A materialidade do livro como suporte para histórias

10/06/2021

O livro é um objeto físico que se manuseia de maneira específica, no abrir e virar de páginas, que possui tamanho, peso, papel, textura, formato, uma costura central. Tudo isso pode ajudar a contar uma história, além das palavras e das imagens. Em alguns títulos, esses elementos de materialidade do livro participam ativamente da construção da narrativa, criando assim um suporte único e muito especial.

Imagem do livro Espelho, de Suzy LeeIlustração do livro Espelho, de Suzy Lee, no qual uma menina brinca com seu reflexo na página oposta. Leia +

A literatura não é, efetivamente, somente a parte escrita e há uma leitura a ser feita também nas escolhas que se faz sobre os elementos físicos que compõem uma obra. "No livro ilustrado, a palavra, a imagem e o objeto compõem o que se chama de literatura", explica o escritor, ilustrador e pesquisador Odilon Moraes. Segundo ele, a sul-coreana Suzy Lee, autora do recém-lançado Espelho e também de Sombra e Onda, que formam a Trilogia da Margem, é uma das que melhor explora e joga com esses elementos do suporte. "Sem a costura do meio, os livros da trilogia não poderiam sequer existir."

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Materialidade do livro - Capa do livro Espelho, de Suzy Lee

Espelho fecha a trilogia de obras em que Suzy Lee usa a margem central do livro como parte da narrativa e brinca com as possibilidades de leitura de um mesmo formato. Livro-objeto, livro-imagem, livro ilustrado, materialidade do livro, experimentação. A Trilogia da Margem é tudo isso e muito mais: um olhar sensível para a infância e as descobertas. Neste título recém-lançado retrata a descoberta de uma garotinha cujos passos de balé e caretas são refletidos de uma página para a outra. A costura do livro deixa de ser só uma divisória para se transformar no próprio espelho, que separa a realidade da fantasia. A própria autora, em entrevista ao Blog em 2017, explicou por que usa as características do livro enquanto objeto para criar suas histórias:

“Eu gosto de um livro porque é um objeto físico. Eu leio na minha mão ou no meu colo. É tátil e me dá a sensação de que está realmente na minha frente. Tem formato quadrado, tem bordas. Pode ser aumentado se aberto, tem duas faces e uma linha que as une no meio. Se de qualquer forma ele é um livro, quero fazer uma obra que seja possível porque é um livro. Se tem uma dobra entre as duas páginas opostas, eu quero fazer com que essa dobra faça parte da história. (Suzy Lee)  

As histórias que se escondem nas margens

Pesquisador especialista na obra de Suzy Lee, Luis Girão diz que, por ser um objeto físico e, portanto, tátil e propositor de movimentos em contato com o corpo do leitor, o livro pode ir além das superfícies de suas páginas para contar uma história. Elementos como a lombada ou dobra de encadernação podem entrar nessa contação - como ocorre em Espelho. “Nesse livro-imagem, no qual contamos com o título como único apontador verbal de caminhos possíveis para o ato de ler e perceber a composição visual, buscamos o espelho a cada página dupla que abrimos e vamos sentindo que ações e reações se desencadeiam de maneira peculiar”, diz Girão, que é doutorando e mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP. 

Capa e ilustração do livro Onda, de Suzy Lee, para materialidade do livro

Capa e ilustração do livro Onda, de Suzy Lee. Leia +

Ele lembra que, em um primeiro momento, a garotinha em carvão preto e guache amarelo, a princípio sozinha, ganha uma dupla que a imita em tudo, a ponto de elas brincarem e dançarem em mímica até desaparecerem no meio do livro, na dobra que separa a página à esquerda da página à direita. Já em um segundo momento, o leitor estranha o fato de as duas não agirem tal qual o esperado, ou seja, como reflexos uma da outra. 

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“E tudo aconteceu depois que elas desapareceram no centro do livro. O que teria acontecido ali? O que elas viveram lá dentro, e que o leitor desconhece por ficar diante de uma página dupla, que as fez retornar às páginas do livro em desalinho? Respostas a serem dadas pelo leitor, que vive a mesma angústia de um criador diante da folha de papel em branco: espacialidade para inscrição de temporalidades. Veja que esta é apenas uma leitura ou percepção da importância que a lombada pode adquirir no livro infantil.”

Capa e imagens do livro Sombra, de Suzy Lee, para materialidade do livro

Capa e ilustrações do livro Sombra, de Suzy Lee. Leia +

No plano do projeto gráfico, Girão chama atenção para o fato de segurarmos um livro cujo formato mimetiza o famoso formato dos espelhos verticais e alongados. “Isso provoca dúvidas genuínas sobre estarmos diante de um livro ou de um espelho.” 

 

O formato como parte da narrativa

Outro bom exemplo para entender como a materialidade integra a narrativa é o livro Bárbaro, de Renato Moriconi. Nele, um guerreiro sentado em seu cavalo luta contra serpentes, dragões e gigantes de um olho só. Ao longo da história, o personagem se reveza entre duas posições nas páginas: no alto ou embaixo. 

Em um dado momento, todas as assombrações somem e uma “mão” vinda do céu “resgata” esse guerreiro que agora está só. É então que o livro revela: toda a história se passava na imaginação de um menino que estava brincando em um carrossel. A mão retrata o momento em que o pai tira o filho do brinquedo. 

Capa e ilustrações do livro Bárbaro, de Renato Moriconi, em matéria sobre materialidade do livro

Capa e ilustrações do livro Bárbaro, de Renato Moriconi. Leia +

Mas o que isso tem a ver com materialidade? Odilon Moraes explica: “É um livro que não pode ser quadrado. Precisa ser comprimido para que o leitor possa subir e descer o olho nas imagens e, sem perceber, entrar na imaginação do menino que está no carrossel. O movimento que se faz com os olhos imita o movimento de descida e subida do brinquedo”.

 

'Site specific' e materialidade do livro

O próprio autor da obra, Renato Moriconi, diz que é preciso olhar para livros como esses com a atenção e a seriedade que uma obra plástica em uma galeria ou museu exige. “Essa mudança de ponto de vista joga luz sobre detalhes não tão relevantes num livro de literatura (ou de literatura tradicional), como, por exemplo, a importância da materialidade do livro para o desenvolvimento da narrativa da obra. Isso é o que se chama em artes plásticas de ‘site specific’”, diz o ilustrador. 

Para Moriconi, todo livro-imagem, como Espelho e Bárbaro, é um site specific, ou seja, um lugar específico cuja narrativa depende do local onde habita, da arquitetura em que está inserida. “Mude o projeto gráfico do livro e teremos uma outra obra. Isso não acontece com livros tradicionais. As imagens nesse tipo de obra habitam uma casa que foi criada especificamente para elas e ali interagem, num diálogo que cria sentidos únicos. Fora dali elas perdem a potência narrativa e podem perder sentido. Formato, tipo de papel, quantidade de páginas, tudo é pensado e criado em diálogo. Aqui reside a potência do livro-imagem.”


Como ler um livro enquanto objeto

A dica de Renato Moriconi para quem quer ler livros mais visuais e sensoriais é: fique atento a tudo o que você vê. “Pergunte para a obra por que tal elemento está naquele local daquela página e não em outro lugar. Pergunte-se por que aquela obra tem aquele formato e não outro. Relacione suas respostas com a narrativa principal do livro. Veja se faz sentido. Ouse interpretar o que viu e sentiu. Não tenha medo de chegar a uma ou mais respostas. Arte é isso, não tem resposta única.” 

Odilon Moraes vai no mesmo sentido ao dizer que todo livro ilustrado resgata experiências de curiosidade. “O livro ilustrado é um território de descoberta da linguagem da palavra, da potência da imagem e do próprio objeto.” Para o autor, a leitura desse tipo de livro passa por entender que todos os aspectos têm algo a ser revelado. “É você pegar o livro e já se perguntar o motivo daquele formato.”

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