar nos sentimentos e traz autoconhecimento a crianças e adultos
Que semana!, de Carl-Johan Forssén Ehrlin e ilustrado por Silvana Rando (Companhia das Letrinhas, 2019)
A família de Mário se muda de cidade e ele vai precisar lidar com muitas situações novas e difíceis, e enfrentar emoções como medo, dor, saudade... Baseado em técnicas de psicologia comportamental e de comunicação, o autor dá ferramentas para os adultos ajudarem os pequenos a passarem por momentos tumultuados de forma mais tranquila.
Gildo está fora do ritmo, de Silvana Rando (Brinque-Book, 2022)
É um dia atrapalhado para o querido elefante Gildo, que acordou atrasado e agora está todo fora de ritmo. Essa situação faz com que ele fique bastante ansioso. Vai ser preciso respirar fundo, olhar para si mesmo e dar uma pausa para que o nervosismo vá embora e ele possa se reconectar.
Eu não acho de jeito nenhum, de Blandina Franco e José Carlos Lollo (Companhia das Letrinhas, 2017)
Eunãoacho e Dejeitonenhum são amigos, mas vivem discutindo pelos motivos mais triviais possíveis: se vai chover, qual será a próxima brincadeira... Não conseguem chegar a um acordo e, com isso, veem sua amizade abalada. Será mesmo que vale a pena tanta briga? Com muito humor e os habituais trocadilhos, os autores levam as crianças a pensar sobre as discussões com os amigos.
Ernesto, de Blandina Franco e José Carlos Lollo (Companhia das Letrinhas, 2016)
Neste livro da dupla de autores, Ernesto é vítima de muitos boatos, que dizem que ele é esquisito, se veste mal entre outras coisas. Ernesto é mesmo diferente, e parece ser isso o que mais incomoda a todo mundo. A intolerância e o bullying ficam tão grandes que Ernesto se vê isolado e sem amigos. Um livro pra pensar nas atitudes, julgamentos e no sentimento do outro.