Por que falar sobre política com as crianças? Cinco especialistas respondem

30/09/2022

As eleições de 2022 se avizinham, e com elas a presença constante do assunto política no cotidiano do país. Da escola às reuniões de família e o convívio com os colegas, as crianças são espectadoras desse debate nacional. Porém, muitos podem pensar: "se elas ainda não compreendem os elementos que compõem o jogo político, por que falar sobre o assunto com as crianças?" Conversamos com cinco especialistas para refletir sobre essa pergunta e, assim, convidar nossos leitores ao questionamento: se viver é político, por que crescer não seria?

Daniela Tafuri, Márcia Thomazinho, Isabella Gregory, Anna Rosa Amâncio e Rafaela Pacola, que contribuíram neste texto, fazem parte da equipe do CECIP (Centro de Criação de Imagem Popular). Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que atua há mais de 30 anos no fortalecimento da cidadania por meio da educação e da comunicação, e que desenvolve estratégias de participação infantil em políticas públicas e projetos de formação em relação à infância e educação.

Ilustração do livro Quem manda aqui? (Companhia das Letrinhas), de Larissa Ribeiro, André Rodrigues, Paula Desgualdo e Pedro Markun. Resultado de oficinas feitas com crianças, a obra pode ser uma alternativa criativa de educação política por meio da literatura

Será que sabemos mesmo o que é política?

A palavra "política" faz parte do vocabulário da vida social de forma tão enraizada que nem sempre paramos para pensar no que ela significa. Porém, é justamente na desautomatização dos seus muitos significados que está a chave para compreendê-la além do senso comum. Então, antes de falar da importância da política para a infância, não podemos deixar de defini-la. Afinal, se nós adultos não pensarmos em tudo o qsue a política pode ser ou representar, a criança pode crescer sem a dimensão adequada de como ela nos impacta.

“Sabemos que a palavra 'política' deriva do grego “polis”, que significa cidade, e segundo Aristóteles, a primeira função da política era a de descobrir qual a maneira de viver que leva os indivíduos à sua felicidade, bem como desenvolver um modelo de governo e fazer com que as instituições sociais sejam as responsáveis por garantir esse modelo”, explica Márcia Thomazinho.

Por conta disso, é preciso lembrar sempre que política implica um gesto coletivo, o agir em prol da sociedade. Essa relação deve ser refletida no poder legislativo, judiciário e executivo.

“Tudo é política, porque ela diz respeito a tudo que é da vida pública, da dimensão do coletivo, das relações sociais” - Daniela Tafuri

Para Thomazinho, temos também que afirmar e valorizar outra palavra grega, a "democracia" ("demos" + "kratos", ou seja, "povo" + "governo"), que significa que a soberania é exercida pelo povo.

“Escolhemos presidente, governador, prefeito, senadores, deputados federais e estaduais e vereadores para representar os nossos anseios e assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, dentre outros valores.” - Márcia Thomazinho

Política: uma visão ampliada e plural

Criança não vota. Mas será que apenas por isso elas não precisam fazer parte das discussões sobre as funções de cada cargo político, qual a necessidade de escolher candidatos que reflitam valores sociais e coletivos, e como funciona a política nos interesses práticos do dia a dia?

A política está no Congresso, no Senado e no Planalto, mas também está no preço do feijão no supermercado, na qualidade da educação pública à qual as crianças têm acesso, e nas muitas possibilidades (ou impossibilidades) de se ter bem-estar social enquanto cidadão. Tudo isso diz respeito inevitavelmente à criança, que a Constituição Federal e o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) compreendem como prioridade absoluta.


Princípio da Prioridade Absoluta, art. 4º do ECA

Também previsto no artigo 227 da Magna Carta, o princípio da prioridade absoluta determina que crianças e adolescentes sejam tratados pela sociedade e, em especial, pelo Poder Público, com total prioridade pelas políticas públicas e ações do governo.


“Geralmente associamos política à atividade de partidos ou de um governo e, enquanto cidadãos, nosso fazer político acaba por se restringir ao voto, que é sim algo fundamental”, explica  Isabella Gregory

No entanto, faz parte de uma educação política infantil consistente e responsável elevar a discussão sobre o assunto para o patamar da colaboração entre grupos – Estado, sociedade civil, famílias e poderes estabelecidos.

“A política atravessa o nosso cotidiano e as nossas relações. Existem várias definições de política. Para mim, é um conjunto de ações realizada por um grupo de pessoas, instituições ou um indivíduo em busca de uma convivência plural em sociedade”, defende Gregory.

Qual a importância de falar sobre política com as crianças?

Principalmente neste momento no Brasil, com o processo eleitoral em andamento e as campanhas em todos os meios, inclusive na TV, é comum as crianças ficarem curiosas e fazerem perguntas. Mas, para não afastá-las do interesse sobre o assunto, não é necessário teorizar a política, pelo contrário; o mais importante é responder pergunta por pergunta das crianças, com naturalidade e sem a pretensão de achar que o adulto precisa saber tudo. É o que defende Anna Rosa Amâncio.

“O fundamental é que as crianças vivam experiências de práticas democráticas e vivências que as ajudem a formar os conceitos de liberdade, solidariedade,  coletividade, colaboração.” - Anna Rosa Amâncio

Já para Thomazinho, antes de mais nada, é importante que a criança saiba por que o adulto precisa votar. Além disso, dependendo da idade da criança é fundamental também que os pais e/ou professores façam uma correlação com o universo dela. Uma maneira simples é fazer perguntas e contar histórias para mediar o assunto.

“Uma história é um bom começo. Pode fazer a relação de como ela escolhe as coisas, de como ela queria que fosse a escola dela, por exemplo, e por que escolher um bom governante é importante. Explicar para a criança que, se esse governante for bom, ele pode “lutar” por aquilo que ela quer, e, se não for, isso pode demorar a acontecer.” - Anna Rosa Amâncio

Já Márcia chama a atenção para a importância da representatividade dos direitos da criança nas propostas de governo de cada candidato. Pensar na infância desde o momento de acompanhar as campanhas de cada candidatura é uma forma de priorizar a participação infantil e afirmar o lugar social da criança como cidadã. Para isso, vale ter em mente o princípio da responsabilidade compartilhada sobre a criança, que a Constituição e o ECA definem como dever simultaneamente do Estado, da família e de toda a sociedade.

“Os adultos devem pensar bem e escolher os candidatos que pretendem lutar pelas necessidades da sua cidade, da sua família e da vida das suas crianças - Márcia Thomazinho

A criança também é um ser político

Associar política à infância pode ser um incômodo para as pessoas que relacionam política necessariamente a um partidarismo. Mas, como defendem os especialistas no assunto, é fundamental ampliar essa noção.

“A criança é parte da sociedade. Ela frequenta praças, parques, se locomove pelas ruas e avenidas, tem acesso a alimentos de melhor ou pior qualidade, frequenta serviços básicos de saúde, assistência e educação. A participação social e a prática cidadã não é algo que se aprende de uma hora para a outra. Faz parte do desenvolvimento integral do sujeito”, pontua Gregory.

“As crianças devem entrar em contato desde cedo com temas como ética, respeito, liberdade, democracia e solidariedade." - Isabella Gregory

Mas então, como traduzir para as crianças e o universo comum em que elas transitam conceitos políticos mais complexos, como "democracia" ou "liberdade"?

Segundo Rafaela Pacola e Anna Rosa Amâncio, quanto mais as crianças exercitarem na prática uma conversa ativa sobre essas questões, mais saudável pode ser o seu desenvolvimento de pensamento crítico e autonomia. “As crianças têm a oportunidade de participar de experiências coletivas e também individuais, em que elas sejam convocadas a  opinar,  argumentar, ouvir,  negociar, decidir, resolver problemas, conversar sobre conceitos complexos como liberdade,  direitos, cidadania, democracia podem se tornar mais interessantes e mais próximos, porque estão vivenciando exemplos práticos e concretos desses conceitos", dizem Anna Rosa Amâncio e Rafaela Pacola

“O importante é entrar no universo da criança. Faça a relação da democracia, com aquilo que a criança conhece; da liberdade também. Por exemplo, liberdade. O que a criança gosta de fazer? E se ela não pudesse fazer o que gosta... e se ela não pudesse brincar, passear.” - Márcia Thomazinho

Precisamos confiar no potencial de entendimento das crianças, elas são muito mais capazes de compreender do que imaginamos, mas nem tudo precisa se resumir a entender, e sim a vivenciar e dialogar. “É importante pensar em como aproximar esses conceitos de situações concretas que acontecem no dia a dia. Às vezes, nos preocupamos demais em definir, dizer o que é e o que não é, mas é mais eficaz aproveitar momentos por exemplo de conflitos, de questionamento de uma regra ou da negociação de um brinquedo, do que ficar vários minutos tentando explicar algo que é tão abstrato”, pondera Isabella Gregory

Educação política começa em casa 

Os adultos mais próximos são as principais referências das crianças. Com a política, não seria diferente. São as micropolíticas do cotidiano que constroem o pensamento crítico dos pequenos sobre o tema. Sendo assim, como incentivar um pensamento autônomo nas crianças em relação às crianças? “O exercício democrático é  trabalhoso e não é fácil, é preciso ouvir, falar, ponderar, negociar. É na prática do dia a dia que as crianças aprendem a serem críticas”, lembra Anna Rosa Amâncio.

“A relação familiar é uma ótima maneira de começar. Em sua família provavelmente deve haver opiniões divergentes em relação ao voto. A criança precisa entender que nas relações deve haver respeito. Que na sua casa ninguém briga porque o vovô, por exemplo, escolherá um candidato diferente do seu. Que às vezes você tenta ajudar ele a entender o porquê o seu candidato é melhor que o outro. E faz isso com amor, e só faz porque você estudou sobre a vida do candidato e sobre o que ele planeja fazer", explica Márcia Thomazinho.

Para ela, essas questões também podem estar associadas a brincadeiras. “Por que um gosta de bola e o colega de carrinho, por exemplo? Uma criança não precisa gostar do mesmo brinquedo que o amigo. Ela pode ter gostares diferentes”, explica.

Para ter autonomia é preciso que a criança se sinta segura para perguntar, questionar e discordar; que seja exposta a diversidade de pensamentos e opiniões, selecionando fontes confiáveis e respeitando sua faixa etária; e que os adultos sejam coerentes com seus discursos. 

“Muitas vezes, pedimos paz e amor, mas xingamos o vizinho que gosta do candidato com o qual não simpatizamos. Num contexto como este, a criança não sente que tem liberdade para pensar diferente, ela entende que se questionar pode ser ofendida também.” - Isabella Gregory

“Não é um movimento fácil, porque também exige que nós, adultos, saiamos das nossas bolhas, exercitemos nossa escuta, nosso diálogo e nossa tolerância. Mas se optamos pelo caminho oposto, ao de impor a criança a uma determinada crença ou pensamento, não conseguimos ensiná-la sobre a convivência em sociedade, que é plural e diversa”, explica Gregory    

Falar de política não precisa ser difícil

Como romper, tanto entre os adultos quanto com as crianças com a ideia de que política é um assunto chato, e, ao contrário, passar a vê-la como um vetor de transformação social?

Para Rafaela Pacola, só se faz isso tomando consciência de que tudo o que lidamos no nosso cotidiano é atravessado pela política, e mesmo não gostando, precisamos escolher quem serão os representantes que melhor defenderão nossas necessidades e que têm propostas capazes de solucionar problemas coletivos. 

“As crianças também vivenciam o impacto das problemáticas do cotidiano, usam os serviços, circulam na cidade... e estão acompanhando esse período eleitoral, que é perfeito para ir contando para elas o que cada candidato e cada cargo faz e representa.” - Rafaela Pacola

Por outro lado, Isabella Gregory reitera a importância de associarmos a criança à participação da vida pública. Para ela, não trazer o tema para nossos espaços de convívio só nos afasta de nos educarmos politicamente. “A ideia de que política é algo chato vem do fato de nos percebermos pequenos demais para alcançá-la, para trazer alguma contribuição e efetivar alguma mudança no cenário. Um caminho possível para transformarmos esse nosso medo, essa tristeza e essa desesperança é agirmos sobre aquilo que está ao nosso alcance, onde podemos realizar mudanças concretas, seja dentro de nossas residências, dos condomínios ou no bairro”, conclui Gregory

“A escola e a cidade como um todo podem oferecer práticas cidadãs para as crianças, fazendo conselhos mirins e escutas para que elas possam dizer o que precisam e o que querem para os espaços onde convivem.” - Rafaela Pacola

(Texto de Renata Penzani)

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