Histórias para encher a barriga

26/08/2022

A comida sempre esteve presente nas narrativas humanas, desde a pré-história. Quanto maior a escassez no prato, maior a presença de alimentos no imaginário e nos contos de fadas, fábulas e contos de magia. Por muito tempo e para muita gente, o sonho e as histórias eram os únicos lugares em que ela podia estar. Essa relação é tão intrínseca que a autora e jornalista Katia Canton, que pesquisa há anos o assunto, une novamente essas duas paixões e lança A cozinha curiosa das fábulas (Companhia das Letrinhas), um livro que mistura receitas para a família fazer junta e algumas das principais fábulas existentes.

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A cozinha curiosa das fábulas

Este volume segue a fórmula de sucesso de A cozinha encantada dos contos de fadas (Companhia das Letrinhas, 2015), traduzido para outros cinco países, para ler bem perto do fogão também. Desta vez, no entanto, ela traz as receitas das fábulas, essas histórias mais curtas, transmitidas pela tradição oral e caracterizadas por sempre ter uma narrativa de exemplo, uma lição de moral, de uso político ou na vida social. Elas costumam ser protagonizadas por animais ou objetos falantes e muitas vezes envolvem a comida. Por isso, Katia escolheu algumas das fábulas mais interessantes, vindas de vários cantos do mundo, para recontar, enquanto convida o leitor a preparar (e comer!) as delícias mencionadas ou relacionadas a essas fábulas.

Segundo Katia, o alimento sempre esteve presente nas narrativas humanas. Mas a maneira como isso acontece foi se transformando, acompanhando o contexto e o desenvolvimento da humanidade, conforme a passagem do tempo e as mudanças que ocorreram na sociedade. 

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O imaginário da comida nos contos

“A comida estava presente nas narrativas orais porque era escassa na vida real”, conta Katia, em entrevista ao Blog. “O desejo é algo ligado à ausência, então, como o alimento era algo muito desejado, ele aparecia por meio do encantamento das histórias. A produção artística é sempre algo que busca transcender o que falta”, explica ela. A questão da segurança alimentar influenciava muito essas narrativas. “Antes do século 17, quando houve a revolução agrícola, grande parte dos camponeses morria sem nunca ter conhecido a sensação de saciedade”, explica a professora. Barriga cheia? Somente na imaginação e nas histórias.

A história de João e Maria é um exemplo disso. Quando lemos, hoje, que os pais abandonaram as crianças porque não tinham comida suficiente, parece absurdo. “Mas até o final da era medieval era muito comum faltar comida, as crianças eram mesmo abandonadas”, diz a especialista. A criação da casa da bruxa, feita de doces, era um sonho, um encantamento do imaginário, ligado ao anseio pela abundância de comida. 

A cozinha curiosa das fábulas

Em alguns dos contos havia até receitas. Na versão de Charles Perrault de A bela adormecida, por exemplo, a mãe do príncipe era uma ogra, que queria devorar a princesa e seus dois filhos. Ela pedia, então, que o cozinheiro preparasse um molho para a carne da nora e dos netos, que tem até nome: “Molho Robert”. 

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Além disso, a maneira como as histórias são contadas também foi mudando ao longo do tempo. “Depois, a nobreza passou a se apoderar dessas histórias, que surgiram nas camadas populares e foram chegando aos mais abastados pelos empregados. Como a eles não faltava nada, pelo contrário, tinham banquetes sempre à disposição, as partes que falavam do alimento como encantamento foram sendo reduzidas”, explica a autora. “Com isso, a presença da comida foi diminuindo, desaparecendo”, completa.

A cozinha curiosa das fábulas

Os alimentos passam a surgir, então, com um fundo político e social. Em Cinderela, também na versão de Perrault, havia uma passagem em que, no baile, o príncipe oferece a ela um prato de frutas. A moça, então, come usando garfo e faca e é muito elogiada por seus modos. “Isso tem implicações muito grandes naquele momento, porque era quando, na França, Luís XIV, que era um rei tirano que ficou conhecido como ‘Rei Sol’, encheu a corte de regras de etiqueta e de bom comportamento, como, por exemplo, o uso de garfo e faca à mesa. Antes, era muito comum comer com as mãos. Mas ele queria ocupar os nobres com outros assuntos, para poder governar sozinho”, pontua Katia. 

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Os alimentos nas fábulas

As fábulas, segundo a autora, envolvem ainda mais os alimentos do que os contos de fada. “Como os personagens são quase sempre animais e a comida está diretamente ligada às necessidades e às buscas deles, é algo que aparece muito. Em A cigarra e a formiga, a cigarra não trabalhou e fica sem comida; em A raposa e as uvas, a raposa fala sobre as uvas que não estão maduras e diz que, por isso, ela não as quer”, exemplifica. 

Por serem narrativas anteriores à escrita, curtas, diretas, as fábulas sofreram alterações ao longo do tempo, mas não tanto como os contos de fadas. “Algumas versões são mais ou menos rebuscadas, passam por influências estilísticas. Mas a essência fica”, diz Kátia. O alimento continua tendo um papel central nas fábulas, até hoje. E é isso o que o livro A cozinha curiosa das fábulas nos lembra. 

Ainda mais em uma época em que a fome avança com força sobre a sociedade. “Em tempos em que estamos, novamente, enfrentando a volta da insegurança alimentar, com as mudanças climáticas e outros fenômenos, é importante repensar a nossa relação com os alimentos”, aponta a autora. “Precisamos pensar na terra, nas coisas vivas, na comida viva. Comida viva é comida que tem história; comida enlatada não tem história nenhuma. Está ali e pronto”, explica Katia. “No livro, além das receitas e das histórias, falamos também sobre plantar, sobre cultivar uma horta em casa… São ações que contam como uma forma de estimular o convívio e o conhecimento sobre os alimentos, a importância deles, as origens, todo o processo”, afirma. 

Para ela, a expectativa é de que os dois livros possam ser os primeiros passos de uma longa caminhada, rumo a uma forma diferente e mais cuidadosa de lidar com os alimentos. A cozinha encantada dos contos de fadas já foi muito bem recebido pelo público e, agora, ela espera que o mesmo aconteça com A cozinha curiosa das fábulas. “Que esse livro possa ser divertido e informativo e que as histórias das fábulas e a relação delas com a comida também possa ser um jeito de repensar a relação das crianças com a alimentação”, conclui. 

 

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