Você já ouviu falar que o bebê quando nasce é como uma folha em branco. Ninguém sabe ainda o que será escrito naquelas páginas. Que há muitas ideias, isso há. Os adultos são especialistas em prever todo um futuro, planejar o que vai acontecer, pensar em como a criança vai se vestir, do que vai gostar, como vai agir e o que vai ser quando crescer. E, com o nome escolhido, passa a se materializar uma série de expectativas para aquela criança.
Mas talvez você também já tenha ouvido muitos pais e educadores falarem que as crianças vêm para nos ensinar. É porque essas expectativas - relacionadas ao nosso desejo para o sujeito que chega e o modo como cada um apreende a vida - levam invariavelmente a frustrações com essas próprias expectativas. Como lidar com a realidade dos filhos? Como deixar que eles sejam quem são, sem que determinemos para eles comportamentos, identidades ou ações que não necessariamente vão fazer eles felizes? Como abrandar ou controlar nossos próprios desejos para não interferir nos desejos da criança? Como apenas deixar ser o que se é?
No livro Ser o que se é, o leitor combina possibilidades de ser e de gostar de coisas diferentes
Ser o que se é também é o maravilhoso título do novo livro de Pedroca Monteiro e Daniel Kondo, que diz exatamente a que veio: propor reflexões sobre as infinitas possibilidades de ser. Com uma proposta gráfica bem interativa, o leitor fica livre para explorar as várias combinações que um ser humano pode fazer para se realizar. Uma criança pode gostar de amarelo, azul, laranja ou de todas as cores misturadas. Um menino pode gostar de dançar, cozinhar, ler ou brincar com números. Uma menina pode gostar de jogar futebol, contar piadas, cantar ou cuidar dos outros. "Você pode ser quem você quiser. Você pode ser quem você sentir que você é", diz um trecho do livro, que provoca outras discussões. O que faz alguém ser craque, expert, gênio, incrível ou grande em alguma coisa? E, no meio de tantas perguntas, algumas certezas: "Ninguém é igual, cada um tem um mundo dentro de si. E nesse mundo, tudo pode acontecer".
Expectativa dos adultos x realidade das crianças: confronto começa antes de o bebê nascer
E, entre ser o que se é e o que o outro desejou que fôssemos (ainda que com muito amor), há uma lacuna enorme. Quando esse ser e esse outro são respectivamente uma criança e um adulto, o confronto da expectativa x realidade vai muito além da identidade e dos gostos. Ela começa na maneira de criar, no que se espera do ritmo da criança para cada idade, no desenvolvimento próprio de cada bebê e criança, na sua individualidade. Mesmo diante de um leque tão amplo de coisas que uma criança pode fazer, gostar e explorar, os adultos cismam de criar uma história na qual esperam que esse bebê se encaixe, mesmo antes de ele nascer. E não é nem só sobre um futuro tão distante. Temos ideias pré-formadas sobre o comportamento do recém-nascido, que já impactam a maneira de criação, desde o primeiro dia. Por que será?
“Temos, por exemplo, uma cultura que diz que não pode pegar o bebê no colo demais, porque isso vai deixá-lo mal acostumado”, exemplifica a psicóloga e educadora parental Nanda Perim, criadora do Método PsiMama. Segundo ela, o adulto já cria a ideia de que o bebê vai ficar mal acostumado, vai achar que manda, vai manipular os pais. “São crenças e pesos culturais equivocados, péssimos não apenas para o desenvolvimento da criança, mas para a construção do relacionamento dela com o adulto, que já sai da maternidade com medo de criar um filho mal educado”, explica. A jornada é linda, longa e traz muitas surpresas pela frente.
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Conforme a criança cresce, os adultos continuam criando expectativas e associando os comportamentos dela a certos traços de personalidade, quando, na verdade, pode não passar de um ritmo normal de desenvolvimento. A criança se joga no chão e faz birra? Está se tornando um ser humano maquiavélico. A criança não faz o que o adulto pede? Vai se tornar um adulto mimado. Ela é ansiosa e os pais são calmos? Ou ela tem um ritmo todo lento e próprio de fazer as coisas e a família é ligada no 220V? Ela não aprende no ritmo que você gostaria e isso gera muita impaciência e frustração?
“O que a gente precisa é entender os processos da infância, entender como o corpo da criança funciona para saber o que esperar. Se compreendemos, por exemplo, que o cérebro imaturo da criança vai ter explosões emocionais porque ainda não desenvolveu o controle inibitório, ou seja, não consegue controlar impulsos e certas explosões, já enxergamos os primeiros oito anos de vida da criança com outros olhos”, lembra Nanda. E, assim, sobra espaço para ela crescer, se desenvolver, experimentar e ir descobrindo quem ela é e do que gosta, com todo o suporte da família, sem julgamentos, sem podas, sem expectativas inatingíveis e falsas, sem simetria com a realidade.
É normal que os pais criem expectativas sobre os filhos?
Sim, muito normal. Para a educadora parental e professora Flávia Pereira, sócia da Escola da Educação Positiva, isso acontece, justamente, porque as pessoas desconhecem como o ser humano se desenvolve.
Em nossa cultura, crianças não são vistas como pessoas dignas de direito. São vistas como posse, como: ‘é meu filho, faço com ele o que eu quiser’. É uma triste realidade. (Flávia Pereira, educadora parental)
“Essa expectativa irreal dos adultos, a educação tradicional, pautada no abuso do poder do ‘manda quem pode, obedece quem tem juízo’ sustenta essa cultura. Mas a nossa geração tem acesso a muita informação e precisamos quebrar esse ciclo, que prejudica a criança desde seu nascimento”, explica Flávia.
Alguns pais, ainda que tenham uma noção mais aproximada da parentalidade gentil, podem não ser diretamente violentos ou tratar a criança como um ser que deve simplesmente obedecer, mas, ainda assim, de maneira mais discreta, podem continuar querendo moldar a criança, em vez de deixar que ela desenvolva seu potencial e sua própria personalidade.
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Conhece algum pai que diz que esperou a vida inteira para ter um filho, só para poder assistir e torcer com ele para o time de futebol do coração? Mas quem disse que a criança vai gostar do mesmo clube? Ou mesmo gostar de futebol? E não se interessar mais por basquete, tênis, dança, teatro? Ou aquela mãe que sempre quis ser bailarina e coloca a filha logo cedo na aula de balé… Mas a menina começa logo a perceber que aquela não é a praia dela e, de repente, gosta muito mais de andar de bicicleta ou de skate ou de inventar histórias em quadrinhos e desenhar?
Lidando com os estereótipos
Aliás, os estereótipos de gênero também estão intrinsecamente relacionados com essas expectativas. Quem disse que meninas vão gostar de boneca e de cor de rosa? Ou que os meninos vão gostar de carrinhos e de futebol? E o contrário também pode ser verdadeiro. Muitas vezes, os pais podem torcer para que a filha goste de jogar bola ou desafie as regras de gênero, mas a pequena curte se vestir de princesa e encher o cabelo de lacinhos. E tá tudo bem!
Os filhos não são nossas extensões, eles não vieram ao mundo para nos servir, nos fazer sentir realizados, nos atender nem muito menos facilitar a nossa vida. Ser mãe e pai, cuidador, educador, é uma responsabilidade imensa e um trabalho desafiador, que nos convida a evoluir e melhorar a cada dia.” (Flávia Pereira, educadora parental)
Quem disse que seria fácil?
Quando a criança só quer agradar aos pais
Uma das implicações mais imediatas de todos os exemplos anteriores - e de muitos outros que você, certamente, conhece - é a criança tentar se encaixar nesses padrões que os pais esperam dela. “Agradar aos pais é uma estratégia de sobrevivência das crianças”, explica a educadora parental. Segundo ela, quando a criança é desrespeitada, nesse sentido, ela não deixa de amar os pais, já que depende deles para sobreviver, mas deixa de amar a si mesma.
A criança abre mão de quem ela é, e isso é um desastre na nossa sociedade. (Flávia Pereira, educadora parental)
O que fazer, então, para evitar que isso aconteça?
Observar seu filho é o primeiro passo. “É a melhor forma”, recomenda Nanda. “Olhe sempre para a criança que você tem ali, na sua frente, veja quem ela é, o que ela dá conta de fazer, o que não dá, como é o processamento sensorial, o raciocínio dela”, sugere. “Preste atenção em como ela é em relação a cheiros, texturas, temperaturas, estímulos. É uma criança que gosta de correr e pular? É uma criança que gosta de sentar e brincar de blocos de montar? Como é essa criança e o que você pode fazer para ajudá-la? E o principal: sempre legitime muito essa criança e nunca tenha medo de abraçá-la, beijá-la e amá-la”, resume. Amor nunca é demais - o que é diferente de ser permissivo com tudo e não oferecer limites (mas isso é outra conversa).
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Para a psicóloga, é importante também que os adultos leiam, se informem e estudem mesmo sobre a parentalidade. Só assim, é possível educar melhor os filhos e oferecer o suporte de que ela precisa, em cada fase do desenvolvimento.
“Se eu for fazer qualquer outra coisa na minha vida, se eu for fazer uma viagem para Foz do Iguaçu… Eu vou dar uma lida sobre o lugar, sobre o que tem para fazer, o que não tem. Se eu for comprar uma televisão nova, eu olho as avaliações, vejo como escolher, qual é a mais tecnológica, o melhor custo-benefício. Temos que fazer isso com a nossa criança também. ‘Meu filho tem 5 anos. O que esperar? Como me comunicar com ele? Como ajudá-lo?’” (Nanda Perim, psicóloga)
Outro ponto importante é estimular a própria criança a voltar os olhos para ela mesma. Ela orienta, por exemplo, que, quando seu filho vem mostrar um desenho, em vez de dizer: ‘Nossa, que lindo! Amei esse desenho’. Você pode falar do esforço dele e perguntar mais sobre a criação, como: ‘Nossa, como esse desenho ficou bem feito. Me conta o que você achou dele? Você gostou? Por que escolheu essas cores?’. Isso tudo faz seu filho exercitar a atenção para si mesmo e a apreciação ao próprio esforço, ao próprio trabalho e às próprias conquistas.
Flávia lembra também que é preciso confiar na sabedoria das crianças:
Elas estão super conectadas com a matriz humana, com o que há de mais sagrado na nossa natureza. Nós, adultos, muitas vezes, estamos desconectados de nós por conta da educação tradicional que recebemos e das expectativas irreais que nos foram colocadas. Precisamos aprender sobre o desenvolvimento humano para poder acompanhá-las e não atrapalhar suas descobertas. (Flávia Pereira, educadora parental)
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