
A materialidade do livro como suporte para histórias
Os elementos físicos do livro, como tamanho, formato e costura central, ajudam a construir a narrativa em obras como a de Suzy Lee e Renato Moriconi
Engana-se quem pensa que ler é uma atividade passiva, em que você consome o conteúdo proposto pelo autor e fim de papo. Todo livro é, por essência, interativo, já que há várias maneiras de ler, de interpretar, de recomeçar, parar, reler… Tudo isso é capaz de transformar o jeito de o leitor captar a mensagem da obra. Mas há livros que mergulham um pouco mais fundo na relação com quem está lendo e convidam para participar mais ativamente da experiência de leitura. São os chamados livros interativos.
O leitor pode ser convidado, por exemplo, a encontrar um animal nas ilustrações e bater palma quando conseguir, como em Palmas para o bicho que ele merece, da dupla Lalau e Laurabeatriz. Ele pode também ajudar em algum tipo de investigação, diante de pistas, como em Detetive Sansão, de Katerina Gorelik. Pode responder a perguntas e depois mudar de ideia ao virar a página, como em Olhe pela janela, também de Gorelik. Pode até ter ações como amarrar os cadarços da personagem, como em Os sapatos de Lulu, de Camilla Reid. As possibilidades de interatividade são inúmeras.
De acordo com a professora Juliana Pádua Silva Medeiros, doutora em Letras e autora da pesquisa de doutorado Trouxe a chave?: as materialidades do livro interativo analógico na literatura de infância, um convite a abrir as portas da percepção, com orientação da professora doutora Marisa Lajolo, pelo Mackenzie (SP), o livro interativo se diferencia por ter um arranjo composicional que convida a um jogo lúdico, “com linguagens, pelas linguagens e nas linguagens”.
É comum que, ao pensar em livros interativos, se imagine logo os livros com interatividade digital, como os livros aplicativos, que funcionam por meio de tablets, computadores ou celulares. Também é comum considerar como tais somente as obras que utilizam de recursos como pop-ups, dobraduras ou abas para abrir e fechar, por exemplo. Mas o conceito vai muito além.
“Mesmo com um formato bastante convencional, um livro pode ser interativo, como o Bocejo, de Ilan Brenman e Renato Moriconi, em que a última folha espelhada, juntamente com a onomatopeia OOOOHHHHH, estimula quem lê a bocejar e, assim, se ver como personagem da história da humanidade”, diz Juliana. “O livro interativo analógico, portanto, é aquele em que o leitor assume a co-autoria durante a leitura”, resume.
Embora as possibilidades sejam cada vez mais diversas, os livros interativos não são exatamente uma novidade. “Há notícia da existência de obras analógicas, cuja proposta convida explicitamente à interação leitora, desde o início do século 13”, conta Juliana. “Ao longo dos tempos, esse tipo de produção recebe os mais diferentes nomes (com suas variações em outras línguas): livro animado, livre animé, animated book, livro móvel, movable book, mechanical book, livro-surpresa, novelty book, livro-vivo, livro-brinquedo, toy book, livro-objeto, object-book, livro pop-up, three-dimensional book, livro 3D, livro-jogo, interactive book, livro interativo etc. Isso sem contar, as possibilidades de colocar alguns livros ilustrados e livros-imagem debaixo do mesmo guarda-chuva”, destaca ela.
São vários os tipos de livros interativos, com diferentes níveis e possibilidades de interação com o leitor.
Quando você transforma a leitura em uma brincadeira, em uma conversa, em um jogo, em um convite para pensar e descobrir, há um grande estímulo. Por isso, os livros interativos analógicos fazem sucesso com leitores de várias idades. Para Juliana, o apreço por esse tipo de leitura está atrelado à qualidade (e não à quantidade) desses estímulos à experimentação, à co-criação leitora, à descoberta e tudo mais que desafie, ao mesmo tempo em que aguça a percepção leitora. “Esses processos cognitivos-perceptivos-sensórios-motores, alicerçados em uma experiência brincante, oportunizam leituras capazes de avivar a sensibilidade e a criticidade leitoras, porque não se interage de forma despercebida. É preciso um estado de presentidade”, reforça.
Seja na escola ou em casa, esse tipo de livro pode ser explorado, segundo a professora, para o desenvolvimento da sensibilidade e a criticidade leitora. “Funciona em diversos segmentos da educação porque o livro interativo instiga a curiosidade, o levantamento de hipóteses, a experimentação de possibilidades”, diz ela. Além disso, pode ser uma ferramenta para ajudar no desenvolvimento da autonomia, criatividade e imaginação.
Como já deu para notar, existem vários tipos de livros interativos. “Há obras que, às vezes, não se ‘enquadram perfeitamente’ no conceito de livros interativos analógicos por não terem uma abertura maior para co-criação leitora, porém, em razão da maneira como exploram as materialidades, também convidam, mesmo que de forma mais pontual, à interação, como é o caso de João por um fio, de Roger Mello e Raposa, de Margareth Wild e Ron Brooks”, destaca a professora Juliana.
“No primeiro exemplo, o fitilho assume o papel (meio que literalmente) de fio narrativo, quando posto sobre as ilustrações. Já no segundo, tanto o layout das páginas quanto o recurso cromático usado nos olhos do animal na capa sugerem que o leitor movimente o objeto livro, buscando outras perspectivas de ver/ler as coisas”, explica. Ela lembra que sutilezas interativas como estas são comuns em livros que instigam o olhar de descoberta, convocando o leitor a um jogo lúdico de encontrar pistas no corpo da obra.
Em sua pesquisa, a professora divide as interações dos livros em três graus, que podem se desdobrar e também se misturar, criando múltiplas possibilidades. “As arquiteturas podem ser tão diversas quanto inusitadas, propondo níveis de engajamentos distintos. Por isso, cada livro interativo analógico é único e possui, então, características bem particulares”, afirma.
Acontece na ordem mental ou na performance com a voz, sendo muitas vezes estimulada por meio de um bate-papo com o leitor, como em Estamos em um livro!, de Mo Willems, e Sem título, de Hervé Tullet.
Quase sempre aparece em livros com formatos diferenciados, com explosões gráficas, alavancas, tiras, dobras e tudo mais que convide a experimentação dos aspectos objetuais. Ocorre no campo da manipulação e da exploração da fisicalidade da obra, como nas criações de Allan e Janet Ahlberg: O carteiro chegou, O carteiro encolheu e O Natal do carteiro.
Acontece por meio de algum tipo de interface tecnológica, que encaminha o leitor para o universo digital, como o QR-code em Guarda chuva-amarelo, de Ryu Jae-soo, e o recurso de realidade aumentada em Criaturas mágicas, de Jim Pipe.
Os livros interativos oferecem várias possibilidades de encantar e engajar pessoas de todas as idades. Na educação infantil, de acordo com Juliana, eles estimulam o desenvolvimento e o afinamento dos sentidos. “Os bebês estão descobrindo o mundo esses livros, muitas vezes, têm texturas, convidam a abrir e fechar… Ao explorar, eles vão conhecendo também os sentidos do próprio corpo, como tato, visão, audição”, pontua a especialista.
Ao longo do ensino fundamental, os livros promovem autonomia leitora. “As crianças vão construindo sentidos, movimentando saberes, são livros muito instigantes”, diz ela.
No ensino médio, os livros interativos ajudam a promover engajamento. “Alguns podem propor, por exemplo, jogos. Em O desastre do trem bala, de Jack Heath, por exemplo, o leitor tem várias pistas e a história não vai para frente se ele não assumir um papel”, exemplifica.
Gostou da ideia e quer entrar já na brincadeira? Em sua tese, Juliana fez várias reflexões e desdobrou, em um capítulo de um livro não publicado ainda, alguns modos mais comuns de interação na literatura infantil, com alguns exemplos, que apresenta com exclusividade para o Blog Letrinhas. A divisão pode inspirar a adoção em sala de aula ou mesmo em casa, com atividades. É diversão na certa!Confira:
Quando o leitor interage virando as páginas ou abrindo abas, dando ritmo à leitura ou mudando perspectivas, por exemplo.
Quando se estabelece um pacto entre o leitor e a obra, a partir de uma perspectiva do livro, como objeto.
Quando o leitor é convidado a brincar com a vocalização, experimentando as modalizações da linguagem.
Quando os limites entre a realidade e a ficção são fraturados, a ponto de o leitor "entrar" na obra.
Quando o leitor usa o corpo-brincante para experimentar as interações propostas pelo livro.
Quando o leitor é chamado a colocar "a mão na massa" e ajuda o livro interativo a funcionar, na prática.
Nestes livros, o leitor precisa explorar e imaginar a história para que eles se materializem.
Livros com partes fragmentadas, que podem ser justapostos pelo leitor, que pode construir e reconstruir a experiência leitora.
Quando há espaço para o leitor se tornar coautor do livro, valorizando as dimensões físicas, como em livros com pop-up ou que pedem para o leitor empurrar ou afastar alguma figura, por exemplo.
Livros com ligações em diferentes pontos e dimensões, que permitem conexões entre partes da obra, conexões com o próprio leitor ou possibilidades de escolhas, que permite avanços e recuos, por exemplo.
Quando o leitor é convidado a interagir graficamente com a obra, como quando o livro pede que ele desenhe uma parte da história ou crie um personagem.
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