No documentário The mask you live in, de Jennifer Siebel Newsom, ecoam repetidas vezes frases como “seja homem”, “você corre igual a uma menininha”, “cuidado com o jeito como você fala”, “esteja sempre forte”; “não chore”. São dirigidas a meninos que, desde bem pequenos, sofrem uma pressão constante de uma sociedade que defende a masculinidade como uma performance, executada 24 horas por dia, sem descanso. As consequências afetam a todos, homens e mulheres.
O longa, com entrevistas de garotos e homens americanos que relatam experiências muitas vezes traumáticas de bullying e dificuldade de aceitação, aborda muitos aspectos que são comuns na realidade brasileira, segundo a jornalista Marília Lamas, autora de De menina e de menino – gênero e infância. Ela destaca questões como a frustração de padrões rígidos e a censura por manifestações de afeto. “Eles aprendem a achar que há algo de errado quando se emocionam. É muito cruel crescer tendo que aparentar força o tempo todo”, explica Marília. “Isso impede que homens e mulheres estabeleçam relações saudáveis, harmoniosas.”
Controle emocional e colonialismo: a sociedade organizada de forma patriarcal
De acordo com a autora, no Brasil, esse controle remonta aos tempos de Colônia: a sociedade organizada de forma patriarcal, com a figura autoritária do senhor de engenho. Os reflexos de hoje são a figura do “chefe de família”, um modelo de homem forte, protetor, esperto, provedor, como explica Marília. É esse modelo que os nossos meninos são ensinados a seguir. Enquanto isso, meninas são ensinadas a serem discretas, quietas, delicadas. Por isso, se um menino é flagrado em alguma ação considerada feminina, como o choro, logo é repreendido. “Nossos meninos são educados para esconder as emoções, para aparentar força e reprimir a sensibilidade”, afirma a pesquisadora.
A escola tem um papel importante na construção desse modelo: “É na escola que um menino que fuja do padrão azul-carrinho-bola-trator é rapidamente apelidado de ‘mulherzinha’”. Outro grande influenciador é a mídia, com propagandas, desenhos animados e, mais recentemente, canais no YouTube que reforçam esses estereótipos. E isso cria um ciclo vicioso: “Se meninas e meninos crescem assistindo a esse tipo de propaganda sexista, são esses os símbolos que eles apreendem, são essas as representações de gênero que assimilam”, acrescenta Marília. “Por mais bem-intencionados que sejam os pais, eles têm pouco tempo com as crianças. A escola e a mídia, ao contrário, passam o dia inteiro com elas.”
Ilustração de Marcelo Tolentino
Isso é evidenciado no documentário de Newsom, que mostra o trabalho do professor Ashanti Branch ao lidar com esses temas tão caros na contemporaneidade. No filme, vemos o educador propor uma atividade: os meninos devem escrever na parte da frente de um papel tudo o que deixam transpassar aos seus colegas, e, atrás, o que sentem de verdade. Na roda, as respostas se repetem: o exterior dos alunos transpassa felicidade, humor. Por dentro, o sentimento é de raiva, dor, medo. Um dos meninos inicia um choro silencioso durante a atividade, cobrindo o rosto com as mãos. Outro o consola, com uma mão em suas costas.
Estereótipos de gênero: de menina x de menino
Apesar dessa grande influência escolar, é inegável a importância dos pais para a perpetuação desse modelo. Marília conta que, em seu livro, pesquisou brinquedos de meninas e de meninos, de diferentes faixas etárias. Notou que os pais têm medo de dar aos garotos brinquedos associados ao universo feminino, como bonecas e cozinhas. Há um receio de que o objeto influencie a orientação sexual da criança.
“O fato de oferecer brinquedos que remetam a essas atividades desperta nos pais o receio de que o filho assim se torne ‘mais mulher’, e não simplesmente um menino que brinca de boneca ou de casinha e que no futuro pode cuidar de sua casa e de seus filhos”, diz. “A pior coisa que se pode dizer de um menino é que se parece a uma menina”, completa.
Essa fragilidade da ideia que se tem de masculino também acaba afetando o desenvolvimento da criança. “Se um menino que antes só brincava com bolas, carrinhos e monstros e hoje pode também brincar de boneca e casinha, tem suas possibilidades de brincadeira, de sonho, de imaginação expandidas. É ampliado o seu repertório – ele não se torna menos ‘masculino’ por isso. E assim o menino se aproxima também do universo doméstico, o que é fundamental, é claro.”
É preciso falar sobre masculinidades
É evidente que os benefícios de uma educação igualitária vão muito além. O tipo de criação que se dá a um menino pode afetar a qualidade de vida futura de uma menina. “É sobretudo libertar as meninas, que um dia serão mulheres e poderão conviver com homens que não tenham medo de chegar perto de um fogão. É entender que todas as possibilidades estão acessíveis a todas as pessoas, independentemente do seu gênero.”
Daí o questionamento: por que as discussões sobre feminismo vêm crescendo nos últimos anos, mas as sobre masculinidade, não? “Os homens estão muito menos incomodados com o machismo do que as mulheres”, afirma Marília. Ela explica que, mesmo sem o direito de se emocionar e de demonstrar afeto, eles ainda estão em vantagem. “Não acho que interesse à maioria dos homens questionar e mudar uma realidade tão confortável, que há séculos os mantêm na posição de dominantes, ainda que essa realidade também os oprima.”
É por isso que o combate por uma sociedade igualitária passa pela educação de meninas e meninos, que serão os adultos de amanhã. O que se pode fazer? Uma possibilidade é estimular as crianças a dizer o que desejam, deixar que escolham seus brinquedos, sem censura. “Ensinar às meninas e aos meninos que eles podem brincar com o que quiserem, sonhar com o que quiserem, ser o que quiserem”. Também se deve ensinar a questionar, já que é inevitável a influência da mídia e da escola na vida dos pequenos, como citado anteriormente. “Pais podem questionar, por exemplo, quando um menino ouve na creche e repete em casa que certa brincadeira é ‘coisa de menininha’.”
Isso liberta a todos – e provoca mudanças reais. “Quando os meninos crescerem sabendo que não precisam reprimir seus sentimentos e quando as meninas crescerem sabendo que o seu lugar é onde quiserem estar, aí, sim, estaremos no caminho para uma sociedade igualitária.”