Irônica. Ácida. Sarcástica. Verborrágica. Destemida. Egocêntrica. Sincerona. Muitos são os adjetivos atribuídos à escritora, colunista, roteirista, crítica literária e podcaster Tati Bernardi. Tem gente que a idolatra. Tem gente que não a suporta. E, geralmente, os dois lados têm as mesmas justificativas. Mestre da autoficção, Tati não liga de se expor - e de expor as pessoas ao seu redor - em suas obras, sem jamais revelar o que é fato e o que é invenção.
Tati Bernardi lança seu primeiro livro infantil, O mundo é de todo mundo, pela Companhia das Letrinhas
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Acostumada a escrever tudo o que pensa - tudo mesmo -, já que tem um "Nelson Rodrigues berrando dentro", como descreveu certa vez, Tati se diz "mais contida" desde que Rita, sua única filha, nasceu. “Acho que fui ganhando algumas doçuras e humanidades e generosidades que o amor pela minha filha despertou em mim e isso está na minha literatura hoje”, conta a autora. Foi para Rita que Tati escreveu O mundo é de todo mundo, título lançado pela Companhia das Letrinhas (2023), com ilustrações de Talita Hoffman, e que marca a estreia da autora na literatura infantil.
Na história, a menina Margarida precisa aprender a lidar com um fato não muito agradável: entender que não é o centro do universo - mesmo que essa fase egocêntrica faça parte da infância. Tem de esperar sua vez de brincar, tem de entender que não pode furar fila, tem de lidar com um mundo que não é só dela. O egocentrismo, fio condutor da narrativa, é uma crítica que os filhos únicos, como Tati e Rita, carregam como um estigma - e que frequentemente rende duras críticas à autora.
Capa de O mundo é de todo mundo, de Tati Bernardi, com ilustrações de Talita Hoffman
Tati diz que ainda não sabe se virão mais livros infantis pela frente.
Atualmente, a autora tem duas colunas no jornal Folha de S. Paulo, um videocast, um podcast, é estudante de Psicanálise e ainda ministra cursos para espirantes a escritores sobre autoficção. No currículo, ela ostenta roteiros para novelas e cinema, além de uma extensa lista de livros - incluindo Depois a louca sou eu (2016) e Homem-objeto e outras coisas sobre ser mulher (2018) e Você nunca mais vai ficar sozinha (2020), todos pela Companhia das Letras.
Fica até difícil não acreditar que o mundo é todo dela...
Na conversa com o Blog da Letrinhas, Tati fala sobre egoísmo e o estigma de ególatra que carrega, sobre a ternura que ganhou com a maternidade - mesmo se recusando a abrir mão do sarcasmo -, e sobre os autores e histórias que inspiram as leituras que compartilha com a filha.
Confira a entrevista com Tati Bernardi
Blog da Letrinhas - O estigma de egoísta, que não sabe dividir, ainda recai sobre a figura do filho único. E você, como figura pública, recebe frequentemente o rótulo de ególatra. Você acha que o egoísmo pode ser algo positivo - e até desejável - em alguma situação?
Tati Bernardi - Acho que a palavra egoísmo nunca é boa, apesar de que todos somos meio egoístas né? Faz parte da constituição humana. O caso de uma pessoa que escreve sobre perrengues em primeira pessoa, como eu, tem mais a ver com um apreço (ou aptidão) um tanto estranho para se expor ao ridículo. Se é autoreferente, ao menos estou protegida por estar rindo da minha cara.
O mundo é de todo mundo, mas nem tudo é todo mundo. Então, como encontrar esse equilíbrio entre o que pode ser dividido e o que é só nosso? Como é esse exercício na sua casa?
Minha filha está começando a entender que é privilegiada, branca, mimada. O dia que ela aprendeu que algumas famílias não têm onde dormir (incluindo crianças) ela ficou revoltada comigo, porque, segundo ela, eu nunca fiz nada pra que uma criança não dormisse na rua. Falou que eu não era legal como eu achava. Foi um dia bonito e triste e necessário. Me senti uma progressista ridícula, limitada e incapaz de explicar o mundo para um filho. Ela entendeu ali que boa parte do "mundo dela", de fato, não é pra todo mundo. Ao mesmo tempo, espaços públicos em geral, que "são pra todos", e são sempre lotados, eu percebo que ainda são um aprendizado de paciência. Se nós, adultos, nos irritamos com fila, imagina os pequenininhos.
Ser filha única é um tema que aparece com frequência na sua obra - o medo de ser a única a chorar a morte dos seus pais, a falta de alguém com quem compartilhar memórias. Desde que Rita nasceu, essa solidão se atenuou de alguma forma?
Desde que a Rita nasceu, o que mudou é que eu não posso mais sofrer como uma criança, porque preciso ser a mãe de uma criança. Então, quando vejo meus pais ficando cada vez mais debilitados pela idade, tento chorar como uma adulta de 44 anos, mãe de uma criança, mas o choro sai como o de uma criança.
Tati Bernardi e a filha Rita: CRTL+C CRTL+V
E como mãe de uma filha única, como você pretende abordar com a Rita esses temas que te angustiam enquanto filha única? O que não gostaria que ela experimentasse?
Rita ainda tem cinco anos, então ela não tem exatamente uma angústia de filha única. No máximo, ela me pergunta por que não tem irmãos. Torço muito para que o pai, que é meu ex-marido, tenha mais filhos. Acharia ótimo ela ter pelo menos mais um irmão. E acharia ótimo namorar alguém com filhos. O que eu converso muito com ela é sobre o ciúme que ela tem de mim.
Temos uma relação muito simbiótica por ela ser filha única, menina, da mesma forma que eu tenho com a minha mãe, porque também sou filha única menina. Rita é meio Tati com Rute, que é o nome da minha mãe. Então, estou aqui na terapia, não é mesmo?
A gente se ama loucamente. E eu sempre falo para a Rita que eu amo muitas coisas, mas não amo nada mais do que ela. Quando eu tinha a idade da Rita, era algo que eu me perguntava: será que a minha mãe me ama mais do que todas as coisas? Eu acho importante falar para a Rita, especialmente nessa idade, que ela é a coisa que eu mais amo no mundo.
Qual foi a inspiração para O mundo é de todo mundo? E como rolou o processo de escrita e ilustração?
Foi uma história que eu inventei na hora, tentando fazer a Rita dormir. Ela gostou muito e assim que ela dormiu eu vim pro computador e escrevi. Foi um processo de 45 minutos de trabalho entre a invenção e a finalização. Mas devia estar sendo maturado em minha cabeça há um tempo, como quase tudo que eu escrevo. Eu gostava dos livros do Antonio Prata, por isso sugeri o nome da Talita para as ilustrações. Também gosto muito da Silvana Rando. Não tive muitas questões com o processo - a Talita me mandava e eu ia aprovando.
Ilustrações de Talita Hoffman em O mundo é de todo mundo, de Tati Bernardi
No livro, Margarida consegue enxergar o mundo de cima... e isso amplia a perspectiva da personagem, que percebe que o mundo realmente não é só dela. Que tipo de experiências você acha que podem ajudar a abrir essa perspectiva para as crianças? O que você tenta proporcionar à Rita?
Eu fracasso completamente nesse quesito. Ela vive numa bolha escola-natação-dança dentro de um bairro abastado da zona oeste. E me preocupo sempre com isso. Mas preciso ser honesta e dizer que, por preguiça e embalo da rotina, ainda mando muito mal no quesito "outras realidades". Tenho vergonha e estou aberta pra mudar.
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Seus textos são conhecidos pela honestidade, a acidez, a ironia - ingredientes que na literatura infantil são muitas vezes suavizados. Como foi esse processo de criação para crianças? Teve que se conter de alguma forma?
Eu venho me contendo desde a gravidez, então não foi tão difícil assim. E acho que, pra um livro infantil, este meu tem bastante ironia e piadinha. Acho que continuo muito irônica e sarcástica e botando dedo em feridas e tirando sarro dos buracos dos discursos das pessoas, é uma marca registrada minha que eu não quero perder. Mas acho que a gravidez e a maternidade me trouxeram coisas novas para a vida. Por exemplo, em uma reunião com uma garota mais nova, eu jamais vou entrar em disputa. Porque eu começo a gostar de qualquer menina mais nova do que eu apenas por ser mãe de uma menina.
Acho que em algum momento da minha vida eu fui mais bélica. Hoje tenho mais amor pelas pessoas pelo simples fato de que qualquer pessoa mais nova do que eu me faz pensar na minha filha. (Tati Bernardi, autora e roteirista)
Como a literatura está presente na sua casa? Quais são as obras que você mais lê com a Rita? A literatura infantil tem influenciado sua produção para adultos?
Nós adoramos gibis da Turma da Mônica, literatura infantil do Antonio Prata, Emicida, Quem soltou o pum? (Companhia das Letrinhas, 2010), Gildo (Brinque-Book, 2010), O Grúfalo (Brinque-Book, 1999), Agora não, bernardo, Muito cansado e bem acordado (Companhia das Letrinhas, 2017), Chapeuzinho amarelo do Chico Buarque, Emocionário, O monstro das cores e amamos demais A árvore generosa (Companhia das Letrinhas, 2017)…
Tem algum livro que já ajudou a abordar temas difíceis com Rita? Como foi?
Teve um sobre separação dos pais que ajudou. Se chama Lá e aqui (Pequena Zahar, 2015).
Se você fosse fazer um daqueles textos de apresentação de convidados, como rolava no podcast Calcinha larga, mas para crianças, como você apresentaria a Tati?
Tati Bernardi, que só escreve sobre si mesma, agora escreve também sobre a filha. Tome cuidado ao conhecê-la, porque você pode virar personagem também!