É hora do almoço e a criança já sabe o que vai preparar: sopa! É assim que a história começa em A sopa está pronta! (Companhia das Letrinhas, 2024), mais um conto acumulativo da autora alemã Susanne Strasser. Após o anúncio da criança, cada animal vai trazendo um ingrediente para jogar na panela - e ninguém sabe qual vai ser o resultado final…
A sopa está pronta! (Companhia das Letrinhas, 2024), ou melhor: está quaaaase pronta. E os bichos esperam ansiosos
Já o elefante Gildo prefere chamar os amigos para um piquenique. Cada um vai levar um prato diferente para compor um verdadeiro banquete em O piquenique do Gildo (Brinque-Book, 2024), de Silvana Rando, que compartilha com os leitores as receitas que cada bicho vai preparar - e que podem ser reproduzidas em casa.
Não é novidade que a comida tem o poder de reunir - seja em torno da mesa ou ao redor de uma toalha de piquenique. Mas a verdade é que todo o ritual começa muito antes da hora de comer - e pode ensinar muito às crianças. Uma ida à feira ou ao supermercado, a higiene e o preparo dos alimentos na cozinha, tudo isso ajuda formar a ideia que seu filho terá sobre a comida e sobre o papel fundamental que ela tem. Sim, comer bem tem impactos comprovados na saúde, mas não apenas. O que se coloca no prato influencia a formação da personalidade, forma relações e constrói preferências que podem durar por toda a vida.
Comer cria memórias afetivas que desempenham um papel crucial no desenvolvimento emocional e cognitivo das crianças. “Desde os primeiros anos de vida, essas lembranças especiais se tornam uma parte fundamental da jornada de cada indivíduo, moldando sua percepção do mundo e influenciando sua visão sobre si mesmo e sobre os outros”, aponta a psicóloga Cristina Borsari, coordenadora do serviço de Psicologia do Sabará Hospital Infantil (SP).
“A alimentação envolve uma diversidade de preparos e formas de servir, compondo a identidade cultural dos sujeitos. Envolve lembranças, emoções e valores simbólicos, se constituindo como fator de socialização, intimamente relacionada à hospitalidade”, Cristina Borsari, psicóloga
Quem não se arrepia só de lembrar do cheiro da lasanha preparada pela avó? Ou daquela torta que uma tia querida oferece toda vez que você chega à casa dela? Em Na minha rua passa um carro (Companhia das Letrinhas, 2024), de Vienno, as memórias afetivas vão chegando a cada carro que passa vendendo os mais variados alimentos - frutas, pamonha, ovos e até picolé! -, uma lembrança comum na rotina de quem mora no interior do Brasil. Aproveitando o cortejo, os avós vão comprando tudo o que precisam para o almoço de domingo - uma tradição inegociável de muitas famílias brasileiras.
O piquenique do Gildo (Brinque-Book, 2024), de Silvana Rando, pode despertar o interesse das crianças pela cozinha - e encorajá-las a se envolver no preparo das receitas apresentadas pelo livro
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Mas por que é tão importante conhecer e ter intimidade com o que se come?
Construir bons hábitos alimentares envolve muito mais do que garantir uma nutrição adequada e promover a saúde. Para a psicóloga Cristina, os benefícios de aproximar as crianças da cozinha englobam o conhecimento sobre a origem dos alimentos, sobre os impactos das nossas escolhas alimentares na natureza, sobre o que é mais saudável - e o que não é - e ajuda a construir as bases para o cuidado com a própria alimentação. “A criança que desperta para a curiosidade e para atividades manuais, como cortar, lavar e manusear os alimentos, desenvolve habilidades sensoriais e cognitivas que lhe permitem maior segurança”, afirma. A especialista também cita um artigo da psicóloga Vivilaine Maturana que destaca a importância da família na construção de sentimentos ligados à alimentação. “Os ritos familiares têm um peso muito grande na constituição do sujeito, eles constituem inclusive a forma e o ritmo das refeições, influenciando diretamente até mesmo no paladar e no gosto de cada sujeito”, diz o texto. Ou seja, os valores que as crianças aprendem sobre alimentação no contexto familiar estarão presentes em toda a trajetória de vida delas.
“A alimentação é uma das expressões mais sensíveis da cultura. As receitas e seu preparo mobilizam diferentes memórias, estimulando e desencadeando sentimentos entre o passado e o presente, materializado na forma como a experiência gastronômica é vivenciada”, Cristina Borsari, psicóloga
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Todas as vivências que promovem o encontro das crianças com os pais geram marcas importantes. A construção e o reforço desse vínculo acontece também na cozinha. “É no encontro com o outro que compreendemos quem somos”, afirma a psicóloga e psicanalista Gabriela Malzyner, que coordena o Núcleo de Infância e Adolescência do Centro de Estudos Psicanalíticos (CEP) e é consultora voluntária do Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares (CENDA), do Instituto PENSI. “As refeições, portanto, são momentos privilegiados. Hoje, temos ainda o agravante das telas - que, muitas vezes, se sobrepõem a possíveis encontros. Então a hora de comer, com todos juntos, se torna ainda mais fundamental, permitindo olho no olho, atenção compartilhada, empatia, conversa”, explica ela.
Outro ponto importante que a cozinha é capaz de ensinar, em tempos em que tudo é tão rápido, imediato e tecnológico é a paciência. Ao preparar os alimentos, os pequenos veem a materialidade e a existência dos ingredientes, percebem o tempo que é necessário para a produção de cada receita, observam a transformação que ocorre nos encontros entre os ingredientes. “São elementos fundamentais para tempos em que os processos são atravessados por fast food, fast social, fast áudios, fast vídeos”, destaca Gabriela.
Além disso, cozinhar desde cedo pode até se tornar uma paixão. “Tudo o que começamos na infância tem grandes chances de se consolidar na fase adulta”, aponta a psicóloga Cristina. Quando as crianças vivem momentos interessantes na cozinha, tendem a crescer considerando aquilo algo positivo e divertido – e não simplesmente uma tarefa ou obrigação. Sem falar que, esse tipo de atividade, expõe os pequenos a uma vasta gama de oportunidades de aprendizagem. “Desde o social, cognitivo e psicomotor, passando pelo conhecimento adquirido de receitas e culinário, chegando até lições sobre as propriedades físicas e químicas dos elementos de uma cozinha. O contato com a consistência dos alimentos e as experiências que vêm com isso promovem a curiosidade e despertam um maior cuidado com a alimentação”, aponta a especialista.
Mesmo que seu filho não queira se tornar um chef, cozinhar é uma habilidade que ele levará a vida toda. Saber escolher e preparar os próprios alimentos oferece autonomia e controle sobre o que se come, permitindo fazer escolhas mais saudáveis. Isso é importante sobretudo no contexto atual, em que o consumo de ultraprocessados cresce exponencialmente – o que ajuda a explicar a explosão de casos de obesidade e sobrepeso na infância. Dados do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil, divulgados em 2024, revelam que quase 25% da alimentação das crianças menores de 5 anos no país é composta por ultraprocessados, industrializados feitos a partir de produtos que não existem nas cozinhas caseiras, como químicos, corantes, estabilizantes, adoçantes. Tudo usado com o intuito de melhorar a aparência, o sabor ou a textura de alimentos, que, de comida, têm pouco ou quase nada.
A sopa está pronta! (Companhia das Letrinhas), Susanne Strasser - quem não sente a ansiedade de ver a comida pronta, saindo do fogão?
Um projeto da Universidade Harvard, que analisou 15 anos de pesquisas acadêmicas sobre refeições familiares, mostrou que crianças que jantam regularmente em família costumam consumir mais nutrientes de frutas e vegetais, têm índices menores de obesidade e menor propensão a serem obesos quando adultos. “Foram identificados, também, benefícios acadêmicos e emocionais: taxas menores de uso de drogas e de depressão, mais resiliência, vocabulário mais amplo, maior capacidade de leitura e, no geral, notas melhores na escola”, diz Cristina, reforçando que o preparo dos alimentos e o ato de comer junto oferecem às crianças a conscientização sobre os valores da família, o cuidado com os alimentos e com o ambiente e resulta em maior conexão e diálogo.
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Sem pressa, sem pressão
Você não precisa arrastar as crianças agora mesmo para a cozinha ou tornar o preparo das refeições uma atividade compulsória dentro de casa. “Proporcionar momentos de partilha em torno do preparo de alimentos e receitas somente será uma experiência feliz e de conexão se o contato com os alimentos acontecer naturalmente, respeitando o conforto, o interesse e as possibilidades de autonomia e competência da criança”observa a fonoaudióloga Karina Rizzardo Sella, coordenadora da área de Fonoaudiologia do CENDA, o Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares, do Instituto PENSI. Ela ressalta também a importância de os pais permanecerem atentos ao que cada criança comunica diante das experiências sensoriais provocadas pela aproximação de qualquer alimento. Assim, eles serão capazes de facilitar as dinâmicas na cozinha, respondendo à motivação interna da criança em realizar algo. “A falta de responsividade, a pressão e o controle nas ações da criança, que a obrigam a ter contato com os alimentos, a preparar ou a provar algo em um momento que deve ser de total bem-estar e reciprocidade pode gerar respostas de defesa e sensibilidade capazes de interferir negativamente no seu aprendizado alimentar”, lembra.
O vendedor de verdura na kombi, em 'Na minha rua passa um carro' (Companhia das Letrinhas, 2024), vai na contramão da cultura dos ultraprocessados
Ela orienta a incluir as crianças de acordo com as competências e afinidades delas - sem forçar. “A alimentação é uma experiência sensorial, e os alimentos desde a sua aparência, cheiro, textura, sabor podem despertar uma maior sensibilidade em algumas crianças, o que significa que elas simplesmente podem não estar prontas ou tão confortáveis a uma aproximação ou contato”, explica. Por isso, a sugestão é observar como seu filho se sente diante de cada alimento ou tarefa, considerando a personalidade, o gosto e o nível de desenvolvimento. “Seu filho pode, por exemplo, ainda não ser capaz ou não se sentir confortável para quebrar os ovos ao ajudar no preparo de um bolo, mas pode se sentir feliz e motivado ao fazer uma ‘chuva’ de farinha sobre eles”, pontua.
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É importante também não exagerar no outro extremo. “Participar da preparação dos alimentos ou fazer refeições em família somente será uma experiência positiva e que contribui para que a criança tenha prazer ao se alimentar e faça boas escolhas se o vínculo em torno da alimentação não for submetido a uma rigorosa pressão de escolhas saudáveis”, diz Karina. É importante lembrar que qualquer experiência que envolva a alimentação não seja reduzida apenas a ingestão de nutrientes, ao provar e experimentar alimentos novos. Comer sem estar com fome ou sem gostar só porque determinado alimento é saudável também não é bom.
A escolha do que entra ou não no prato das crianças depende de muitos fatores e é atravessada por recortes sociais, econômicos, pela educação, pelo conhecimento, pela cultura. Mas é importante lembrar que, ao menos quando se tem escolha, as experiências e o contato que os pequenos terão com a comida depende de como os pais e cuidadores vão apresentar tudo isso a eles.
Comer é uma experiência complexa que envolve o corpo e os sentidos, afeto e memória, relacionamentos e vontades. Entender o equilíbrio entre comer por prazer e para saciar a fome, saber do que se gosta (e do que não se gosta) e se dispor a experimentar o novo, tudo isso é aprendizado. E essas experiências podem - e devem! - ser construídas no dia a dia, em família. Desde o café da manhã até a hora do jantar.
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