Vinicius Xavier, o Vienno como é conhecido nas redes sociais, se apresenta como um "ilustrador caipira". E com propriedade. A calmaria, os muitos tons de verde e o bucolismo de uma vida que acontece a passos (mais) lentos são inspiração para as histórias que ele cria a partir de suas próprias vivências. Nas ilustrações de Vienno, as paisagens, a cultura e os personagens que marcam o interior do Brasil são retratados em uma atmosfera bucólica e divertida, com paletas de cores cuidadosamente combinadas, convidando a (re)descobrir profundidade e beleza no que parece simples.
Vienno no lançamento de O jeguinho Tenório (Companhia das Letrinhas, 2024) em Campinas
O jeguinho Tenório (Companhia das Letrinhas, 2024) é seu primeiro livro como autor e ilustrador. Na história, Tenório, um jegue mágico com chifre de unicórnio, tem um dom especial: a força e a vontade de ajudar seus amigos. O carneiro, o porco, a tô-fraco e a marreca, todos pedem que o jeguinho carregue seus fardos - afinal, é isso o que todo mundo espera que um jegue faça. Mas, Tenório descobre que tão importante quanto ser gentil e solícito é respeitar os próprios limites.
Já em Na minha rua passa um carro (Companhia das Letrinhas, 2024), são os carros de vendedores ambulantes, que passam oferecendo todo tipo de coisa de porta em porta - geralmente anunciados por um alto falante - que conduzem a narrativa. Os vendedores saem do anonimato ganhando rostos e nomes. E cada veículo que para - do carro das verduras ao da pamonha - está trazendo um elemento que vai estar na mesa do almoço de domingo que os avós preparam para seus netos. Um retrato poético da atmosfera de interior.
O vendedor do carro da pamonha é o senhor Astolfo Sabugo em Na minha rua passa um carro (Companhia das Letrinhas, 2024)
Nascido em Limeira, interior paulista, Vienno se mudou aos 19 anos para a 'metrópole', para cursar artes plásticas na PUC-Campinas graças a uma bolsa integral do ProUni. Instalou-se em um distrito mais rural da cidade, Barão Geraldo, onde conseguiu manter “a mesma calma e o mesmo ritmo do interior”. A cultura caipira foi, inclusive, tema de seu trabalho de graduação, que focou em formas de representação visual dos elementos que compõem a vida no interior.
Hoje, além de autor, ele dá aulas de artes plásticas para crianças de três a 10 anos. Em entrevista ao Blog Letrinhas, Vienno falou sobre como a vivência no interior está intimamente ligada à construção de sua própria identidade e ao seu trabalho, suas referências como autor e como o cotidiano é inspiração para criar narrativas mágicas.
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Confira a entrevista com Vienno
Blog Letrinhas: Você se apresenta como um "ilustrador caipira". Como essa vivência no interior te marca?
Vienno: Eu gosto muito de me intitular como um um artista caipira por me identificar com as práticas e o comportamento de pessoas do interior, que tendem a praticar mais a vizinhança, o senso de comunidade, as trocas. Dentro da metrópole, essas relações acabam sendo diluídas. É muito importante no meu trabalho trazer o carinho, o conforto e as cores do interior. A minha identidade, a minha origem e o meu trabalho estão intrinsecamente ligados.
Blog Letrinhas: Você se lembra do seu primeiro contato com cidades maiores?
Vienno: Nas minhas primeiras experiências de infância, eu me sentia muito ansioso na metrópole, que era São Paulo (SP). Me lembro de ir para lá umas duas vezes com a minha mãe e de ficar muito assustado. Mais tarde, na adolescência, me lembro de visitar cidades maiores para ter contato com outras culturas e com o circuito de museus, de arte, de oficinas. A gente do interior cresce muito com a ideia de que na metrópole há mais perigos, mais violência - o que é um fato - e ficamos assustados. Acho que o que mais me marca nesse contraste entre o interior e a metrópole é a diferença entre os ritmos e as prioridades das pessoas.
Blog Letrinhas: Como foi o seu processo de se tornar autor?
Vienno: Eu desenho desde criança. Acho que é comum desenhar nessa fase, só que a maioria tende a abandonar o desenho em algum momento. Mas eu não. Sempre foi um hobby desenhar, até porque eu só tive contato com tecnologia muito tarde, lá pelos 13 anos ou 14 anos. Então ler, consumir desenhos, histórias em quadrinhos, tudo isso sempre foi muito importante. Imagino que caiba bem para explicar isso é o perfil do "artista autodidata". Eu sempre fui muito curioso, muito interessado. Antes de qualquer instrumentalização, de oficinas, de cursos, de aula, de faculdade, essa força de vontade que às vezes chamo de teimosia foi o que me levou a acreditar no desenho. Me lembro de tentar criar personagens dentro dos universos que já existiam, como ‘A turma da Mônica’ e ‘Pokemon’.
Desenhar e criar narrativas para mim são coisas que sempre andaram juntas.
Blog Letrinhas: E como esse processo de criação de narrativas com imagens se deu em ‘O jeguinho Tenório’ e ‘Na minha rua passa um carro’?
Vienno: Acho que toda imagem automaticamente conta uma história. Lembro de ser uma criança que inventava muito - às vezes até beirando a mentira. Mas, quando eu inventava alguma coisa e falava em voz alta, costumava ser repreendido. Já com a imagem, a invenção era mais bem recebida. A imagem que pegava a realidade e transformava em outra coisa era muito bem aceita e até valorizada. Os adultos diziam: “você que inventou isso? Você criou isso sozinho?” Acho que essa possibilidade de criação através das imagens é o que me fascina. Eu gosto de olhar para o cotidiano, de pegar uma imagem ordinária e criar para ela novas camadas. Foi assim com O jeguinho Tenório e com Na minha rua passa um carro, que são duas obras que falam sobre o interior do Brasil.
Quem vê de fora pode descrever minhas histórias como simples - e realmente são muito simples. Mas eu acredito que o simples, quando se aproxima da nossa subjetividade, de quem a gente é, das nossas histórias, das nossas fantasias é o que faz brilhar os olhos dos leitores.
Para mim, O jeguinho Tenório vai por esse caminho. Uma criança que ia muito para a fazenda, para o sítio, que gostava muito de ver os animais, os verdes, e que às vezes ficava entediada - e precisava inventar histórias. Já com Na minha rua passa um carro, pegar esses automóveis, essas pessoas que nem são personagens e começar a tecer histórias sobre elas é o que constrói a história. Esse poder de criar novos universos é o que faz a gente enxergar magia nas coisas.
Blog Letrinhas: Que autores são referência na sua criação?
Vienno: Como leitor, gosto muito de realismo fantástico, como Gabriel García Marques, mas a autora que eu mais gosto atualmente é Socorro Accioli. Leio romances, principalmente os nacionais, e tenho continuado a leitura da saga napolitana da Elena Ferrante, sou muito fã. Também sou apaixonado por política, meio ambiente, alimentação, gosto bastante de autobiografias de pessoas amarelas e consumo muitos quadrinhos também de autores orientais, como a Keum Suk Gendry-Kim [quadrinista e artista sul-coreana]. Eu gosto muito também de romances, em especial romances LGBTQIAP+. E claro, eu leio muitos livros infantis. O meu favorito é O Jardim da Minha Baba (Pequena Zahar, 2024), que foi ilustrado pelo Sidney Smith, que é o meu autor predileto de imagens. Esses autores, não só eu consumo enquanto mero leitor, mas eles também são todos grandes referências minhas. Fora isso, tem autores gigantes brasileiros que eu sou fã, como Guilherme Karsten [autor de Carona (Companhia das Letrinhas, 2020) e Se eu tivesse asas (Brinque-Book, 2022)], Irena Freitas [autora de A floresta (Companhia das Letrinhas, 2021)], Natália Gregorini [ilustradora de Mãos (Companhia das Letrinhas, 2024)], Ana Matsusaki [ilustradora de Pão na Chapa (Companhia das Letrinhas, 2022)], Rômolo D'Hipólito [ilustrador de O baiacu que adorava fantasias (Brinque-Book, 2024)], o Helder Oliveira... Todos eles têm trabalhos que sempre brilham os meus olhos.
Blog Letrinhas: Você fala bastante nas suas redes sociais sobre ter acesso à natureza, morar onde se possa fazer tudo à pé. Como você acha que a falta desse tipo de experiência está influenciando as infâncias? E onde a literatura entra nisso?
Vienno: Eu lembro muito de, quando criança, poder andar pela rua e gravar os trajetos, de ter uma cartografia mental do que definia a minha região, o meu espaço. E isso era importante para eu me sentir eu mesmo. Durante o isolamento social, tive que voltar para Limeira, minha cidade natal, e comecei a pensar muito em como é morar em uma cidade do interior, onde tenha muito verde, onde eu possa me deslocar a pé. E isso me preocupa em relação às novas infâncias. As crianças têm pouco tempo do tédio, elas têm pouco tempo de brincadeira na rua. A rua foi um espaço muito importante para a minha infância, e eu acredito que tem que ser um espaço para crianças - tornado seguro, arborizado. Elas acabam perdendo esse lugar de socialização e principalmente de exploração.
Como filho de uma mãe solo, que trabalhava o dia inteiro e que acabava ficando na creche ou na rua brincando com os amigos, o ato da exploração foi muito importante para mim: explorar o mato, explorar casas abandonadas. Não sou formado na área da educação, mas como quem dá aula para crianças, fico preocupado em como elas estão sendo isoladas de uma experiência íntegra de cidade. Acredito que a literatura possa introduzir uma curiosidade nas crianças sobre essas vivências que elas não têm. Ao mesmo tempo em que eu fico triste de pensar que elas não vão se identificar tanto com o jeguinho Tenório, acredito que a história pode gerar uma curiosidade - que tipo de vida é essa? Ainda tem gente que vive assim? A literatura que preza pela natureza, que preza pelo acesso às cidades e a todos os espaços é importante na infância, para que as crianças possam sair da bolha. Para que elas vejam as ruas e elas vejam as matas que estão além dos muros de suas casas.
Blog Letrinhas: Como tem sido a devolutiva das crianças nas oficinas que você tem realizado apresentando os livros e esses elementos caipiras, que às vezes são completamente desconhecidos por leitores da cidade?
Vienno: Tem sido muito engraçado, tanto pelas crianças quanto pelos adultos. Por causa de O jeguinho Tenório, eu pergunto se as crianças sabem o que é um jegue, se sabem o que é uma galinha d'angola, o que é um carneiro. Elas ficam meio receosas, tentam se lembrar. Muitas vezes os pais falam: "a gente foi aquela vez em uma fazendinha" ou no sítio... Dá para ver que são experiências bem esporádicas. Na minha família, acho que eu sou da primeira geração que nasceu em uma cidade, mas que ainda assim teve muito contato com chácaras e sítios, animais e hortas. Os adultos também respondem, principalmente em relação a Na minha rua passa um carro. Por mais que muitas dessas pessoas estejam nas metrópoles, elas me falam que ainda passam esses carros de ambulantes na rua delas. É uma cultura que ainda está muito forte.