Goethe dizia que “as cores são o sofrimento e a alegria da luz”. Isso porque a luz existe em ambos os casos, na cor e na ausência dela. Porém, que luz é essa?’ No mais recente livro ilustrado do autor André Neves, Lá fora, essa ideia parece guiar o leitor pelos cenários em que essas duas coisas acontecem: a indagação de como seria um mundo sem cor, e ao mesmo tempo, a expressão potente de uma vida colorida pelas mais diversas delas, as cores. "As cores guardam segredos de um tempo antes do agora", escreve André. Neste caso, as cores de André Neves trazem diversas camadas de leituras e simbologias, que versam sobre diversidade, autoritarismo, liberdade, democracia e política.
Neste livro ilustrado, André Neves apresenta aos leitores uma narrativa repleta de imagens vibrantes, que mostram quão poderosas podem ser as pequenas revoluções.
Escrito e ilustrado pelo artista, que há mais de uma década dedica suas melhores tintas e palavras à produção de livros para a infância e à formação de leitores, o livro é publicado pela Companhia das Letrinhas (o primeiro do autor por este selo editorial) e dá ao leitor uma oportunidade de diálogo sobre o valor de enxergar o outro em toda sua particularidade e a importância de uma sociedade democrática, em que cada um possa expressar suas ideias e desejos. Uma obra para todas as idades, da infância à vida adulta.
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Uma afirmação política da diferença
E se o mundo fosse igual, tom sobre tom? Onde teria lugar para a diferença? Já pensou se, um belo dia, alguém com poder para governar uma povo decretasse que não haveria mais espaço para sermos diferentes?
Na história, um camaleão branco que vive em um cenário totalmente desprovido de qualquer tonalidade, ousa desobedecer às regras impostas por um imperador mandão, e vai espiar o que existe além dos muros de seu reino, tão conhecido quanto desbotado. Então, ele descobre como pode ser transformador dar um pequeno passo além da norma pré-estabelecida, e percebe como o mundo se amplia quando nos dispomos a trocar nossas lentes por novas e coloridas.
"Ninguém é exatamente igual quando possui desejos": é nesta frase do livro, carregada de significados, que parece estar a chave para uma das leituras mais instigantes da história. É só quando o protagonista percebe haver um outro mundo a ser descoberto que ele percebe a necessidade de romper os limites impostos.
Conhecido por um trabalho consistente na composição de histórias que enveredam por temas considerados “difíceis”, como Obax, Manu e Mila e Entre nuvens, o autor André Neves convida famílias, mediadores de leitura, professores e, claro, os pequenos e grandes leitores para uma leitura delicada que perpassa assuntos como celebração da diferença, autonomia de escolha, política e liberdade.
Confira a entrevista completa com o autor André Neves
Lá fora pode ser lido como uma história sobre diversidade, sobre reencontrar o próprio desejo, e também sobre liberdade. Na sua visão como autor, de que formas esses temas perpassam a vida da criança?
André Neves – Acredito que de todas as formas. A criança contemporânea está em um mundo diferente de anos atrás. Ela observa, pensa e reage à vida social com uma experiência mais participativa porque tem as tecnologias como mídia de informação rápida. Seu alcance é bem maior, vai além da família e da escola. Talvez, de forma lúdica, este livro possa evidenciar outras visões de liberdade sem tantos desafios perigosos que podem acontecer nesse sentido.
Este é um livro também com uma expressão política marcante, quando narra para as crianças os mandos e desmandos de um imperador que quer aniquilar a diversidade. Em que você se inspirou para compor essa camada da história?
No cenário político atual e nas demandas da resistência.
Qual foi a técnica utilizada na ilustração, e como foi esse processo durante a escrita do texto? As ideias para as linguagens verbal e visual surgiram juntas?
A ideia verbal e visual não surgem juntas, elas se transformam juntas. A ideia original desse livro era falar sobre outras coisas, sobre arte. Era sobre as formas e cores na arte. Os camaleões poderiam formar ótimos diálogos com o assunto. Mas o desenvolvimento do conteúdo sofreu interferências diante alguns assuntos emergentes ao contexto social hoje. Acredito que meu comprometimento como artista, político e social, levou meu imaginário a uma visão crítica do que vivemos. Na imagem, eu busquei usar apenas o grafite, pois desejei um início em preto e branco. Preferi continuar com lápis de cor por sentir uma unidade técnica do manuseio riscado.
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Livros como este abrem caminho para pensar no desafio da mediação de leitura, porque as múltiplas camadas de sentido emergem na leitura; mas, sobretudo no caso das crianças menores, depende muito da condução de quem lê com elas. Como você vê isso?
É necessário caminhar sozinho numa leitura profunda para compreender primeiro em si quais as experiências que o livro lhe proporciona. Deve se antecipar aos conteúdos que descobre e cria a partir do texto verbal e visual sem fechar as múltiplas camadas abertas e evidentes aos outros leitores. Preparar-se para provocar um diálogo sem fazer interferências é fundamental. Com respeito aos comentários e opiniões que possam surgir. Só assim o amor aos livros e a leitura será mais profunda e efetiva.
A leitura é um ato de amor, como dizia Paulo Freire. Quando um livro é mediado, o leitor que conduz precisa amar o que lê. (André Neves, autor)
Este livro pode ser tido como um legítimo crossover, no sentido de impactar tanto jovens leitores quando adultos. Você pensa no público-alvo quando cria suas histórias (e especificamente nesta)? Como você vê a questão das classificações etárias na literatura dita "para crianças"?
Meus livros são ideias em confronto artístico. Algo que preciso e necessito fazer como vital. Não penso em ninguém. Apenas a vontade artística e os porquês aparecem para criação de algo ainda em aberto. Quando enfim encontro enredo, início, meio e fim, surge a criação de um pensamento estruturado no livro e leitor.
Não consigo ver meus livros e minhas criações como "para crianças". Eu faço livros “para as infâncias”. (André Neves, autor)
Um camaleão ousa se aventurar do lado de fora de seu reino sem cor, e dar início à mais bela revolução no livro Lá fora
"Ninguém é igual quando possui desejos", diz o texto em um determinado momento. Esse trecho lembra um pensamento do professor Jorge Larrosa, quando ele diz que nunca se passaram tantas coisas lá fora, mas nunca se passou tão pouco dentro. No mundo hiperestimulante em que vivemos, onde está a nossa capacidade de sentir e internalizar?
Hoje vivemos em um mundo muito rápido e de consumo veloz. Um mundo “hiperestimulante” para tantas coisas e grande parte delas com “dessensibilidade”. Como defende Larrosa nos seus questionamentos contemporâneos, na era da informação temos muito conhecimento e pouca experiência. Não paramos para pensar. Perdemos pouco a pouco a capacidade de evoluir, de fortalecer sensibilidade para construir atitudes do bem viver. A falta de sensibilidade fada o ser humano a sobreviver. Não temos mais tempo para viver, para sentir o que nos toca e nos transforma.
Pecisamos descobrir uma maior capacidade de humanização ao buscar respeito às diversidades, com uma delicadeza que esta além do que o mundo tem demostrado de real e concreto. (André Neves, autor)
Lá fora também brinca de maneira muito inteligente com a ideia da igualdade, de como ela pode ser acachapante, ao mesmo tempo em que é algo desejado em um mundo tão desigual. O que é igualdade para você?
Igualdade para mim é aceitar nossos próprios pensamentos e nossas verdades sem desrespeitar o pensamento e as verdades dos outros.
Como foi a escolha do camaleão como protagonista do livro? Quem são os camaleões (reais ou simbólicos) que te inspiram?
Os camaleões já existiam antes da história ser como é. Mas a transformação para ser o que são hoje, dentro do livro Lá fora, certamente foram as minorias na pirâmide social. As minorias que enfrenta a vida desigual e injusta equilibrados numa linha quase utópica. Prontos a morrer por acreditar na justa igualdade de forma livre e necessária. Precisamos acreditar.
Onde o autor André Neves busca as cores quando o mundo fica preto e branco?
Na verdade e na justiça.
Todos aprendemos muito com o isolamento social. Resta saber o que a humanidade fará com seus aprendizados. (André Neves, autor)
Na sua opinião, o mundo "lá fora" aprendeu algo com o período de isolamento imposto pela pandemia? Como nos reestabelecemos nesse fora depois de tanto tempo dentro?
Eu cerquei-me mais de mim e agora tento estabelecer por fora figurações que experienciei de um tempo mais lento. Preciso continuar a sentir o quanto somos frágeis. De não soltar as mãos de quem me as estende. De sentir a leveza da lágrima, ouvir o grito da língua. Dar forma à honestidade que construo em meus pensamentos. E se o destino permitir, continuar a tocar os leitores com aquilo que amo.
A arte dos livros é um afago em que me reconheço. É onde estou para os leitores. É onde coloco meu abraço. (André Neves)
(Texto de Renata Penzani)