No universo dos livros para a infância, há um tipo de publicação muito difundida e popular entre as crianças, que mesmo quem tem pouca intimidade com o assunto já deve ter encontrado por aí: são os livros de contar. Esse gênero abrange um leque amplo de formatos e conteúdos que, de maneira mais direta e objetiva, apresentam os nomes dos números, a sequência numérica e noções de quantidade para os leitores bem pequenos, ainda não alfabetizados. Há também aqueles que costuram as noções numéricas e matemáticas a uma narrativa, que pode ser mais ou menos complexa, e que podem contemplar também crianças maiores.
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Com o nome de counting books em inglês, esses livros também podem ser chamados de “numerários”, como conta a designer e pesquisadora de livros infantis Ana Paula Campos, por uma semelhança com os igualmente populares abecedários.
Ela explica que há teóricos do livro ilustrado e do livro para a infância que os definem como “livros de primeiros conceitos”.
Noções numéricas que ajudam a organizar o mundo
“São livros transdisciplinares, que trabalham tanto a aquisição da linguagem verbal como da visual, além do letramento nessas duas formas de linguagem”, define a pesquisadora. De acordo com ela, esse é um grande encanto para as crianças, e perpassa um certo desejo delas de organizar o mundo, separar os elementos, criar categorias e fazer coleções. “Não que seja um processo direto e consciente. Eu não sou pedagoga nem especialista em desenvolvimento, mas vejo que tem muito a ver com esse movimento.”
Ana Paula esclarece que há um espectro que inclui esses livros e que vai dos mais simples, em que as informações são organizadas de maneira numérica crescente, com algum elemento ou objeto da realidade e do cotidiano da criança bem pequena. São livros que fazem uma relação mais direta entre o contar e os objetos relacionados, com imagens mais óbvias.
Ela argumenta também que “ensinar a contar” é uma possibilidade de definição para esses livros de um ponto de vista mais funcional, objetivo e educativo. Existem, porém, dentro desse espectro apontado por ela, livros que superam muito essa funcionalidade imediata. “Há toda uma gama de livros mais complexos, que utilizam recursos literários e aproveitam a linguagem verbo-visual que têm se desenvolvido com o boom dos livros álbum nos últimos anos.”
Um gorila, do premiado autor britânico Anthony Browne, pode ser um exemplo desse tipo de livro. Em formato grande, ele traz um tipo diferente de primata em cada página dupla, começando pelo gorila que dá nome ao livro e chegando a dez lêmures. Cada grupo de macacos mostra suas expressões e seus olhares profundos, mirando o leitor com o traço realista característico de Browne. Além de apresentar as variedades de símios e suas quantidades em retratos nada óbvios, o livro finaliza com o retrato do próprio autor e de outros humanos, organizando todos nós como uma só família diversa e interdependente.
Outras possibilidades oferecidas pelos livros de contar
Esses livros se utilizam da materialidade do objeto, têm ilustrações de qualidade e uma abordagem criativa na maneira de apresentar o mundo. Ana Paula elenca algumas das muitas possibilidades encontradas nesses títulos: “Podem trazer uma narrativa com personagens, fazer relações não óbvias entre as quantidades e o que está sendo representado; podem misturar categorias de conceitos”.
Esses livros são mais sofisticados em termos de linguagem verbal e visual, e podem oferecer mais desafios para as crianças que estão aprendendo a ler ou que são leitoras em formação. Para Ana Paula, não há problema algum em ensinar a criança a contar, mas ela ressalta que o livro pode ser muito mais que isso.
É o caso do livro Todas as pessoas contam, de Kristin Roskifte, que apresenta a noção das quantidades por meio de pessoas e suas histórias. Em uma multidão, cada integrante tem um sonho ou sentimento, únicos em sua forma, e isso nos une em nossa grande diversidade e relevância como seres humanos.
“Ele [o livro] pode ser muito mais poético. Pode convidar para uma fruição mais aberta e mais sensível, que proporcione diferentes interpretações. Que instigue a criança; traga objetos novos, novas realidades, personagens que mostrem uma representatividade”, descreve.
Um livro de contar filosófico e artístico
Outro exemplo é O livro laranja, do multiartista americano Richard McGuire, recém-lançado pela Companhia das Letrinhas. Autor de Noite vira dia e do aclamado Aqui, McGuire contou ao Blog sobre a ideia que originou O livro laranja: “Esse livro foi inspirado por uma laranja que eu vi no trilho do metrô em Nova York. Isso me fez pensar em como ela tinha ido parar lá e como tinha sido a vida dela antes disso. Eu mostro uma árvore no início, e o leitor acompanha o destino de treze laranjas”.
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No livro, cada página dupla revela o rumo de cada uma das frutas: a primeira foi parar no hospital como um presente para um amigo, a segunda foi usada num show de malabares, a terceira virou objeto de uma aula de arte, e assim por diante. A sequência aqui é composta por números ordinais, mas o livro guarda muitos caminhos de leitura para além desse aspecto. Como nos outros títulos de McGuire, O livro laranja também é permeado pela ideia das conexões que pontuam o caminho e interligam as trajetórias de diversos elementos.
Ana Paula comenta inclusive que, de imediato, nem faz a associação desse título ao gênero dos livros de contar. “Para mim, livro de contar nem é a primeira coisa que me vem à mente quando penso nele. Acho que a parte de contar parece mais um ponto de partida, quase uma desculpa, para o modo de organizar o livro e fazer um recorrido por uma espécie de história da cultura visual pop, da fotografia ao cinema. Acho incrível a maneira como ele fez esse passeio, ele e as laranjas! Esse autor é maravilhoso, sempre acompanho as produções dele”, revela a pesquisadora.