Só até aqui: como ensinar crianças a impor seus próprios limites

31/07/2024

Os adultos sempre elogiam uma criança “boazinha". Aquela que ajuda sempre, que não discute, que compartilha tudo, que toma conta do irmãozinho, que não se importa em emprestar o lápis de cor ou a bola para o amigo... 

Claro que pensar no próximo e ter empatia é bom. Mas, se olharmos só para o outro, quem é que vai olhar para nós?

Emprestar o lápis de cor para o colega é uma atitude gentil. Mas, se você estiver usando o lápis naquele momento, tudo bem pedir que o colega espere que você termine de pintar o seu desenho. E tudo bem também se você não se sentir à vontade para emprestar, ainda que não esteja usando. Acatar sempre os pedidos dos outros, mesmo quando isso significa negligenciar seus próprios desejos, vontades e emoções, pode ser um fardo muito pesado de se carregar.

Que o diga o jeguinho Tenório! No livro O jeguinho Tenório (Companhia das Letrinhas, 2024), de Vienno, o animalzinho mágico  - que tem até um chifre de unicórnio! - é todo feliz e saltitante. Ele adora conviver com seus amigos do rancho. Na verdade, gostava tanto da tô-fraco, do carneiro, do leitão e do marreco, que não negava absolutamente nada a nenhum deles. Mesmo cansado, ele topava carregar os pacotes pesados dos colegas, sem titubear... Até que um dia, ele fica exausto e começa a devolver a carga que pertence a cada um.

O jeguinho Tenório foi ajudando os amigos a carregarem seus pertences

Em O Jeguinho Tenório, de Vienno (Companhia das Letrinhas), personagem foi dizendo "sim" e carregando os pertences dos amigos

Tenório precisou chegar ao esgotamento extremo para encontrar um jeito de dizer aos amigos que não aguentava mais levar em seu lombo o que era deles e que, se cada um levasse o que é seu, ficaria tudo mais fácil para todo mundo. Não precisaria ser assim, se todos nós aprendêssemos desde o início a pensar em nós mesmos, a estabelecer os nossos limites e a comunicá-los aos outros, em vez de tentar atender às expectativas alheias -  ainda que isso nos atrapalhe ou até nos machuque. Mas, na prática, aprender a colocar e a comunicar limites não é uma tarefa das mais simples.

“Nós, adultos, temos muita dificuldade porque, da mesma forma que buscamos a mãe perfeita, sonhamos com a criança perfeita, que é aquela que, na nossa imaginação, é sempre boa, ajuda, empresta, cumpre os combinados, cumpre as tarefas. Mas quem é que consegue ser uma coisa só?”, questiona a educadora parental Lua Barros. “Nós somos essa mistura de luz e sombra e é preciso permitir que as crianças também sejam”, diz ela.

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Luz e sombra: as partes que queremos mostrar - e as que preferimos esconder

A especialista lembra que, com frequência, classificamos ser egoísta como uma das nossas sombras, algo que devemos varrer para baixo do tapete ou reprimir. Mas será que pensar em si mesmo, ainda que de vez em quando, é ruim? “Não estamos disponíveis para os outros o tempo todo, por que esperamos isso das crianças?”, indaga. Pensar nos outros, ceder, ajudar... Tudo isso é positivo, mas não é preciso fazer tudo que todos pedem o tempo todo.

Como, então, saber até onde ir? Como balancear gentileza e altruísmo com o próprio querer - e como ajudar as crianças a fazerem o mesmo? “Sempre que falamos em encontrar o equilíbrio, estamos falando sobre sustentar o desconforto”, diz Lua. “Nesse caso, trata-se de sustentar o desconforto de não ser uma coisa só, o que tem a ver com o nosso pensamento dual sobre nós mesmos, sobre o mundo. Estamos sempre em busca dessas dualidades: o bom e o ruim, o feio e o bonito, o alegre e o triste. Quando entendemos que somos muitas coisas, fica mais fácil sustentar as mudanças de ideia e de comportamento que aparecem. Com as crianças, é exatamente a mesma coisa: se ela entende que tem espaço para dizer sim e também tem espaço para dizer não, ela consegue navegar entre esses dois papéis com tranquilidade”, explica.


Comunicar os limites é sustentar o desconforto, de certa maneira

Não há um jeito fácil de aprender ou de ensinar limites; Mas um ponto importante é ficar atento aos discursos, sobretudo nos pedidos, nas broncas e nos elogios. Lua lembra que, se a criança ouve o tempo todo que “é feio não ajudar o coleguinha” ou, o contrário, que ela “é a mas boazinha porque ajuda todo mundo”, que “sempre resolve conflitos e une os amigos”, ela vai perseguir esse objetivo. Isso porque ela entende rapidamente que é assim que ganha reconhecimento. “Quando a criança não quiser fazer aquilo (que foi pedido), vai entrar em conflito com ela mesma”, aponta.

Porém, quando se trata de ensinar qualquer coisa às crianças, importa muito mais o que se faz, do que o que se fala. Os pequenos absorvem informações sobre como a vida funciona ao observar a maneira como os adultos agem. Então, se você quiser que seu filho entenda que ter limites e comunicá-los aos outros é natural e positivo, faça isso também. “Quando nos humanizamos e colocamos nossos próprios limites, isso ensina de um jeito que fica marcado para sempre”, afirma Lua.

 Quando você vai ao banheiro e explica que vai fechar a porta porque aquele momento e aquele espaço são seus, está mostrando um limite. Quando você sai para trabalhar, mostra para o filho que não é só mãe, mas que a vida é composta por outras coisas que também dão prazer, alegria, felicidade. “Faz muito bem às crianças quando elas veem os pais ocupando outros papéis, quando percebem que são mais do que ‘apenas’ os pais delas. Esse diálogo dentro de casa ajuda a entender sobre os limites das pessoas. Elas vão compreendendo que, se pai e mãe têm limites, elas também podem ter”, diz a educadora parental.

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Limite se aprende com o tempo e sem evitar desconfortos

Nunca é fácil querer chegar a algum lugar e dar de cara com um muro, uma barreira que impede que sigamos na direção que gostaríamos. O nome desse muro é desconforto, “Ele mostra que ‘daqui você não passa’. É duro”, lembra Lua. 

Aceitar a presença desse muro - e buscar rotas alternativas - é algo que vem mesmo com o tempo, conforme as vivências vão se acumulando. O que não quer dizer que pais e educadores não precisem desempenhar um papel ativo. “O primeiro passo é ensinar às crianças que o que elas sentem importa. Depois, é preciso ensinar que o que o outro sente também importa e que o encontro dessas duas coisas é sempre muito delicado. Sempre precisaremos fazer escolhas, prestar atenção, olhar. Mas é, realmente, uma habilidade que se desenvolve com o tempo, não existe uma ferramenta mágica”, resume.

A própria comunicação de limites costuma gerar certo desconforto - ainda que a criança seja respeitosa ao estabelecer e deixar claro aquilo que é importante para ela. É inevitável que fazer essa demarcação de até onde o outro pode chegar provoque uma certa “chateação”, lembra a educadora parental. Segundo ela, o desafio dos pais é ajudar a criança a sustentar a posição dela, sem dizer se é certo ou errado.

As crianças aprendem a demonstrar seus limites conforme crescem e experimentam diversas situações. Antes de saberem lidar com isso lá fora, nas mais diversas situações e relações sociais, é importante que ela aprenda, por exemplo, a expressar algo que a desagrada dentro de sua própria casa. “A convivência familiar já é um grande exercício de limites”, afirma a educadora, que lembra que este é um treino para a vida. “Quando a criança é bem pequena, ela pode demonstrar que não gostou da comida ou que não quer mais, jogando o prato no chão. Com o tempo, ela cresce e aprende a dizer que não quer mais, que está satisfeita. Inicialmente, o prato foi jogado no chão e ela foi sendo ensinada que o limite poderia ser colocado de outra forma”, diz Lua.

Mas para que a criança realmente aprenda a importância de colocar limites, é preciso lembrar também de um ponto fundamental: respeitá-los. Se a criança sinaliza que já está satisfeita, nada de insistir com “só mais uma colherinha”. “O limite dela está colocado. É preciso que nós consigamos respeitar. É um exercício de estica-e-puxa o tempo inteiro”, resume a especialista.

Capa de O jeguinho Tenório (Companhia das Letrinhas)

Atenção para as meninas

Saber que você não precisa agradar e acatar tudo o tempo todo tem um peso mais forte, dependendo do gênero. Em passos de formiguinha, isso tem começado a mudar um pouco, mas, ainda hoje, as meninas são socializadas desde cedo para essa forma "boazinha" de se comportar. Para não se sujarem, para serem empáticas, estaremos sempre disponíveis, falarem de forma delicada, cuidarem dos outros. “Isso aparece em todas as relações que as meninas estabelecem”, diz Lua Barros.

“Mais importante do que ensinar a colocar limites de forma respeitosa, é essencial ensinar a elas que o que elas sentem importa, porque isso costuma ser adormecido nas mulheres, em geral. A sociedade não quer saber o que as meninas sentem ou desejam, mas exige que o ‘roteiro’ seja cumprido e isso é muito triste”. Kua Barros educadora parental 

Para ela, esse jogo só muda quando passamos a repensar papeis de gênero, questionando as responsabildades estabelecidas a cada um e os espaços tradicionalmente ocupados por meninos e meninas. "Por exemplo, quando deixamos de esperar que as meninas sejam responsáveis pelas boas relações dentro de uma sala de aula e colocamos essa responsabilidade no colo dos meninos. Quando estimulamos as meninas nos esportes, nas ciências, porque elas passam a ocupar lugares que estão mais associados à razão do que à emoção, ao intelecto do que à sensibilidade, e isso faz com que elas ampliem o olhar delas sobre elas mesmas e não se preocupem tanto em agradar”, sugere.

Limite ou falta de educação?

Está tudo bem chegar a uma reunião de família e não querer dar um beijo na tia ou um abraço no avô. Mas não está tudo bem não cumprimentar ninguém.

Para Lua, essa separação entre o que é o limite próprio e o que é falta de empatia, de enxergar e de ser educado com as pessoas é também um ponto essencial dentro dessa discussão. “É preciso retomar a conversa sobre o que são as boas maneiras, que nos transformam em uma sociedade educada”, ressalta. “O contato físico não precisa ser uma obrigação. Criança nenhuma precisa beijar parente, se não quiser. Mas, talvez, em uma tentativa de proteger, os pais foram para outro extremo, que é achar que está tudo bem chegar, não dar ‘bom dia’, não dar ‘boa tarde’, não dar ‘boa noite’, entrar no elevador e não olhar para a cara de ninguém, chegar na escola e não dar ‘bom dia’ para o professor ou para o porteiro”, afirma. “Até as crianças que são tímidas... A timidez é como um músculo. É uma característica que podemos ir treinando, não para que se deixe de ser tímido, mas para que seja educado”, reflete.

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