Quando uma criança se emociona, se magoa ou se enraivece (aparentemente sem motivo), a reação das pessoas ao redor geralmente faz com que ela se sinta errada, inadequada, ruim. “Engole o choro!”, “Isso não é motivo para drama”, “Deixa de mimimi”, "Isso é coisa de menininha". Frases que vêm sendo repetidas, de geração em geração, causando impactos profundos no desenolvimento de habilidades para identificar e lidar com as próprias emoções e afetividade. É como se a criança não tivesse direito de sentir e muito menos de demonstrar o que sente.

Ilustração de O menino com flores no cabelo, de Jarvis, sobre Davi, o menino doce e gentil como suas pétalas

Os meninos, sabemos, são ainda mais afetados por esse ciclo de repressão. Ainda tem gente que acha que homem não chora (ou não pode chorar) nem por dor nem por amor, nem pode ter uma personalidade mais sensível ou delicada. Criamos meninos acostumados a disfarçar suas emoções, bem guardadas em um canto escuro, sem sequer saber nomeá-las. Meninos não podem chorar, não podem usar roupas criativas ou muito coloridas, não podem gostar de flores ou corações, muito menos admitir fragilidades pelo perigo de terem sua masculinidade - e sua sexualidade - questionada.

Em O menino com flores no cabelo (Pequena Zahar), de Jarvis, o pequeno Davi mostrava para todo mundo as flores que carregava, lindamente, em sua cabeça. Ele era "doce e gentil assim como suas pétalas". Até que um dia, suas flores começaram a cair. E ele escondeu os galhos secos de sua cabeça sob um gorro - há no livro muitas camadas possíveis de leitura para essa perda das pétalas, como o acometimento de uma doença, alguma mudança que provocou sofrimento psicológico e até mesmo uma socialização para o endurecimento emocional. Felizmente, o melhor amigo de Davi arranjou um jeito de devolver suas cores, para que ele pudesse ser ele mesmo outra vez. É isso: quando colocamos de lado as emoções que tecem nossa subjetividade, deixamos de ser quem somos. Negamos uma parte de nós mesmos.

Ainda bem que a importância da sensibilidade, de demonstrar vulnerabilidade e de ser quem se é - por mais “estranho” que se possa parecer diante dos outros - tem entrado cada vez mais em pauta e ajudado a quebrar o ciclo de repressão de tantas emoções. E que as crianças têm sido mais vistas como sujeitos que precisam ter suas emoções validadas, e não serem caladas, ridicularizadas ou ter seus sentimentos diminuídos. Elas estão sendo encorajadas a sentir e expressar o que sentem. 

Hoje também se discute novos tipos de masculinidade - incluindo um novo olhar sobre a paternidade - assim como ganha força a importância de, desde cedo, saber não só identificar e nomear sentimentos, mas também acolhê-los. É um trabalho árduo e longo, que está apenas começando e que envolve um processo de autoreflexão especialmente para pais e cuidadores, pensando na próxima geração que vamos criar.

O choro é livre?

Ainda que ver uma criança chorando - especialmente se for seu filho, seu aluno, seu irmão ou alguém com quem você convive de perto - possa ser muito incômodo, não é algo ruim. Nossa tendência de querer interromper qualquer que seja o motivo do sofrimento é um instinto natural do ser humano. Um estudo publicado na revista científica Cerebral Cortex mapeou a atividade do cérebro de adultos expostos a choros de crianças e descobriu que, de fato, há impactos neuronais, auditivos, emocionais e motores. Segundo os pesquisadores, os circuitos neurais estimulam uma resposta comportamental dos adultos - mesmo os que não têm filhos - para tentar garantir a sobrevivência dos bebês. Somos programados para nos incomodar e, assim, agir para ajudar a criança indefesa e atender às necessidades dela. 

Isso significa que o choro é uma ferramenta poderosa de comunicaçao, usada desde o nosso primeiro instante de vida. Dá até para dizer que é fundamental para a continuidade da espécie humana. Só que, no dia a dia, a capacidade das crianças (e dos adultos também) de chorar e de expressar suas emoções costuma ser reprimida em vez de encontrar acolhida.

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Segundo a psicóloga e psicanalista Thaís Basile, autora do livro Nossa infância, nossos filhos (Ed. Matrescência), crianças são mais instintivas e têm menos controle de seus impulsos em comparação com os adultos, que já passaram pelo processo civilizatório de domínio desses instintos. “Nossa cultura é adultocentrada, infantofóbica e emocionofóbica”, diz ela. “Ou seja, a repressão das emoções ditas ‘difíceis’ é a regra e o choro é visto como algo manipulativo”, aponta.

Só que os pequenos, no início da vida, não têm o domínio da linguagem para traduzir o que sentem. Então, “falam” e comunicam suas necessidades através da expressão das emoções - muitas vezes, pelo choro. Com isso, ganham rótulos como "mimados"ou "manipuladores", quando só estão querendo se expressar. “Calar a sensibilidade da criança é sempre, em alguma medida, calar sua comunicação e as formas que ela tem de ser compreendida”, diz a especialista. 

Em O menino com flores no cabelo a amizade é a porta de acolhida para as emoções

Será que algumas crianças são realmente mais sensíveis?

Embora a sensibilidade seja, naturalmente, mais facilmente encontrada em crianças, justamente porque elas ainda não têm mecanismos para reprimir seus sentimentos, há aquelas que apresentam essa característica de forma mais intensa. Choram mais, se emocionam mais, se magoam com mais facilidade e podem se sentir afetadas até pelas situações mais inofensivas. Exagero? Não, apenas uma forma de ser. Sentir demais não é ruim se a criança tiver espaço para se expressar.

Crianças emocionalmente saudáveis se sentem seguras para exprimir seus sentimentos, sobretudo na presença de pessoas em quem confiam. (Thaís Basile, psicóloga)

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Sabe aquela situação em que a mãe está longe e, assim que se aproxima, a criança cai no choro? Sempre haverá alguém para tecer um comentário do tipo: “Nossa, estava ‘bonzinho’ até agora. Foi só você chegar para começar o drama”. Se acontecer com você, é um ótimo sinal. Isso demonstra que seu filho se sente conectado e seguro para exprimir as emoções perto de você. Muitas vezes, a criança reprime sentimentos e só extravasa quando sente segurança para tal.

Para poder desenvolver todo o seu potencial e ser quem se é, a criança precisa de um ambiente que leve suas emoções em conta - e não as ignore ou reprima. “Um ambiente invalidador é, em alguma medida, um ambiente negligente”, afirma Thaís. “Isso pode fazer com que a criança precise se adaptar, escondendo seu verdadeiro ‘eu’ ou nem chegando a atingir uma unidade integrada de si”, acrescenta. “A criança pode começar a agir como esperam dela, pautada apenas em medo, sem se sentir autêntica ou espontânea. Assim, pode internalizar dinâmicas de relacionamento prejudiciais, que se repetem na vida adulta”, explica. 

Esconder os próprios sentimentos ou  tentar ser o que os outros esperam pode trazer questões que reverberam ao longo de toda a existência. Ernesto (Companhia das Letrinhas, 2016), personagem que dá nome ao livro de Blandina Franco e José Carlos Lollo, sente e se relaciona de forma diferente. E, por conta disso, é visto como esquisito, estranho, incompeendido. Ele não se encaixa, então, acaba de isolando - assim como fazem muitas crianças que sentem demais ou que não encontram um espaço onde possam ser elas mesmas.

Já em Eu fico em silêncio (Companhia das Letrinhas, 2021), de David Ouimet, a personagem também fica isolada por parecer não ser como as outras crianças. No entanto, encontra nos livros e nas histórias uma esperança de que seu silêncio seja, um dia, ouvido. A literatura é sempre uma boa ferramenta para despertar o sentir - por meio das histórias somos apresentados aos conflitos, dilemas e emoções dos personagens, que nos provocam sentimentos próprios.

Algumas crianças parecem se emocionar mais, tanto com a vida real, quanto com obras de ficção, como filmes, desenhos e livros. Ao contrário de ser um problema, essa capacidade de sentir com mais intensidade muitas vezes revela empatia, a habilidade de se colocar no lugar do outro, de sentir o que o outro sente. “Essa conquista depende também de ter um ambiente suficientemente bom”, diz a psicóloga. 

O impacto dos estereótipos de gênero ainda é real

Por incrível que pareça, os estereótipos de gênero ainda causam um grande impacto quando se fala da expressão das emoções. “A cultura espera coisas das crianças antes mesmo que elas nasçam, a partir dos estereótipos sexuais”, aponta Thaís. “Às meninas, chorar é mais permitido. Aos meninos, é mais permitido sentir raiva e expressar agressividade, porque isso é visto como ‘coisa de menino’”, exemplifica.

Como as emoções vistas como passivas e vulneráveis são relacionadas às meninas pela narrativa social, os meninos são ensinados a rechaçar isso e focar na raiva, na dominação e na conquista de objetos e pessoas. Sensibilidade? Gentileza? Flores na cabeça? Nem pensar! “Isso é violento com os meninos, enquanto é formativo dos pactos da masculinidade”, explica a psicóloga. “Os meninos são crianças, que terão gostos, emoções e sua própria subjetividade. Forçar o desencontro com a própria tristeza e com a própria humanidade, em suma, é algo violento. Homens partem para a violência inclusive contra si mesmos, muito porque são ensinados a lidar com qualquer desconforto partindo para a raiva, que é uma emoção de invulnerabilidade, que dá a sensação de se sentir forte e no poder - inclusive para machucar os outros e a si”, diz ela.

Já passou da hora de deixar esse tipo de educação e de expectativa para trás, não é? E isso serve sobretudo para os homens, porque o exemplo é a melhor forma de ensinar.

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Cuidar das próprias feridas

Mas por que é tão difícil, para tantos adultos, mudar essa forma de educar as crianças, acolher as emoções, deixar que as crianças sintam, sem criticar, brigar ou rotular?

Porque eles também não foram acolhidos, na maioria dos casos. Para Thaís, os adultos podem precisar de apoio para “mudar a chavinha” e conseguir se identificar com a criança e ajudá-la a passar pelos momentos difíceis, em vez de afastá-la. “A criança percebe que o choro causa desconforto e traz a ela a imagem de frágil, fraca, inadequada. Os adultos precisam ser treinados para ver o choro como uma tentativa de se regular, de tirar a tensão do aparelho psíquico e de comunicar algo”, diz ela.

O mesmo vale para outras manifestações do sentir - sejam elas mais explosivas, como gritos e ataques de raiva, sejam elas mais contidas, como timidez excessiva ou ansiedade. "Muitas vezes, os adultos precisam de apoio analítico para processar suas próprias vivências e traumas”, completa.

Oferecer espaço e segurança para que a criança possa sentir - e ter seus sentimentos validados - é o caminho para criar uma geração emocionalmente forte. Que enxergue a sensibilidade não como fraqueza, mas como um caminho para construir um mundo com mais empatia.