O limite entre obediência e desobediência: como educar para ser livre e autêntico?

10/10/2022

"As crianças são pessoas muito interessantes. São complexas, leves e profundas ao mesmo tempo, seguem vias originais de comunicação consigo mesmas e com o mundo; “fabulando” a vida, são tendencialmente anárquicas”. Quem afirmou isso foi a escritora italiana Luisa Mattia, no artigo "Quando o pensamento se faz palavra". Nele, ela admite uma noção vívida e concreta de infância, na contramão da ideia de que as crianças são puras e ingênuas. Aos adultos, resta então uma missão difícil: como acolher essa dimensão “tendencialmente anárquica” da criança, oferecendo espaço e contorno ao mesmo tempo?

Permitir que uma criança cresça de forma autônoma e autêntica demanda um adulto muito consciente do seu papel e disposto a encará-lo. Quando falamos em permissividade, temos um adulto que não ocupa o seu papel, é uma forma desamparo  (Lua Barros, educadora parental)

Inspirado na provocação feita pelo livro Lá fora, nova obra do artista André Neves, que tematiza a diversidade das crianças e defende a liberdade completa de ser, abrimos espaço para refletir sobre as diferenças entre oferecer liberdade e educar os pequenos. Existe um limite bem-vindo entre obediência e desobediência: quando é importante ensinar a desobedecer? E, principalmente, como estimular a criança a identificar seus desejos e personalidades?

No livro Lá fora, de André Neves, um camaleão colorido que vive em um mundo preto e branco descobre como pode ser transformador dar um pequeno passo além da norma pré-estabelecida.

Uma educação que se possa chamar libertária passa por dar espaço para a criança ser quem ela é. Mas como fazer isso sem recair em permissividades nocivas para a criança? Para a educadora parental Luanda Barros, é preciso entender que a liberdade da criança não está ligada a um afrouxamento do papel do adulto. Pelo contrário, requer ainda mais firmeza e presença de quem está no papel de educador.

Dar liberdade para uma criança ser quem ela é não significa deixar fazer o que ela quiser, que seria a permissividade. (Lua Barros, educadora parental) 

Mãe de quatro filhos pequenos e defensora da honestidade emocional nas relações parentais, Lua chama atenção também para alguns rótulos que os adultos, muitas vezes de forma imperceptível ou com intenção afirmativa, relegam às crianças. Frases que parecem elogios, como "que menina boazinha!" ou "meu menino obediente" podem carregar a autopercepção das crianças de uma noção equivocada sobre o porquê de elas fazerem as coisas. Para ela, precisamos não perder de vista a diferença primordial entre ser e se comportar para os olhos dos outros.

“As crianças rotuladas dessa forma são as que entenderam que a maneira como elas se comportam é mais importante do que quem elas são. Essas crianças precisam agir de acordo com as expectativas dos pais e elas se tornam muito boas em agradar os outros e se desconectarem de quem são”, explica a educadora.

A natureza da criança é caótica, livre, colorida. Nós adultos é que insistimos em deixá-la cinza. (Lua Barros, educadora parental)

Liberdade, um equilíbrio entre ser e estar 

No livro de André Neves, um camaleão que ousa ser exatamente quem é descobre todo um mundo além daquele que lhe diziam ser o único. Quando permitimos à criança manifestar sua natureza mais genuína, que impacto tem esse gesto nas habilidades que ela desenvolve ao longo de seu crescimento? 

Segundo Lua, que, no papel de educadora parental, acompanha grupos de mães e pais dispostos a ressignificar suas relações com os filhos, com amorosidade e atenção, é preciso ter a coragem de construir a resiliência, afinal, nem sempre o mundo será um lugar de acolhimento, e é preciso estar preparado para isso.

A educadora parental Lua Barros com os filhos. Crédito: Pedro Fronseca.

Diálogos francos sobre a dor e a beleza de ser quem se é são fundamentais para que crianças e adultos encontrem um caminho de resiliência nesse processo. (Lua Barros, educadora parental)

“Crianças que desejam se colocar no mundo de forma autêntica irão enfrentar um mundo que dirá que bom mesmo é seguir a manada. Então, elas precisam de espaço para entender que não tem nada de errado com elas, apenas o mundo é que não está pronto para tanta cor. E ainda assim, nós precisamos existir nesse mundo, então, é preciso respeitar as diferenças”, diz a especialista.
 
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Neste livro escrito e ilustrado por André Neves, um camaleão ousa se aventurar do lado de fora de seu reino sem cor – e dar início à mais bela revolução.

Como em muitos aspectos da vida, o caminho parece estar cada vez mais guardado em uma palavra: equilíbrio. Considerando que vivemos em um mundo com regras e condutas, adequação é importante; porém, um indivíduo adaptado de forma saudável não diminui sua força de ser por causa das normas sociais. 

As crianças precisam crescer com a dimensão de que a voz delas merece ser ouvida e que colocar essa voz no mundo importa. Algumas vezes ela será ouvida, outras não. Mas o silêncio não é uma forma de diálogo e quando eu penso na obediência me parece que o silêncio é o grande regente das relações. (Lua Barros, educadora parental)

“Melhor que obedecer é ensinar sobre respeito, sempre. Existem espaços, pessoas e instituições que vamos frequentar, ocupar ou nos relacionar, e é preciso respeitar as regras, mesmo que a gente discorde”, conclui a educadora.

(Texto de Renata Penzani)

 

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