O cordel e as infâncias plurais

31/05/2022

As rimas, a história, os multiletramentos da literatura de cordel e a possibilidade de olhar uma vez mais para a diversidade e as diferenças nas infâncias – assim, no plural - garantiram poesia, prosa da melhor qualidade e algumas experiências singulares no encerramento da edição 2022 da Jornada Pedagógica. A cordelista e escritora Mariane Bigio, a jornalista, escritora e pesquisadora Januária Alves, a escritora e ensaísta Inaldete Pinheiro de Andrade e os escritores Daniel Munduruku e Roger Mello foram os convidados especiais do último dia do evento – realizado anualmente pelo Núcleo de Educação do Grupo Companhia das Letras. “Percursos de leitura na escola e transversalidade: literatura e a diversidade” foi tema da jornada este ano.

Jornada Pedagógica 2022

A cordelista e escritora Mariane Bigio conversou com a escritora e pesquisadora Januária Alves

 

Autora de dezenas de títulos infanto-juvenis e pesquisadora da cultura popular e de histórias de tradição oral, Januária Alves, organizadora de Heróis e heroínas do cordel (Companhia das Letrinhas), participou, na mesa “O gênero em foco: nas rimas do cordel”, de uma conversa cativante com a escritora Mariane Bigio que, além de cordelista, é cantora e radialista. “O cordel é um texto completo por ser um registro histórico precioso ao qual se mistura a fantasia, o que deixa tudo mais interessante. Com suas rimas e sextilhas, não é uma maneira qualquer de contar uma história. É literatura informativa e de ficção, que potencializa tudo. Tudo é grandioso. Ao mesclar esses elementos, faz perceber a vida de outro ponto de vista. Daí a riqueza porque a percepção da realidade não é única, é diversa”, disse Januária.

"É um material riquíssimo para que o professor possa entender, junto com os alunos, como se constrói a narrativa, de um jeito lúdico. Contam-se histórias com o coração. É um gênero a ser mais explorado na escola. É para vivenciar”, afirmou a escritora, com o recado para educadores de todo o país. “Professores, descubram o cordel.” “Cada professor, a partir de sua experiência pessoal, pode encantar os alunos com o cordel”, disse Januária.

 

Literatura com L maiúsculo

Desde 2018, a literatura de cordel é considerada patrimônio cultural brasileiro, conforme lembrou o editor Antonio Castro, da Companhia das Letrinhas e da Seguinte, que mediou a conversa. Apesar da importância do gênero, lembrou Castro, a literatura do cordel é citada apenas oito vezes na Base Nacional Comum Curricular, a BNCC. “É um trabalho multifacetado, abrangente da infância ao ensino médio, e que não pode ser reduzido à questão do gênero literário. Mas ainda há um preconceito com a literatura oral, associada aos não letrados”, disse Januária, lembrando que temas relacionados à diversidade, ao racismo e ao sexismo, por exemplo, às vezes todos no mesmo caldeirão, aparecem em muitos textos de cordel, como acontece na obra de Jarid Arraes, autora, entre outros títulos, de Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (Seguinte).

 “É literatura com L maiúsculo. Não precisa se preocupar em querer explicar. Só a apreciação já implica numa imersão”, disse Marianne Bigio, que leva cordel inclusive para o espaço da internet, em que disponibiliza seus vídeos. “O cordel é um grande leque, com uma fórmula cativante. Além da rima, há a métrica, a contagem das sílabas, que imprime ritmo e cadência. Leitura vira música. É sonora. ‘Oraliteratura’, como costumamos dizer. É texto feito para ser ouvido, dito em voz em alta. Quando uma criança tem contato com essa literatura,  mobiliza aspectos sensoriais. Além da questão estética, a repetição, a rima, é matemática, e isso vai despertando o interesse. Isso contribui de forma essencial para o processo de letramento das crianças”, afirmou Mariane, que lança quatro novos títulos com a coleção Canoa, da Companhia das Letrinhas, em julho.

“Pensando em outras faixas etárias, há um reencontro, de revisitar histórias da ancestralidade porque a literatura de cordel também é afeita a intertextos, às vezes com referências contemporâneas, de séries, sagas, filmes e jogos épicos que os jovens adoram, como Game of Thrones.  

Há um potencial maravilhoso [na literatura de cordel] e muitos professores e professoras me procuram porque já descobriram essa mina, um portal que se abre para a literatura como um todo.

(Mariane Bigio, escritora e cordelista)

Confira a íntegra com a apresentação da escritoras no link abaixo.

 

 

Infâncias plurais

Na mesa de encerramento da jornada, “Literatura e infâncias no plural”, a multiculturalidade deu o tom da conversa que começou com depoimentos dos escritores Inaldete Pinheiro de Andrade, Daniel Munduruku  e Roger Mello sobre suas infâncias. “A minha é cheia de imagens poderosas. O que acho muito bonito é que meu pai, com quatro filhas mulheres, nunca ventilou a ideia de ter um filho homem, pelo menos nunca falou sobre isso. A única coisa que nos cobrava era estudar. Foi ele, como excelente leitor, quem me inspirou a ler, talvez uma forma de fazermos uma aliança. Meu pai era assinante das revistas semanais para que nós acompanhássemos o que acontecia no mundo, além de praticar a leitura e a escrita. Tenho uma vida de alegria com a escrita e com a leitura”, disse Dona Inaldete, autora de Uma aventura do Velho Baobá (Pequena Zahar), em participação emocionante.

“Uma das experiências mais envolventes na minha trajetória e que vem da infância é a memória dos ritos. Tenho necessidade de ritualizar o dia a dia, o que faz parte do grande ritual de estar na humanidade”, declarou Daniel Munduruku, autor de mais de cinquenta livros, entre paradidáticos e de literatura infantojuvenil.

“Foi o desenho que me salvou”, lembrou Roger Mello, premiado em 2014 com o Prêmio Hans Christian Andersen, a maior distinção internacional concedida a criadores de literatura infantil e juvenil. O diálogo dos escritores foi mediado pela jornalista e pesquisadora de infâncias Gabriela Romeu, coautora de Tutu-Moringa –história que tataravó contou (Companhia das Letrinhas).

 

Leituras pluridimensionais

“A infância não morre nunca, não sai nunca de dentro da gente”, disse Munduruku, argumentando que o Brasil, em crise de identidade, segundo escritor, é um país ainda na adolescência ao fazer um paralelo entre o país e as diferentes fases na vida humana. “Por isso temos a obrigação pedagógica de pensarmos o que fizeram de nós com essa experiência de ser brasileiro. Tomar impulso para dar um salto grande”, afirmou.  “A literatura ajuda a criar essa visão crítica, a  olhar essa história contada pelos donos da palavra quando as crianças aprendiam uma mesma narrativa hegemônica – religiosa, histórica, ocidental. Crescemos dentro de um quadrado do qual é difícil sair, furar o bloqueio”, afirmou. “O sucesso da literatura indígena mostra que há uma percepção da sociedade que é preciso fazer esse caminho de volta”, disse Munduruku.

Com uma bela apresentação de imagens poéticas que cria para seus livros, Roger Mello falou de leituras pluridimensionais, dos fios que se entrelaçam quando paisagem e personagem se misturam, em “infâncias pouco óbvias”. “Nós não somos separados do entorno.”

Munduruku citou Histórias de Índio, lançado em 1996 (Companhia das Letrinhas), com o qual iniciou sua trajetória como autor. “Era o primeiro livro escrito por um indígena pensado para um público não indígena. Tinha essa diferença. Trazia para as crianças as respostas que elas queriam sobre  nós, os indígenas”, afirmou, lembrando que é importante compartilhar  responsabilidades com o leitor para que ele se sinta parte da proteção das culturas indígenas. “O livro é lugar em que se pode falar de tudo. É um simulacro, em que a criança é capaz inclusive se conectar com a dor do outro. Leitora e leitor vão fazer o livro no tempo deles, um outro verso, um pluriverso”, afirmou Mello.  

Dona Inaldete contou que seu trabalho como autora começou quando ela observou o oba-oba em torno do centenário da abolição das pessoas escravizadas no Brasil, no final da década de 1980. “Tenho que falar com as crianças sobre essa libertação que não veio, pensei. E dizer como foi a nossa história. Não falei só da nossa dor de ser escravizado, nem só de alegria. Suavizei.  Mas não faço concessão ao que nos foi feito”, disse.

Confira a íntegra com a apresentação dos escritores no link abaixo.

 

 

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