Criança egocêntrica: como passar por essa fase da melhor forma

18/08/2023

"É meu!" "Devolve." "Tira a mão daí!" Se você convive com crianças, certamente já viu alguma cena assim: uma delas quer o brinquedo que está com a outra que, obviamente, não quer emprestar. Uma puxa de um lado, a outra puxa do outro... até que as duas começam a chorar e o caos se instaura de vez. Os pais assistem, constrangidos, sem entenderem por que é tão difícil compartilhar se é "só um brinquedo" e a criança tem outros tantos. Porém, o que a maioria dos adultos desconhece é que, seguindo o ritmo do desenvolvimento infantil, crianças pequenas ainda não têm maturidade cerebral suficiente para entender conceitos sociais que, para elas, fazem pouco ou nenhum sentido, como ter que esperar a vez na fila ou brincar junto. O que alguns chamam de "egoísmo infantil" é, assim, uma fase, mas a empatia também precisa ser ensinada. E a literatura infantil pode ter um lugar especial no retrato dessa etapa e no convite à reflexão, de uma forma bastante leve e divertida.

 

Ilustração de O mundo é de todo mundo, de Tati Bernardi

Margarida, personagem de O mundo é de todo mundo, na difícil tarefa de entender que nem tudo gitra ao redor dela

 

Em O mundo é de todo mundo, Tati Bernardi estreia na literatura infantil com uma história inspirada em sua filha e na difícil tarefa de educar os pequenos para a vida em sociedade. A personagem da história, Margarida, quer brincar no balanço do parquinho sem o compartilhar, quer tomar água de coco antes de todas as pessoas, quer sempre ser prioridade para tudo. Até que um dia, ela vê o mundo de fora e fica sabendo que ele não é só dela. Parece familiar?

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O egocentrismo faz parte da sobrevivência

Antes de achar que seu filho não enxerga além do próprio umbigo, é importante saber que todas as crianças, até certa idade, são egocêntricas. E, embora esse comportamento gere uma série de desconfortos aos pais, o egoísmo no início da vida é necessário para a sobrevivência. E, mais tarde, é importante para que a criança aprenda a estabelecer limites - não apenas atendendo às necessidades alheias, mas às suas também.

Egoísmo talvez nem seja o melhor termo para classificar esse tipo de comportamento autocentrado das crianças. “É uma palavra que já vem com muito julgamento”, pontua a psicóloga e psicanalista Elisa Motta Iungano. Ela lembra que todos nós temos um olhar egocêntrico e isso é uma questão de sobrevivência, de seleção natural. “A criança precisa, desde muito cedo, aprender a pedir o que ela quer e isso é muito forte, básico e primitivo”, explica.

Basta notar que bebês nascem chorando sem cerimônias e continuam chorando para garantir que suas necessidades sejam atendidas - o alimento, a proteção, o conforto. "O bebê não tem essa percepção de que existe o outro. Quando nasce, não tem nem a percepção do que é ele mesmo: ele é uno com o mundo, indistinto. De certa forma, o bebê acredita que ele é o ‘criador’ de tudo - é esse o nível do egocentrismo. Ele acredita que, chorando, cria o que precisa: o peito, o colo, o cuidado, a atenção”, explica a psicóloga. São meses até que comece a perceber que há algo além dele mesmo.

Conforme o desenvolvimento avança, o bebê vai compreendendo que é um ser separado da mãe. E vai ganhando também o senso de permanência das coisas: se dá conta de que os objetos e as pessoas não somem quando saem de seu campo de visão. Sabe a brincadeira de “cadê? achou!”? O bebê procura quando a pessoa que está interagindo se esconde e entende que ela está ali e não deixou de existir - como ele provavelmente acreditava que acontecia. Esse tipo de constatação vai mostrando, aos poucos, para o bebê que há um mundo ao seu redor - e que há mais, bem mais além dele mesmo. 

Capa de O mundo é de todo mundo, da Tsati Bernardi

O mundo é de todo mundo, de Tati Bernardi com ilustrações de Talita Hoffmann

As interações sociais e o comportamento autocentrado

Por volta dos 2 anos, quando começam a acontecer mais interações fora do núcleo familiar, a criança vai tendo experiências além daquelas que eram completamente individuais e focadas somente nela mesma. Por isso é comum - e esperado - que haja dificuldades, como explica a pediatra Mari Rios, autora do perfil Uma Mãe Pediatra, no Instagram. “A criança não entende que o outro também tem necessidades porque, até ali, as necessidades dela é que eram primordiais”, afirma. 

Mari dá um exemplo que ilustra bem essa perspectiva autocentrada. “Imagine uma criança em um quarto e o pai ou a mãe, que estão na sala, perguntam: ‘Fulana, você quer ir ao aniversário da Beltrana?’ E, aí, a criança balança a cabeça sozinha e acredita que respondeu. Isso porque ela só consegue enxergar a perspectiva dela”, exemplifica. Enxergar a perspectiva e as necessidades de todos que vivem ao nosso redor é um aprendizado, inclusive para os adultos.

Afinal, viver em comunidade pode ser tão desafiador quanto no livro Picolé de lua, da premiada sul-coreana Heena Baek, que mostra o individualismo dos moradores de um prédio em um dia muito quente. Na história, todos se isolam em seus apartamentos, ligando ventiladores, geladeiras, aparelhos de ar-condicionado ao mesmo tempo, até ter um apagão - e é a síndica que vai pensar em uma solução coletiva para aliviar o calor de todos. Para além da empatia e a vida em comunidade, o livro nos faz pensar o quanto o mundo é realmente de todo mundo, e deve ser cuidado e defendido face à crise climática. 

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Com o tempo e com a vivência, os pequenos vão aprendendo a se encaixar no meio social e a conviver. “A criança aprende a dividir, compartilhar e a ter empatia vivendo momentos em que isso é necessário e vendo os adultos fazendo isso também”, diz a pediatra. Por isso, o seu exemplo é fundamental. “A tendência é a criança aprender à medida em que o sistema nervoso dela amadurece”, explica a especialista. Mas isso leva tempo. Portanto, nada de entrar em desespero achando que  há algo errado com seu filho porque ele não quer dividir o brinquedo ou um lanche com o amigo. Muito menos rotular a criança reforçando que ela "se acha o centro do universo" ou que "parece ter o rei na barriga" ou que "se acha a última bolacha do pacote".

Ilustração de Picolé de lua, de Heena Baek

Em Picolé de lua, de Heena Baek, a preocupação com o coletivo 

O que esperar dessa fase autocentrada

Uma criança de 2 ou 3 anos de idade está descobrindo o seu ‘eu’ de uma maneira tão importante, que não gosta de seguir ordens. "Ela quer exercer sua capacidade recém-descoberta de escolher, de optar, de ser dona de si", explica a pediatra. “Ao longo do tempo, ela vai começar a captar as reações depois de partilhar pela primeira vez e vai se sentir bem. Talvez, veja um coleguinha muito feliz e talvez fique feliz porque uma outra pessoa está feliz. Só que isso acontece apenas depois de várias repetições e do amadurecimento".

É devagar que a criança começa a entender a necessidade de se ambientar no meio social e encontra caminhos para fazer isso. Por isso, os adultos precisam ter paciência e ajustar suas expectativas em relação a esse aprendizado. Não adianta brigar ou punir a criança quando ela se recusa a dividir ou a esperar sua vez. É preciso mostrar com exemplos e ajudá-la a compreender e exercitar esse olhar, conforme ela amadurece - e a literatura pode ser uma porta fascinante para esse aprendizado.

No livro O dia Dê, por exemplo, Estevão Azevedo conta a história de um reino em que todo dia era dia de uma data comemorativa - com celebrações sempre malucas, como o Dia Nacional do Pum com a Boca e o Dia Nacional do Imita-bicho. Até que chegou o Dia Nacional do Rei ou Rainha por um Dia. Com cada personagem pensando em si próprio, essa história não acaba nada bem - e Clarice vai se ver diante de um grande desafio.

Muitas vezes, de acordo com a pediatra, o adulto não entende que o egocentrismo é uma fase que vai passar, que faz parte do desenvolvimento e que a empatia é uma habilidade que precisa ser treinada. “Nenhum nadador pula em uma piscina e bate um recorde no primeiro dia”, compara a médica. “Ele vai treinando até se tornar um nadador profissional. As habilidades sociais também são treinadas. Leva anos para o cérebro se desenvolver, recebendo estímulos, absorvendo tudo que está ao redor. Então, temos de ter paciência e ensinar várias vezes, por meio do lúdico, de brincadeiras, de jogos e de livros”, orienta. 

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Egoísmo ou autopreservação: como colocar limites

Aprender a dividir é uma das chaves para uma boa convivência no meio social - uma habilidade preciosa ao longo da vida inteira. No entanto, também é importante ajudar seu filho a entender que nem sempre é preciso ceder. “Eu não quero que o meu filho, no futuro, atenda tudo que for solicitado a ele”, pontua Mari. “Não quero que ele entregue tudo que é dele para uma companheira, um companheiro, um chefe no trabalho. Quero que ele saiba analisar quando pode dividir, quando pode ceder, mas que ele também se enxergue", destaca. Por isso, é importante ajudar a criança a não ir para extremos: nem só para ela, nem só para os outros.

Voltemos ao exemplo do parque: uma criança está brincando e a outra quer ir naquele mesmo brinquedo. Eis o impasse. A criança que está de fora também precisa esperar e até aceitar que o seu filho nem sempre vai querer dividir aquele brinquedo. Você pode negociar e dizer algo como: “Luizinho, daqui 15 minutos, talvez, o Bento já tenha terminado de brincar e ele te empresta” ou “você pode brincar junto com ele”. Mas não há uma obrigação de ceder.

Há situações em que a criança não quer emprestar algum brinquedo específico - e isso não é um problema. Nesses casos, o papel do adulto é intermediar, sugerindo outro brinquedo, por exemplo. Cada caso é um caso e, diante de situações diversas, as soluções serão também diversas. O importante é fazer esses exercício de negociar, tentando encontrar um meio termo, um acordo que seja bom para todo mundo.

Ainda assim, para nós, adultos, pode ser interessante fazer um exercício de alteridade. “Se eu estou com o meu celular, chega outro adulto e fala que quer o meu aparelho, eu não vou ser obrigada a dar. Posso até deixá-lo fazer uma ligação, se for necessário, enquanto eu não estiver usando. Mas não vou querer que outra pessoa fique com o meu celular. Há limites”, destaca. Um adulto não é obrigado a emprestar seus pertences. E uma criança também não. Pode ser gentil? Claro. Mas os limites são muito pessoais. E qualquer acordo precisa ser legal para todos os envolvidos.

 

Livros como aliados no aprendizado da convivência

As brincadeiras, os jogos e as situações sociais são os meios pelos quais as crianças vão aprendendo, aos poucos, as habilidades necessárias para a convivência no mundo, entre elas, saber partilhar. Livros como O mundo é de todo mundo também podem dar uma mãozinha na hora de mostrar para os pequenos que dividir pode ser uma boa experiência. Confira mais sugestões abaixo!

O livro é uma forma lúdica de a criança ampliar sua vivência. Você conta uma história, ela germina na criança e o comportamento nasce de dentro para fora, sem que seja imposto
(Mari Rios, pediatra)

 

Será que eu divido o meu sorvete?, Mo Willems (Companhia das Letrinhas)

Será que eu divido meu sorvete? Mo Willems

Geraldo, o elefante, está aproveitando um sorvete delicioso, mas fica em dúvida: será que ele não deveria dividir o doce com sua amiga, Porquinha? Ela também ficaria muito feliz se pudesse experimentar. Ele tem que decidir e rápido, antes que o sorvete derreta. 

 

Isso é meu!, Blandina Franco (Companhia das Letrinhas)

Isso é meu, Blandina Franco

“É meu” e “Para você não” são frases muito repetidas pela menina que é a personagem central desse livro. Ela não quer dividir nada porque merece muito mais do que as outras pessoas. Porém, aos poucos, ela começa a entender que dividir seus brinquedos tem lá suas vantagens. 

Picolé de lua, Henna Baek (Companhia das Letrinhas)

Picolé de lua

Conviver em sociedade não é nem um pouco fácil. Como equilibrar as suas necessidades com as do outro também? E mais: por que pensar na felicidade de todo mundo, se você pode colocar a sua na frente? Em uma noite tão quente que faz até a lua derreter, os moradores de um prédio descobrem a importância do coletivo. 

 

O dia Dê, Estevão Azevedo (Companhia das Letrinhas)

O dia dê

Clarice vive em um mundo em que todo dia é dia de alguma coisa. Dia Nacional de Andar para Trás, Dia Nacional do Imita-Bicho, Dia Nacional do Pum com a Boca são alguns exemplos de datas instituídas pelo rei. Tudo vai bem até que a majestade inventa o Dia Nacional do Rei ou Rainha por Um Dia, quando todo mundo pode mandar… Como cada um quer impor seus próprios desejos, a confusão está formada!

 

O que é preciso para ser rei?, Tino Freitas e Leo Cunha (Pequena Zahar)

O que é preciso para ser rei?

O que faz um rei é uma coroa? Um castelo? Um reino? Súditos? Com perguntas e reflexões, o livro ajuda a pensar no que, de verdade, faz com que alguém possa ser um bom líder. O ingrediente principal é ouvir as pessoas e tentar entender quem não pensa igual a nós.

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