No livro Haverá festa com o que restar, o poeta Francisco Mallmann escreve “os meus esforços estão em te mostrar que ‘eu’ significa ‘eu não sou você’”. É proposital começar esse texto sobre o livro Ser o que se é – publicado pela Companhia das Letrinhas – com uma citação em que a poesia advoga pelos limites entre o "eu" e o tal "outro", essa entidade quase mítica (pois todo ‘eu’ é o ‘outro’ de alguém, e vice-versa) com a qual muitas vezes nos misturamos e nos confundimos.
Ser o que se é um livro interativo em que os leitores podem explorar as possibilidades de misturar personagens enquanto refletem sobre a importância das diferenças e da liberdade de poder ser quem se é e como nos sentimos ser
A obra é resultado da parceria entre o premiado artista gráfico brasileiro radicado no Uruguai Daniel Kondo e o humorista Pedroca Monteiro. Conhecido por integrar o elenco da série Vai que cola, do canal Multishow, e também por sua participação no programa Dani-se, ao lado da apresentadora e humoritsta Dani Calabresa, Pedroca faz aqui sua estreia na literatura infantojuvenil. A obra é uma festa pela individualidade e pelos contornos próprios que garantem saber quem somos mesmo dentro de um coletivo.
Já o gaúcho Kondo é autor das ilustrações de dezenas de livros voltados ao público infantojuvenil desde a década de 1990, como Lá vem história outra vez (1997), de Heloisa Prieto, Vó coruja (2014), de Daniel Munduruku, Jack Brodóski no coração da Amazônia (2000) e Sabadão Joia, ambos de Flavio de Souza, além de livros em que assina também como escritor, como Coletivos (2013) e Opostos on the table (2014), todos esses pela Companhia das Letrinhas. Entre os títulos publicados por outras editoras, destacam-se: Tchibum! (Cosac Naify, 2012, com Gustavo Borges - Premiado na Feira Infantil de Bolonha), Monstros do Cinema (SESI -SP, 2016, com Augusto Massi - finalista do Prêmio Jabuti), A mancha, (FTD 2021, com Guilherme Gontijo Flores) e PSSSSSSIU! (Salamandra, 2020, com Silvana Tavano).
Ser o que se é
Ser o que se é propõe aceitar o outro em toda a sua complexidade e mistério. (Daniel Kondo, artista gráfico e ilustrador)
Infantil sem se restringir apenas às crianças, Ser o que se é trata-se de um livro-afirmação, das narrativas diversas de si, da alteridade possível, do mundo plural. Uma celebração da diversidade em uma sociedade que ainda impõe padrões genéricos em que quase ninguém cabe – ou melhor, não precisaria caber.
Os autores Daniel Kondo e Pedroca Monteiro com o lançamento Ser o que se é, uma celebração da pluraridade contida em cada um de nós
O que faz de nós nós?
Seria um hábito característico? Um talento só nosso? Uma mania inconfundível? Em Ser o que se é, personalidades distintas são colocadas lado a lado, e cada uma compõe um jogo de armar que provoca reflexões sobre como se forma nossa individualidade e os padrões do que consideramos admirável – ou até mesmo "normal", já que estamos falando de um mundo ainda nocivamente pautado pelos ideais de uma normatividade excludente. E, mais ainda: instiga a pensarmos por que tantas pessoas não têm espaço para ser quem são, enquanto outras têm desde sempre garantida sua validação social?
A obra faz isso de forma multimodal, por meio da materialidade, do design e do texto, uma brincadeira de cores, formas e palavras em que cada página é dividida em três partes. Assim, o leitor pode combinar a parte de uma com outras e assim compor infinitas possibilidades, inumeráveis jeitos de ser justamente “quem se é”. “O livro tem esse modo de leitura não convencional. Na sua engenharia gráfica, por meio das páginas que são cortadas em três eixos, permite combinar e recombinar os personagens e suas características. De certo modo, é um simulacro da própria humanidade nas suas possibilidades infinitas”, explica Daniel Kondo.
Nesta entrevista, o autor fala sobre como a diferença marca sua experiência como indivíduo, conta como criaram essa obra, e ainda compartilha como pensa o tema da diversidade.
Chamamos o livro de “manifesto à liberdade”. Ele mostra que as possibilidades de ser são infinitas e possíveis. Isso se revela na parte lúdica do projeto gráfico e também na parte textual. SER é um universo de possibilidades. (Daniel Kondo, artista gráfico e ilustrador)
Confira a entrevista na íntegra com Daniel Kondo
Sustentar a diferença parece ser o grande desafio de se relacionar, em variados formatos de relação - afetivo, profissional, familiar, etc. Estamos sempre em contato com pessoas que pensam e agem e sentem diferente. Mas este livro fala da diferença a partir de uma perspectiva inegociável, por ser um direito: o direito de ser. Qual a diferença entre esses dois tipos?
Daniel Kondo: As diferenças nos constituem como sujeitos. Cada um tem sua individualidade, seus talentos, suas características. O livro propõe aceitar aquilo que é diferente de mim, ou seja, o outro em toda a sua complexidade e mistério. Ser o que se é é inegociável porque não poderia ser de outra maneira.
Tomara que este livro possa nos iluminar sobre ter empatia pelo outro que é diferente (Daniel Kondo, artista gráfico e ilustrador)
Qual foi a grande diferença que você já precisou sustentar na trajetória de vocês, e como fizeram isso?
Daniel Kondo: Saber-se artista e reconhecer-se como tal foi certamente o maior desafio. Ainda mais em um país que pouco apoia a classe artística, qualquer que seja a área de atuação. Tive a sorte de ser reconhecido pelo talento desde o início da minha vida profissional, o que me fez sempre continuar. Mas penso muito nos que não têm as mesmas oportunidades e, por uma questão de sobrevivência, acabam abrindo mão de sua arte para encaixar-se no mercado de trabalho, muitas vezes completamente apartado dos seus interesses e suas aptidões.
Quando foi que você se percebeu como sujeito? Aquele momento em que olha para a família, para o bairro onde mora, ou para a escola onde passou muitos anos, enfim, e pensa: “talvez eu seja diferente disso”?
Daniel Kondo: Para mim, é um processo contínuo de construção e descoberta de si mesmo. Existe um paradigma curioso aí: é um pensamento padrão querer ser diferente. Por isso acho que a coisa não se dá “pronta”. Mas em um certo sentido, pela afirmação de algum talento (qualquer que seja) e todos têm um talento que, quando despertado, pode gerar coisas belas.
Os autores de Ser o que se é homenageiam as diferenças, a diversidade e a alegria de poder ser quem se é e trazer um mundo inteiro e colorido dentro de si
Nas crianças do seu convívio ou proximidade, você percebe a forma como elas lidam com a diferença? É diferente de como o adulto encara?
Daniel Kondo: O mundo é um ser estranho para todos. Nós, adultos, talvez tenhamos mais modos de defesa para lidar com aquilo que é diferente de nós. Eu vejo as crianças com mais abertura, receptividade e inocência ao se relacionarem com o outro. Por isso, é superimportante estar em ambientes sadios para tornar-se um adulto com mais confiança no outro.
A literatura oferece ao leitor a oportunidade de ressignificar o mundo e a forma como o lemos, criar novas narrativas para aquilo que sempre esteve ali. Que narrativa o livro Ser o que se é conta às crianças?
Daniel Kondo: Chamamos o livro de “manifesto à liberdade”. Ele mostra que as possibilidades de ser são infinitas e possíveis. Isso se revela na parte lúdica do projeto gráfico e também na parte textual. SER é um universo de possibilidades.
Quando crianças, qual livro vocês gostariam de ter lido e não leram, e por quê? E, se tivessem lido, o que poderia ter sido diferente?
Daniel Kondo: Quando criança, tive a sorte de ter em casa uma biblioteca. Tinha todo tipo de livros, principalmente enciclopédias. Lembro até hoje dos desenhos, das coleções, do tamanho dos livros (os tomos eram sempre pesadíssimos). Mas não me recordo de ter um livro proibido ou inacessível. Gostaria que os livros fossem sempre acessíveis a todos e para todos.
Alguns conceitos e palavras podem ser apropriados e até banalizados de formas não tão bacanas. O que é diversidade para você?
Daniel Kondo: As palavras têm um poder e os símbolos também. A nossa luta diária é pela manutenção das conquistas humanas, como a democracia, a liberdade e a vida em sociedade. Esses conceitos são universais e inegociáveis, sob o risco de sucumbir a regimes totalitários e opressores.
Diversidade é a vida como ela é. A natureza é diversa, não tem ninguém igual a ninguém. Por isso, mais do que nunca é importante ter esses princípios, para vivermos plenamente como cidadãos. (Daniel Kondo, artista gráfico e ilustrador)
Qual a importância de as crianças conviverem com a diferença? E como o livro mostra isso?
Daniel Kondo: O que importa é estarmos atentos, e manter o respeito pelo que é diferente. O reconhecimento que as diferenças entre nós fazem parte da raça humana. E que essas diferenças não criem abismos entre todos, nos dividindo em guetos, classes, ou grupos sociais que excluem aquilo que não é igual. O livro inteiro trata disso com a possibilidade de criar novos personagens, ou mesmo no texto, que afirma que as possibilidades de ser são muitas e são todas boas. Basta você se permitir e se aceitar ser exatamente como você é.
(Texto de Renata Penzani)