Narrativas afrocentradas são aquelas criadas por autores negros, com protagonistas negros autônomos e que representam a subjetividade, a história, a cultura, a ancestralidade, o repertório e a perspectiva negro-africana de maneira positiva. São histórias que resgatam o passado e os conhecimentos dos povos da diáspora a partir do seu ponto de vista, valorizando os traços, a estética e as cosmovisões que foram arrancadas da África e se espalharam pelo mundo.
Os livros Uma aventura do Velho Baobá, de Inaldete Pinheiro de Andrade e Ianah Maia, Tayó em quadrinhos, de Kiusam de Oliveira e Amora Moreira, Histórias da preta, de Heloísa Pires Lima, Da minha janela, de Otávio Júnior, Ei, você!, de Dapo Adeola, e o Manual de penteados para crianças negras são exemplos de títulos que trazem narrativas e temas afrocentrados.
O Manual, lançamento de julho da Companhia das Letrinhas, é o primeiro livro das publicitárias Joana Gabriela Mendes e Mari Santos e faz um recorrido sobre a história e a importância dos cabelos crespos para as culturas africanas e para o movimento negro. Traz alguns dos principais penteados negros, seus significados e técnicas para que as crianças aprendam a fazê-los. Um desses penteados é o Puff espacial, composto por dois afro puffs, que as autoras consideram ter um ar espacial e afrofuturista.
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Um imaginário afrocentrado para as infâncias negras
De acordo Morena Mariah, pesquisadora, mãe da Ayó e criadora do podcast Afrofuturo, os livros e as narrativas afrocentrados permitem que as crianças negras desenvolvam a habilidade e a capacidade de criar imagens que não tenham como referência apenas a falta, a violência e a violação de direitos. “É sempre difícil ver a representação de crianças negras de maneira positiva, e isso é muito destrutivo para a capacidade delas de sonhar. Essa representação negativa cria uma atmosfera de impossibilidade e uma interdição para a imaginação dessas crianças”, alerta a pesquisadora.
Para ela, isso tem a ver com o fato de a representação da criança negra estar quase sempre ligada ao mote da violência e da morte, principalmente na mídia brasileira. “É muito triste. E a maior parte das crianças que morrem no Brasil são negras, então fica um pouco nesse lugar de representação pautado pelas faltas, violências e violações que as pessoas negras sofrem. É difícil para as crianças conseguir libertar a imaginação com tão pouca referência positiva de passado, com tão pouca representação no presente e com tão pouca imaginação de futuro que contemple a existência das pessoas negras”, ela diz.
O que é o afrofuturismo?
Vem daí a centralidade do conceito de afrofuturismo para as crianças negras, como um formato de narrativa afrocentrada. O Manual de penteados para crianças negras define o termo assim: “o afrofuturismo é uma ‘intersecção entre a imaginação, a tecnologia, o futuro e a libertação’. O movimento existe desde 1950, mas ele só recebeu esse nome em 1994, em um ensaio do sociólogo Mark Dery.”
Com o tempo, o conceito passou a abarcar produções e imagens que projetam um futuro próspero e potente para as pessoas negras, numa perspectiva que combina alta tecnologia e tradições africanas. É o caso de produções como o filme Pantera Negra ou o álbum visual "Black is King", da Beyoncé.
O afrofuturismo combina elementos da ficção científica, da fantasia e da arte dos descendentes da diáspora forçada africana para revisar, analisar e criticar o passado e examinar os dilemas atuais da população negra.
Para Morena, o afrofuturismo é um esforço criativo de pensar o futuro como uma realidade melhor para a negritude, pautado por novas relações entre as pessoas.
“A escravização foi um processo bem ruim, bem dolorido, em que as pessoas foram afastadas das suas famílias e trazidas de maneira violenta para um lugar estranho, onde não falavam a língua, não se reconheciam. Mas, uma vez que isso tudo já aconteceu, a gente busca imaginar o futuro a partir dessa realidade dada. A gente mobiliza a imaginação, e é nesse campo da imaginação que o afrofuturismo pode brincar com as crianças. É fundamental falar disso com elas”, explica a pesquisadora.
Ela acredita que a parábola das pessoas que são abduzidas de um planeta e levadas para outro, onde desenvolvem novas habilidades e novos poderes, pode ser uma boa narrativa para falar do conceito com as crianças. “Ela propõe um contato com esse planeta de onde vieram essas pessoas, o que dá a elas a possibilidade de construir o e no futuro”, reflete.
Ao considerar os avanços da tecnologia, o afrofuturismo se apropria da modernidade para construir a imagem de um futuro feito por pessoas negras a partir das nossas referências. Um futuro em que sejamos livres para nos expressar com as referências da nossa herança como parte da diáspora. Você é o afrofuturo.
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Narrativas afrocentradas também para as crianças brancas
As narrativas afrocentradas, incluindo aí o afrofuturismo, são essenciais para as crianças negras, como já foi dito, e sobretudo para elas - mas é preciso fazê-las chegar também até as crianças brancas, como argumenta Morena Mariah. “A falta de crítica das pessoas brancas é a maior responsável pela manutenção do racismo e do estado das coisas como estão no nosso contexto social, então é muito importante que as crianças brancas também recebam referências boas e positivas da existência de pessoas negras”, diz a pesquisadora.
De acordo com ela, as representações positivas de pessoas e crianças negras, por meio das narrativas afrocentradas, permitem que as crianças brancas também ampliem a forma como pensam sobre essa alteridade. “Elas podem ressignificar essa realidade e construir imagens de futuro em que as pessoas negras não estão aprisionadas a estereótipos de violência, de miséria, fome e todo tipo de desgraça.”
Ela reflete que as pessoas brancas precisam estar inseridas nessa perspectiva de reimaginar e reestruturar a sociedade em que vivemos: “Eu sempre digo que não vai ser possível construir o futuro numa ilha. O futuro é um lugar ou um território coletivo - essencialmente coletivo. Então, para construir o futuro, a gente precisa de todo mundo, inclusive das pessoas com as quais a gente não concorda. É muito importante que as crianças brancas também sejam parte desse processo de construção e tenham boas referências em relação a isso.”
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É preciso avançar mais
Morena Mariah avalia que o mercado editorial teve um avanço nos últimos anos, com mais variedade de títulos que representam pessoas negras publicados, mas afirma que narrativas afrocentradas, em especial, ainda são poucas.
“Eu tenho uma filha de 2 anos, e ela tem uma diversidade bem grande de materiais literários que representam pessoas negras. O interesse do mercado aumentou, há uma variedade muito maior”, observa a escritora. “Mas, a gente sabe que há limitações, essa não é uma questão resolvida ou superada. E não apenas na literatura infantil, mas na cultura pop em geral, é preciso observar também a forma como essas representações se dão.”
Ela aponta para a necessidade de uma diversidade maior de representações, que dê conta das muitas diferenças e experiências das pessoas negras, que, como ela diz, não são um monólito. “A gente, a negritude, não é tudo igual. Existem muitas diferenças, então é muito importante que essa diversidade esteja contemplada nas representações e isso ainda é algo realmente escasso. As narrativas afrocentradas são pouquíssimas. Eu acho que a literatura, a ficção em geral, como esse espaço de criação de futuro, precisa de novas utopias e novas imagens, para que as pessoas possam construir outras realidades de mundo.”