Eunice Kathleen Waymon. Talvez você não a conheça por esse nome, mas, certamente, sabe quem é Nina Simone e já ouviu sua voz potente em diferentes lugares. Uma das maiores cantoras, pianistas e compositoras de sua geração, ela se tornou eterna, tanto pelo talento excepcional, quanto pela luta pelos direitos civis, que abraçou como uma causa de vida. Negra, filha de um marceneiro e de uma empregada doméstica, ela teve uma trajetória de superação e resistência, em um tempo no qual tudo era ainda mais difícil. Agora, essa história real ganha uma versão feita especialmente para os pequenos, em Nina, de Traci N. Todd, pela Pequena Zahar. E essa é uma história importante a ser contada para as crianças.
O livro conta a jornada da artista desde pequena, quando ela começou a se interessar pela música, com um empurrãozinho do pai e, depois, passou a tocar na igreja que frequentava com a mãe, que era ministra. Foi lá que ela foi vista por uma professora de piano, que a ensinou tudo sobre música clássica e criou um fundo que possibilitou que ela fosse uma das primeiras alunas negras na maior e mais aclamada escola de Nova York, a Juilliard. Com poucas condições financeiras para prosseguir com os estudos, Eunice começou a tocar e cantar em um bar - o que, ela sabia, não seria bem aceito por sua mãe. Por isso, criou o nome artístico Nina Simone.
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O sonho de Eunice era se tornar a primeira pianista clássica negra dos Estados Unidos. Mas as portas se fecharam para ela. Não faltava talento e dedicação. Nina era um gênio da música e era impossível negar isso, ao vê-la tocar. No entanto, o racismo não permitiu que ela entrasse para a escola de música clássica na América, na década de 1950. Embora tenha sido impecável na audição, foi rejeitada pelo prestigiado Instituto de Música Curtis, na Filadélfia.
Temos de começar a contar aos nossos jovens: há um mundo esperando por você. (Nina Simone)
Mas ela se reinventou e não desistiu. Por insistência do dono do bar em que trabalhava para se sustentar, começou a cantar. Passou da música clássica para o jazz e acabou assinando contrato com uma gravadora. A canção I loves you Porgy virou hit em 1958 e ela estourou. Mais adiante, ela transformou seu talento em instrumento de luta pelos direitos civis, principalmente da população negra - o que quase custou sua carreira. Seu ativismo e militância fizeram com que ela fosse rejeitada pelo showbiz. Mas ela não desistiu, se reinventou novamente e deu a volta por cima, com muita luta contra o mundo e contra si própria e seus “demônios”. Morreu em 2003 e deixou um legado de talento e de força contra as injustiças do mundo. Uma história da qual nem todas as partes são bonitas, mas que vale a pena ser contada, sobretudo para o futuro.
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Por que essa história precisa ser contada
“A trajetória de vida de qualquer pessoa é objeto relevante do interesse humano e do interesse histórico. Se essa pessoa é uma mulher sensível, negra, exímia pianista, grande compositora, cantora, ativista, sua trajetória, além de muito interessante, serve como uma história que ilumina tantas outras, na medida em que informa sobre valores humanos indispensáveis para se viver uma vida melhor: para se sonhar, enfrentar dificuldades de seu tempo e conseguir expressar uma mensagem de amor, de mudança e de esperança para as novas gerações”, diz a Professora Doutora Maria Elizabeth R. Carneiro, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais (INHIS/UFU).
Gastei muitos anos perseguindo a excelência porque é nisso que se pauta a música clássica. Agora, eu me dedico à liberdade, o que é muito mais importante. (Nina Simone)
Além do incrível talento musical e da persistência e estudo para chegar aonde queria, ela também usou sua visibilidade por uma causa importante à humanidade: a luta contra o racismo e a segregação. “Na parte da música, sua história revela uma firme disposição em conquistar o instrumento musical - ela queria ser pianista clássica -, em fazer dele uma expressão de qualidade estética, em estudar bastante para conseguir tocar e compor canções lindas, emocionar as pessoas que ouvem, distribuindo essa linda forma de expressão e emoção”, explica Carneiro.
Nina não se conteve em lutar pelas questões de seu tempo, sobretudo pela justiça social. Sua trajetória mostra como ela foi forte ao mobilizar as pessoas para lutarem por um mundo melhor, menos desigual, por melhores condições de vida para os/as negros/as, os/as excluídos/as, os/as que têm menos oportunidades na vida. Assim, ela mostra sua força e um exemplo de luta e cidadania (Elizabeth Carneiro, professora do INHIS/UFU).
Falar de resistência é dar esperança aos pequenos
A morte violenta de pessoas negras pelas mãos de pessoas brancas motivou Nina a querer fazer algo para tentar mudar essa história, a dar visibilidade, a mostrar que as coisas não podiam continuar daquela forma. Infelizmente, todos os dias os noticiários ainda escancaram descasos tristes, indiferença, injustiça, racismo. E as crianças acabam expostas a esses acontecimentos. Portanto, falar de resistência é também dar esperança aos pequenos. É uma forma de mostrar que é preciso encarar os fatos para que haja uma transformação - ainda que bem lenta. A história de Nina Simone pode ser um dos pontos de partida.
Eu te digo o que a liberdade significa: não ter medo (Nina Simone)
“As histórias de racismo não se esgotam. Ao contrário: o racismo é exposto na nossa sociedade, mas não apenas aqui”, afirma a professora. “As formas de racismo e exclusão são evidentes cotidianamente no mundo e é preciso lutar contra elas, mobilizar as pessoas para a ação coletiva e responsável, sensibilizá-las nessas lutas. Mostrar episódios opressivos, hediondos e demonstrar que eles foram construídos com violência no passado é preciso, a fim de revelar a necessidade de se transformar a sociedade na direção da solidariedade e do respeito humano. Mostrar que é preciso construir um mundo de paz! Os episódios de violência contra negros/as, indígenas, mulheres, crianças, idosos/as se repetem, evidenciando como alguns seres podem ser tão desumanos, como a sociedade reproduz tantas violências históricas cotidianamente", completa.
A música, como veículo de sensibilização, pode ser um instrumento forte e precioso de transformação nessa sociedade. Nina Simone é um exemplo disso! (Elizabeth Carneiro, professora do INHIS/UFU)
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Embora o caminho da luta contra as opressões e o racismo ainda seja longo, a inspiração em figuras como Nina ajuda a mostrar que, se era possível lutar em um contexto árduo, é obrigação das gerações atuais dar continuidade à resistência. “Nina era uma pessoa que vivia no seu tempo, em suas condições de possibilidade, imersa em relações de violência machista e racista na sociedade estadunidense, portanto, ela sofria e falava de seu sofrimento nas canções, reagia, buscava alertar as pessoas no sentido de que o mundo precisava mudar!”, diz a professora. Além de tocar, cantar e contribuir com o enriquecimento da cultura, ela foi além: aderiu aos movimentos sociais pelos direitos humanos e pelos direitos civis para a parcela excluída da sociedade de direitos. “Nina contribuiu muito – com sua voz, suas canções, sua história – para as mudanças que se processaram, ainda que o racismo tenha permanecido vivo não apenas lá, mas sobretudo nas sociedades que viveram a violência da dominação escravista. A luta continua!”, pontua.
Por onde começar?
A leitura de Nina é uma forma de começar a despertar o interesse das crianças por essa figura, de genialidade cultural e coragem. Mas, é claro, não dá para falar dela sem mostrar suas músicas. Com um repertório tão vasto e variado, fica difícil saber quais canções escolher para dar o play primeiro com os pequenos. Por isso, pedimos à professora Maria Elizabeth duas sugestões:
- Ain’t got no.../ I got life - Nessa música, ela aborda a situação de necessidade do ser humano empobrecido em relação aos bens materiais, às oportunidades do mundo capitalista, mas mostra que tem a vida, a liberdade. Uma mensagem forte!
- Feeling good - Apesar das agruras da vida, é possível sentir a natureza, sentir os pássaros, o amanhecer...
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