Lá pelos idos do século XVIII, quando o carpinteiro Richard montou uma barraquinha em frente de casa e passou horas escavando fósseis nos recifes para atrair turistas com tesouros geológicos e complementar a renda da família, ele não podia imaginar que seu pequeno gesto moldaria o futuro de sua filha e mudaria o rumo das Ciências Naturais. Mary Anning nasceu em 1799, em Lyme Regis, na Inglaterra – lugar conhecido como "Costa Jurássica", por sua grande incidência de fósseis e enormes formações rochosas dos períodos Triássico, Jurássico e Cretáceo - e herdou o hobby do pai. Ela foi a primeira pessoa a encontrar fósseis de ictiossauro e plesiossauro de que se tem notícia, e entrou para a história como a "caçadora de fósseis" - justo uma menina a descobrir animais tão associados ao universo masculino.
Essa história está contada no livro Mary Anning e o pum dos dinossauros, uma biografia literária ilustrada da paleontóloga, escrita pelo mineiro Jacques Fux. Um gênero literário tradicionalmente associado ao público jovem e adulto, mas que cativa e tem uma importância enorme para a formação das crianças também, seja pelo exemplo das personalidades biografadas, seja pela contribuição que essa leitura traz. Mary Anning, por exemplo, foi uma das pioneiras da paleontologia. Naquela época, ainda acreditava-se que os ossos encontrados eram todos de animais contemporâneos e não de seres já extintos - e ela foi fundamental par quebrar com essa crença, revelando ao mundo a existência dos dinossauros. Entre escavações cheias de segredos e fósseis enterrados em silêncio, Mary Anning aprendeu desde os sete anos a procurar no chão os vestígios dos inumeráveis achados científicos que sua carreira desvelou ao mundo. Ela foi imortalizada também no cinema, pelo filme Ammonite, no qual é interpretada pela atriz Kate Winslet.
O livro conta história dessa incrível menina-mulher-investigadora, a "caçadora de fósseis" Mary Anning.
Uma mistura de artista, gênia e paleontóloga (embora ela ainda nem conhecesse essa palavra ou profissão) (Jacques Fux, autor)
A obra de Fux vem somar ao catálogo infantil da Companhia das Letras mais uma biografia literária, ao lado de outras muitas mulheres e personagens notáveis, como a pianista Nina Simone, em Nina, de Tracy Todd (Pequena Zahar, 2022), a arquiteta Lina Bo Bardi, em Lina - Aventuras de uma arquiteta, de Ángela León (Pequena Zahar, 2020), a pintora Tarsila do Amaral, em O anel mágico da tia Tarsila, da sobrinha homônima Tarsila do Amaral (Companhia das Letrinhas, 2011) e a cantora Carmen Miranda, em Carmen, a grande pequena notável, de Heloisa Seixas e Julia Romeu (Pequena Zahar, 2020). Há ainda coletâneas infantis e infantojuvenis que reúnem diversas biografias de mulheres que se destacam. É o caso de Extraordinárias, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza (Seguinte, 2017), e também de ABCDElas, de Janaina Tokitaka (Companhia das Letrinhas, 2019).
Livremente inspirado na vida de Mary Anning, Ammonite é um filme biográfico de drama romântico de 2020 escrito e dirigido por Francis Lee
O que as biografias têm de único?
Podemos pensar no livro de Jacques Fux como uma criação metalinguística, afinal, a protagonista contou, ela, mesma, a biografia dos dinossauros. Sem educação formal e antes mesmo de existir uma nomenclatura para a carreira que ela construiu, Mary Anning escreveu a história desses gigantes que antecederam o Homo Sapiens no planeta Terra.
Como percebemos nesse exemplo, encontrar a História com letra maiúscula dentro das histórias cotidianas. Este é apenas um dos motivos para ler biografias com as crianças. Traçar um perfil humano das figuras que mais nos encantam por seus feitos extraordinários, encontrar o rastro de historicidade no dia a dia, ou simplesmente conhecer personalidades fantásticas são outros.
Para a especialista em literatura infantil e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Ana Crelia Dias, o compromisso com a veracidade, obtido por meio do comprometimento ético e de uma pesquisa sólida, não pode deixar de comparecer.
Qualquer obra dirigida ao público infantil precisa ser pensada, entre outras questões, no critério de legibilidade, o que não significa ser simplista ou abrir mão de recursos estilísticos que confiram autoria. (Ana Crelia Dias, especialista em literatura infantil)
Com um texto cheio de graça, Jacques Fux convida leitores de todas as idades a descobrirem a história de Mary Anning e os dinossauro
Hoje em dia, em que o próprio conceito de verdade tem sido atravessado por disputas narrativas decorrentes muitas vezes do contexto político, será que as biografias podem representar um retorno saudável às histórias factuais? De modo otimista, podemos desejar que sim. “O trânsito da biografia e do jornalismo literário pelos caminhos da literatura podem conferir um estilo mais autoral aos fatos que se deseja veicular”, considera a pesquisadora.
Para citar bons exemplos que optam por esse caminho, lembramos dos cinco livros do catálogo infantil e juvenil que retratam a vida da ativista paquistanesa Malala Yousafzai: Malala, a menina que queria ir para a escola, de Adriana Carranca e Bruna Assis Brasil (Companhia das Letrinhas, 2015), Malala e seu lápis mágico, de Malala Yousafzai (Companhia das Letrinhas, 2018), Malala: pelo direito das meninas à educação, de Raphaële Frier e Aurélia Fronty (Pequena Zahar, 2019), Eu sou Malala (edição juvenil) - Como uma garota defendeu o direito à educação e mudou o mundo, de Malala Yousafzai e Patricia McCormick(Seguinte, 2015), e Malala - Minha história em defesa dos direitos das meninas , de Malala Yousafzai e Patricia McCormick (Seguinte, 2020).
Cada uma dessas obras explora o gênero biográfico de uma maneira distinta, seja pelo caminho da autobiografia, do livro ilustrado, do livro informativo, ou pela escolha do formato livro-reportagem, no caso do livro de Carranca. “Além de apresentar uma narrativa verídica, quase um conto de fadas às avessas, em que a personagem principal não quer casar, mas sim estudar, a jornalista Adriana Carranca, repórter especial do jornal O Estado de S.Paulo, traz para crianças e adolescentes um gênero até então usado apenas na literatura adulta: o livro-reportagem”, diz a descrição do livro.
Para Ana Crélia, um bom trabalho em relação ao projeto gráfico ajuda bastante a tornar as biografias literárias um gênero saboroso para os jovens leitores. É o caso não só do mais recente Mary Anning e o pum dos dinossauros, ilustrado por Daniel Almeida em uma linguagem pop que remete ao universo das HQs, como o uso de onomatopeias e elementos tipográficos, mas também de biografias recém-publicadas pelos selos infantis da Companhia das Letras. Muitas delas, apostam em narrativas visuais que contam a história também por meio das imagens; é o caso de Nina, ilustrado pelo premiado artista gráfico Christian Robinson, que assina também as ilustrações de Seu banco, de autoria de Meghan Markle, Duquesa de Sussex; e também da biografia ilustrada de Lina Bo Bardi, o livro Lina, assinado tanto no texto quanto nas imagens pela também ilustradora e designer Ángela León.
O ilustrador Daniel Almeida é radialista, produtor e redator da Rádio Dpot. Saiba mais sobre seu trabalho em www.danielalmeida.art.br
Como investir na formação leitora do gênero biográfico infantil?
E quanto às crianças, como estimular nelas o interesse por leituras literárias de cunho histórico? Como qualquer pergunta que pressupõe uma saída generalizante, a resposta é: cada leitor é único. O caminho parece ser a construção da autonomia leitora, para que as crianças e os jovens possam buscar seus interesses genuínos, e a formação de repertório, tanto de quem lê quanto de quem media. Segundo Ana Crelia, é preciso haver trajetória escolar que valorize as teorias e os conteúdos na hora de selecionar e apresentar os livros informativos.
Só acredito em mediação escolar, que é um trabalho especializado, diferente da mediação cultural, por exemplo, que leve em conta pressupostos teóricos. Então acho necessário que haja estudos dirigidos aos professores, que abordem teoricamente a mediação de leitura. (Ana Crelia Dias, especialista em literatura infantil)
A professora explica que as biografias são um gênero que passeia livremente entre outros gêneros, brincando com as possibilidades de se contar uma história. “A biografia, independentemente do público a que se destina, é um gênero cambiante, que poderá se conter nos limites do objetivo de informar, ou ainda, apropriando-se das formas de linguagem próximas ao objetivo literário, constituir-se como gênero híbrido. Vai depender do caminho escolhido pelo/a autor/a”, explica a pesquisadora.
As biografias reais e o humor criativo
Dentre esses caminhos escolhidos, o humor que Fux elegeu como companheiro na narrativa de Mary Anning é um dos diferenciais na hora de apresentar um personagem verídico, e também uma forma de não recair em didatismos ou hiperinformação. O autor começa a narrativa com uma informação quase inventada, não fosse a licença poética que cabe ao livro ilustrado: “Mary Anning nunca sentiu o cheiro do pum de um dinossauro”, diz a história. “E o cheiro? Já imaginaram esse perfume jurássico? A fedida fragrância desses gigantes?”, brinca Fux.
“Na dosagem certa, sem filiação ao riso estéril do stand up, o humor pode ser um bom caminho. Mas fica sempre um alerta: não é fácil fazer humor com qualidade.” (Ana Crelia Dias, especialista em literatura infantil)
Nas palavras de Ana Crelia, não existem fórmulas mágicas para "despertar interesse" das crianças para a leitura. “Um caminho necessário, entretanto, é formar o/a professor/a, a partir de debate teórico qualificado, para o olhar sobre essas produções, a fim de que elas possam ser entendidas do ponto de vista que mais interessa à escolarização”, ela pontua. “Dos muitos objetivos, poderíamos elencar: a necessidade de conhecer trajetórias de pessoas que foram alijadas da 'história oficial'; ou ainda a compreensão de que uma obra biográfica, comprometida com a veracidade dos fatos, pode estimular uma atitude de pesquisa, necessária de ser desenvolvida na escola”, defende.
É justamente essa tal “atitude de pesquisa” que movimenta o livro Mary Anning e o pum dos dinossauros. Diferente de outros livros sobre dinossauros – que, vale, mencionar, costumam cair com facilidade no gosto das crianças – o livro de Fux oferece uma perspectiva socio-histórica do surgimento desses nossos ancestrais de milhões de anos, a partir de um fio específico: a infância e a formação de uma das mais importantes figuras da História Natural.
O eixo humorístico do livro decorre de um fato científico divulgado recentemente. "Os dinossauros herbívoros soltavam um monte de puns, e o mau cheiro era grande. Tão grande a ponto de contaminar o ar que eles respiravam", narra a história, que continua explicando que o cheiro, na verdade, é um mecanismo de defesa biológica para nos proteger de bactérias e outras ameaças, como alimentos estragados. "Essa nova teoria sobre a extinção dos dinossauros diz que eles soltaram tanto, mas tanto, tanto pum — e por tanto tempo —, que a Terra esquentou demais e perdeu a sua proteção. Assim, em algum momento há milhões de anos, o planeta passou a ser um ambiente inóspito e inabitável para os dinossauros." Se a teoria de que há dois momentos em que se pode saber tudo sobre dinossauros – em um curso de Paleontologia e na infância – estiver certa, este livro é um lembrete de que biografias literárias, ao contar a história de alguém que fez muito para mudar o mundo, são uma janela de reinterpretação e recriação.
(Texto de Renata Penzani)