Se um amigo de Portugal pedir a você que compre para ele alguns itens de vestuário, como uma cueca, uma camisola e um par de sapatilhas, redobre a atenção para não errar. A princípio, parece não ser nada difícil, são itens fáceis de encontrar. Mas sabia que a pessoa realmente está pedindo uma calcinha, uma camisa e um par de tênis? Pois é. Estes são alguns dos exemplos de palavras que mostram como a mesma língua pode ter palavras iguais, porém com significados totalmente diferentes. Para comemorar o Dia da Língua Portuguesa - celebrado em 10 de junho, além de 5 de maio e 5 de novembro -, o Blog da Letrinhas ajuda a entender melhor como uma mesma língua, ao mesmo tempo, é tantas.
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Exposição sobre as diferenças e similaridades da língua portuguesa, no Museu da Língua Portuguesa em São Paulo. Foto: Divulgação/ Ana Melo
Tome como exemplo os dois livros do escritor português José Saramago, lançados pela Companhia das Letrinhas em 2022, que foram publicados em português de Portugal. Ao mesmo tempo em que as narrativas de O silêncio da água e Uma luz inesesperada podem causar um impacto e até certa dificuldade para o leitor a princípio, uma segunda leitura já fica mais fluida. Em entrevista ao Blog, Pilar del Río, presidenta da Fundação Saramago, lembrou o que o autor dizia: “Ler requer esforço e, na vida, em geral, é necessário esforçar-se. O esforço de ler será o mais recompensador”.
E será mesmo. Assim como adentrar pelas nuances dessa língua tão rica e com tantas variedade que é a língua portuguesa. E se o português do Brasil já é tão diferente do português de Portugal, imagine o português do Timor Leste, de Angola, Moçambique… E dos outros países que falam o mesmo idioma. É preciso lembrar ainda que dentro de cada país, a depender da região, a língua ganha palavras, sotaques, modos de falar diferentes também. Haja dicionário!
Língua portuguesa: um pouco da história
Para conhecer um sistema tão vivo e tão abrangente como é a língua portuguesa, que tal começar mesmo pelo início? “A história da língua portuguesa começa no noroeste da península Ibérica, em uma região que foi chamada pelos romanos de Gallaecia e que compreende o que, atualmente, é a Galícia, o norte de Portugal (até o rio Douro mais ou menos) e um pedacinho das Astúrias”, explica a pesquisadora Cecília Farias, do Centro de Referência do Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo (SP). “Quando os romanos chegaram ali, a região era habitada por povos celtas. Séculos depois da ocupação pelos exércitos romanos, também houve invasões de povos germânicos (suevos e visigodos). Do contato do latim das legiões romanas com as línguas locais, emerge o galego antigo, ou galego-português (ainda que nesse momento ainda não existisse o conceito de Portugal)”, continua.
Então, segundo Cecília, por volta do século 11, os reinos da Galícia, sob domínio da coroa de Castela, e o reino Portucalense, se separam. “Foi um passo importante para a fragmentação político-cultural que influenciaria a deriva do galego-português, marcando definitivamente a fronteira entre Portugal e Galícia. Além disso, mudaria as dinâmicas que atuariam nas formas de falar dos dois lados da fronteira”, explica a pesquisadora.
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O condado da Galícia foi perdendo poder, enquanto o Portucalense foi se expandindo para o sul. “A partir daí, a forma de falar ao sul do rio Minho [do qual parte do percurso serve como divisa entre Espanha e Portugal] foi tomando características próprias. Houve ainda o contato com os povos árabes, que ocupavam o sul da península, que também tem reflexos na nossa língua até hoje. Com as navegações e colonizações, a língua foi se tornando muitas outras coisas”, afirma Cecília.
Muitas outras coisas, mas uma só
Com as grandes navegações, a partir do século 15, Portugal foi colonizando outros territórios, entre eles o Brasil. Então, também a língua foi se expandindo e ganhando novas formas, novas palavras, novos jeitos de falar. Hoje, são nove países que têm o Português como idioma oficial: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Timor-Leste, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Cada um com seu sotaque, seus contextos e suas influências, mas tudo dentro de uma mesma raiz.
Página de Uma luz inesperada, livro infantil de José Saramago
“A língua é uma, o sistema linguístico do português é um só, mas composto por variedades”, afirma a linguista professora doutora Regina Brito, docente do programa de pós-graduação em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie (SP). “Não temos várias línguas, mas diversas normas (ou variedades) do português em todos os espaços em que é oficial: português europeu, português brasileiro, português moçambicano, português cabo-verdiano, português angolano, português guineense, português são-tomense, português timorense... A partir desse olhar da diversidade de usos e da multiplicidade de espaços em que o português se estabelece é que entendemos que o português é uma língua pluricêntrica, que se legitima ao reconhecermos os papéis que assume em cada lugar”, continua.
A professora explica que toda língua varia no tempo e no espaço, por conta do contexto, das relações com outros povos e culturas. “Por isso, temos as diferenças mais ou menos perceptíveis – seja de um país para outro, seja dentro do mesmo país. Do mesmo modo que podemos ‘estranhar’ quando ouvimos uma variedade nacional do português, também podemos observar dificuldades nas diferentes formas e sotaques do português dentro do nosso país. É macaxeira-aipim-mandioca; “tomate”-“tumati”-“tomati”; malassombro-assombração”, exemplifica.
Língua viva é língua que se transforma
Assim, o idioma português ganha e perde nuances, de acordo com o país em que ele é falado e até dentro de um mesmo país. A cada dia, surgem termos novos, de acordo com o uso, com as interações. Hoje, por exemplo, é comum incorporarmos palavras do inglês. “Sempre existe uma língua de prestígio internacional, que acaba sendo referência por uma época, seja por status cultural, seja por fatores econômicos e políticos”, explica a pesquisadora Cecília. “Até o começo do século 20, tínhamos o francês nessa posição. Hoje, sem dúvida, é o inglês e, por isso, é tão frequente adotarmos termos dessa língua. Mas isso, um dia, vai mudar e outra língua tomará esse lugar”, aponta.
“As línguas vivem porque se modificam... e se modificam porque estão vivas!”, pontua a professora Regina. “Essa é a magia da linguagem humana, que se transforma à medida que o tempo passa, que as pessoas a utilizam e reutilizam, que os lugares vão dando novas cores a ela”, detalha. Segundo ela, são essas as diferenças responsáveis pela nossa sensação de que são “várias línguas”, mas não. Estruturalmente, todas são constitutivas do português e isso mostra a riqueza e a diversidade que estão dentro da unidade de uma mesma língua.
“A internet, o processo de globalização da contemporaneidade acelera as trocas e enriquece a língua. A diversidade é o que fortalece a língua portuguesa. Tomamos café da manhã no Brasil, pequeno almoço em Portugal e mata-bicho em Moçambique; chamamos o guri em Porto Alegre e o menino em São Paulo. Essas e outras diferenças circulam não só pelas ruas, pelos canais de televisão, músicas, mas também estão nas performances do TikTok, no Instagram, no Facebook. Aprendemos com as trocas e nos fortalecemos como comunidade lusófona”, pontua a docente.
“As línguas vivem porque se modificam... e se modificam porque estão vivas!”
Regina Brito, linguista e professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie
Cecilia, do Museu da Língua Portuguesa, reforça que a mudança é um processo inerente às línguas. “As únicas línguas que não mudam são as que estão mortas, ou seja, as que não são mais faladas, como o latim ou o sumério”, completa.
Livros para conhecer a riqueza cultural da língua portuguesa
Além das duas obras de Saramago citadas no início do texto, há outros livros escritos por falantes da língua portuguesa de outros países que valem a pena serem conhecidos, ainda que possam ter adaptações para o português corrente no Brasil.Vamos conhecer a riqueza da produção cultural de nossa língua?
A água e a águia, Mia Couto: nesta fábula de um dos mais aclamados escritores de língua portuguesa, o moçambicano Mia Couto, a brincadeira com a concretude das palavras e a natureza dão o tom da história.
O gato e o escuro, Mia Couto: no conto de estreia na literatura infantil, o consagrado escritor moçambicano fala dos medos e do encantamento com o desconhecido.
Siga a seta!, Isabel Minhós Martins: neste livro da portuguesa Isabel Minhós Martins - fundadora da editora portuguesa Planeta Tangerina -, o que se põe em questionamento são as normas, rotinas e obrigações que nos fazem fazer sempre tudo igual e a possibilidade de encontrar com o imprevisto e o desconhecido ao mudar a direção de algumas setas em nossas vidas.
Menino, menina, Joana Estrela: um livro que mostra que nossa identidade não se resume a duas palavras, questionando rótulos e mostrando a riqueza que nos compõe enquanto seres humanos, escrito e ilustrado de forma simples e poética pela portuguesa Joana Estrela.
Livro Clap, Madalena Matoso: um livro para inventar sons, palavras, histórias na linguagem universal das palmas das mãos e deixar a imaginação das crianças pequenas fluir, da portuguesa Madalena Matoso, outra fundadora da editora Planeta Tangerina.
O voo do golfinho, de Ondjaki: o poeta e escritor angolano Ondjaki cria uma história sobre o poder da liberdade e do sonho, ao acompanhar um golfinho que queria voar e um dia arriscou um salto mais alto.
Ynari, a menina das cinco tranças, de Ondjaki: neste livro cheio de expressões angolanas, explicadas ao fim da obra em um glossário, o poeta Ondjaki conta a história de uma menina que queria conhecer as palavras e vai precisar dar sentido à palavra amizade para acabar com a guerra entre cinco aldeias.
A maior flor do mundo, de José Saramago: outro livro do mestre português que flerta com a possibilidade de construir mundos imaginários com a literatura, na qual um menino faz nascer a maior flor do mundo.
(Texto de Vanessa Lima)