Ryu Jae-soo: "'Guarda-chuva amarelo' alcançou um nível universal de arte"

06/10/2022

“Um livro-imagem é um tratado de escuta”. Quem disse isso foi a pesquisadora portuguesa Dulce Melão, durante o III Congresso Internacional de Literatura para Crianças e Jovens da PUC-SP, em transmissão pelo YouTube. No livro Guarda-chuva amarelo, é justamente com essa confiança no ouvido do leitor que os artistas coreanos Ryu Jae-soo e Shin Dong-il convidam a pensar: como observar aquilo que nos observa? E como inventar formas novas de fazer isso? Eleito um dos mais belos livros ilustrados pelo jornal New York Times, o livro não só tem as portas abertas para a contemplação como faz uma instigante proposta de interconexão entre imagem e música. Importa aqui a beleza do formato, a história está aberta para ser contada de muitas maneiras. 

Neste livro-imagem de um dos mais premiados ilustradores sul-coreanos da atualidade, acompanhamos a emocionante jornada de um grupo que caminha por uma cidade em um dia de chuva

Publicado pela Companhia das Letrinhas, o título vem somar à boa onda de livros sul-coreanos para a infância que chega ao mercado literário brasileiro, como o premiado Balas mágicas, de Heena Baek, e o conjunto de obras de Suzy Lee, dos quais constam no catálogo os livros Sombra, Onda, Espelho, Rio, o Cão Preto e, em breve, Linhas. 

O livro Guarda-chuva amarelo narra o dia de um guarda-chuva que cruza a cidade em um dia nublado e chuvoso. Ele passa por um parque de diversões, uma ponte, uma escadaria. No caminho, outros guarda-chuvas, cada um de uma cor e um jeito, vão se juntando a ele, à medida que a chuva continua. Uma narrativa visual que se coloca para quem lê como uma obra em aberto, sujeita a interpretações do campo sutil de cada um. 

Um livro, infinitas histórias

Guarda-chuva amarelo pode ser lido como um verdadeiro livro crossover, por sua capacidade intergeracional de alcançar tanto leitores em formação quanto adultos de variadas idades. Essa é uma das potências do livro-imagem: ao deixar para o leitor a missão de compor junto com o autor a história que se apresenta, ele passa a ser de quem tomar para si essa leitura ativa.

Porém, no caso deste livro especificamente, uma camada extra de possibilidade de ampliar a obra é acrescentada, pois trata-se de um livro composto em duas linguagens, a visual e a sonora. A obra acompanha uma playlist de músicas produzidas justamente para narrar a história junto com as ilustrações. Assim, enquanto o leitor acompanha as imagens em sua explosão de cores pelas páginas, outros sentidos entram no ato da leitura, aguçando a sensibilidade e contribuindo para a formação de um leitor conectado com o aspecto plural da literatura ilustrada.

Capa do livro-imagem premiado Guarda-chuva amarelo

Conversamos com os dois autores do livro, o ilustrador Ryu Jae-soo e o compositor Shin Dong-il, para contar aos nossos leitores como foi o processo de criação do livro, e mergulhar nas conexões entre imagem, som e literatura.

Leia a entrevista com o ilustrador Ryu Jae-soo

Uma das facetas mais interessantes de Guarda-chuva amarelo é a comunicação interlinguagens. Como surgiu a ideia de mesclar imagem e música para narrar a história?

Ryu Jae-soo – Pra mim, o ato de ouvir música é mais que um hobby, é uma fonte de vitalidade e inspiração. Então, eu sempre quis fazer um livro ilustrado com música, até que esta oportunidade apareceu. 

Num dia chuvoso, estava observando algumas crianças a caminho da escola com seus guarda-chuvas coloridos, e a ideia me veio à mente naquele instante. As formas coloridas dos vários guarda-chuvas em cores distintas se sobrepondo e o ritmo das risadas e conversas das crianças estimularam meus olhos e ouvidos ao mesmo tempo. 

À medida que a ideia ia se materializando, conheci um músico que se afeiçoou a este livro. Foi um dia verdadeiramente lindo e muito feliz quando pude compartilhar essa história em imagem e música com o compositor Shin Dong-il.

O ilustrador Ryu Jae-soo em seu escritório. Crédito: Divulgação

Como é o cenário dos livros-imagem na Coreia do Sul? Você observa um crescente interesse dos leitores por esse gênero de livro ilustrado?

Ryu Jae-soo – Curiosamente, os livros-imagem não são tão reconhecidos quanto os livros ilustrados na Coreia, devido às limitações do próprio gênero, e penso que esta situação seja semelhante em outros países. 

Contudo, o caso de Guarda-chuva amarelo é diferente, pois ele vem recebendo boas críticas desde a sua primeira edição. Diria que ele é uma espécie de clássico do gênero. Os livros-imagem podem gradualmente ganhar mais interesse em meio à diversidade de gêneros dos livros ilustrados, mas suspeito que isso não levará a uma expansão significativa em termos de vendas. 

Uma definição universal de livro ilustrado é a que se trata de um livro em que palavras e imagens estão intimamente fundidos, e acredito que a mensagem criada entre os textos literário e visual operam em sinergia, estabelecendo um espaço para criações quase infinitas. (Ryu Jae-soo, autor)

O fato de não haver um texto a ser lido, por si só, parece limitar o público leitor. E, por esta razão, mesmo algumas editoras de países vizinhos, conhecidas por publicar livros ilustrados de altíssima qualidade, se ofereceram para publicar Guarda-chuva amarelo sob a condição de que eu incluísse texto verbal nele. Então eu sempre nutri profundo carinho e respeito pelas editoras ao redor do mundo que tomaram a decisão corajosa de publicar meu livro-imagem frente a esse dilema existente no mercado editorial.

Quando você escreveu este livro, imagino que não poderia supor o best-seller no qual ele se tornaria. A que você atribui essa recepção tão intensa por parte dos leitores? 

Ryu Jae-soo – Quando estava planejando o livro, não fiquei com muitos pensamentos em mente, apenas o desejo de que ele fosse composto por imagens e músicas. Por outro lado, fiquei surpreso com a boa recepção dele pelo mercado editorial não apenas da Coreia, mas em outros países também – isso porque eu sabia das limitações mercadológicas desse gênero de livro ilustrado, como mencionei antes. 

Se eu tivesse a coragem de me propor a avaliar as características e os apelos desse livro-imagem, eu diria que Guarda-chuva amarelo alcançou um nível universal de arte, ultrapassando as barreiras do gênero e sendo amado por leitores em diversos países do mundo. (Ryu Jae-soo, autor)

Trabalhei bastante para criar as telas perfeitas, como mudar sutilmente o tom de fundo, alterar as cores ou a posição dos guarda-chuvas. Foram muitos estudos repetidos. Ao mesmo tempo, tentei retirar ao máximo as imagens que remetessem ao texto literário, enfatizando apenas as belas imagens visuais. Por exemplo, na página dupla inicial, em sua primeira concepção, havia uma linda bicicleta do protagonista, um jardim com folhas coloridas, até um cachorro, mas foi tudo excluído e substituído por cores simples, para, com isso, estimular a imaginação literária no próprio leitor. 

No passado, quando Guarda-chuva amarelo foi selecionado como um dos "40 Melhores Livros Ilustrados do Mundo", na ocasião de celebração do 50º aniversário do International Board on Books for Young People (IBBY), um dos membros do comitê de seleção explicou o motivo da escolha, dizendo que "nesse meio tempo, foram lançados muitos livros-imagem.  Contudo, este é um caso raro de livro ilustrado sem palavras, mas também sem uma história fixa em si. E é exatamente por isso que ele transcende diferenças culturais e locais de cada país, sendo capaz de se aproximar dos leitores de todo o mundo de uma maneira amigável."

Ao ouvir isso, eu só concordei e me senti honrado. No campo da música, um famoso pianista certa vez utilizou o livro como repertório em seu recital. Houve até caso em que Guarda-chuva amarelo apareceu entre os livros de arte em uma galeria de um algum país aí.

Você pensa na criança na hora de criar, ou livros infantis podem ser para qualquer idade? E como você vê a questão do rótulo “literatura infantil”?

Ryu Jae-soo – Guarda-chuva amarelo é um tipo de livro ilustrado cuja meta é fazer com que os leitores sintam prazer visual e sonoro, sem necessariamente remeter a uma história. Por outro lado, paradoxalmente falando, exatamente por ser um livro-imagem sem uma história per se, acredito que isso dê ao leitor a possibilidade de imaginar e desfrutar livremente de muitas e diversas histórias, ao seu gosto. 

Um "livro-imagem" é literalmente um livro feito de imagens. Com relação aos livros ilustrados, acredito que o conceito de "leitura" também deva ser discutido, incluindo não apenas a imagem literária, que penetra o pensamento, mas também o significado de sentir a imagem visual, que é bem intuitiva acerca de si. No mercado editorial coreano, os livros ilustrados são tratados como parte da literatura infantil, ainda que sejam reconhecidos como um gênero independente que não se encontra subordinado a nenhum outro campo já faz anos. 

Reconheço a distinção entre os termos "livro ilustrado” (picture book) e "livro infantil” (children's book) em amplos aspectos, contudo, ao criar, considero apenas a qualidade do livro ilustrado em si, sem o leitor em mente. 

No lugar do título "literatura infantil", acredito que o problema esteja no fato de as crianças não serem vistas como sujeitos independentes, como indivíduos, com visões de mundo à parte, mas reconhecidas como adultos não crescidos, ou seja, como bebês prematuros. (Ryu Jae-soo, autor)

 

Confira a entrevista com o compositor de Guarda-chuva amarelo, Shin Dong-il 

Como foi o processo de criação da playlist que acompanha o livro? Como fez para aliar as cenas às músicas, e também para escolher os títulos?

Shin Dong-il – Encontrei com Ryu Jae-soo pela primeira vez uns dois anos antes da publicação de Guarda-chuva amarelo, quando a obra ainda estava em planejamento. Na ocasião, ele me contou muitas histórias de sua vida e sobre as ideias por trás desse livro, além de me mostrar diversos rascunhos. 

As 13 faixas de compus seguem uma forma correspondente a cada uma das cenas do livro, e, de maneira geral, são variações e transformações da melodia por trás da primeira peça, intitulada simplesmente "Prelúdio de gotas de chuva e guarda-chuva amarelo". Eu queria retratar em música a jornada de uma criança.

O comecinho da primeira peça expressa as gotas de chuva caindo, uma a uma, até formar chuva mesmo, e, enquanto isso, uma parte do tema central toca suavemente, até o momento em que sua melodia inteira se apresenta. 

A segunda peça foi composta de modo que os acordes (notas tocadas pela mão esquerda) e a melodia (notas tocadas pela mão direita) soassem como que conversando entre si, e, com isso, desmontando o tema central, tal qual o tagarelar entre dois amigos que se encontram pelo caminho. 

A terceira peça, onde três guarda-chuvas se encontram, toca o tema num estilo de três batidas, e a quarta peça, onde quatro guarda-chuvas se encontram, toca repetidamente, amarrando quatro batidas em intervalo agudo, como que representando as gotas de chuva que caem no rio. Aqui, o tema principal toca num registro bem mais baixo. 

A peça da quinta cena, em que cinco guarda-chuvas atravessam o parquinho, não combinava muito com cinco batidas, então a compus como uma marcha de crianças. Por sua vez, a peça da sexta cena, em que seis guarda-chuvas cercam uma fonte, foi composta ao estilo de valsa, uma vez que os guarda-chuvas parecem rodar eles próprios, e o som que acompanha é feito pela combinação de seis batidas. 

A sétima peça, que retrata sete guarda-chuvas descendo uma escada, toca um tema de sete batidas que decrescem sequencialmente depois de uma primeira nota alta. Essa é uma música que segue um estilo bem clássico. A partir da oitava cena, o número de guarda-chuvas só aumenta. A oitava peça, onde se vê trilhos de uma ferrovia a serem atravessados, representa musicalmente o aproximar à distância do trem, seus solavancos até sua parada forte à nossa frente, e seu consequente afastamento.

A nona peça, que apresenta a passagem pela floresta cinzenta de prédios na chuva, é um pouco urgente e tensa ao mesmo tempo. Há também muita dissonância aqui, já que tentei expressar a altura dos arranha-céus pela música. Uma música que soa vertiginosa e instável. A peça que representa a décima cena dá o tom do atravessar uma faixa de pedestres na hora do rush. 

Em meio ao frenesi dos carros buzinando e do sinal mudando, nosso protagonista com o "guarda-chuva amarelo" toma a dianteira e a música termina. Já a décima primeira peça, que mostra o atravessar a estrada no meio de uma bela floresta, pretendeu expressar a sensação de uma caminhada lírica e gentil. Eu queria que ela fosse tocada de maneira bela, evocando uma sensação de valsa lenta. A décima segunda peça não tem um plano de fundo específico, já que nos mostra uma infinidade de crianças com seus guarda-chuvas se reunindo. Ainda assim, expressa esse momento de clímax frenético. 

A cena final do livro é em frente à escola. As crianças com os guarda-chuvas chegaram ao seu destino, e, aqui, o ponto de vista das imagens desce do céu para a terra. O tema de Guarda-chuva amarelo toca na íntegra com um acompanhamento. Esse tema, que foi apresentado como uma melodia única na primeira peça, transformou-se numa variedade de formas com várias texturas como pano de fundo, até que as treze peças finalmente se reúnem e formam uma única música. Nesta última música, sentimos, por fim, alívio. 

Você pode facilmente criar sua própria história ao aproveitar as páginas do livro-imagem Guarda-chuva amarelo sem a música, assim como você pode acompanhar cada cena com sua respectiva faixa musical. (Shin Dong-il, compositor)

Como não se trata de algo essencial, você pode tanto aproveitar as imagens quanto as músicas, ou pode deixar sua imaginação correr solta na combinatória de imagens e músicas. Não havia títulos para as faixas, a princípio. Ryu Jae-soo queria retirar do livro o máximo de características que são próprias ao texto literário, e como a música também é uma forma de arte mais abstrata, sua intenção acabou se tornando capturar a verdadeira natureza da arte expressa em imagem e música. 

O compositor Shin Dong-il, autor da narrativa musical do livro Guarda-chuva amarelo. Crédito: Divulgação

O conceito de obra aberta se alia muito aos livros-imagem.  A música instrumental, por não ter palavras, também se assemelha ao livro-imagem. Que expressões, sentimentos e motivações você imagina que suas músicas vão evocar no leitor do livro?

Shin Dong-il – Espero que vocês possam sentir a jornada de Guarda-chuva amarelo pelo processo de transformação do tema principal, apresentado na primeira peça, nas mais diversas formas e variações. 

A música nesse livro inclui vários estilos. Às vezes é brincalhona, às vezes é uma marcha corajosa, por vezes é como dançar, expressando diferentes formas de movimentos e cenas. Seria incrível imaginar e apreciar os muitos prazeres que podemos vivenciar e sentir num dia chuvoso. (Shin Dong-il, compositor)

Aqui, a música tem função narrativa, afinal, ela também conta a história. O elemento que une as duas formas de narração é o ritmo, esse fator tão fundamental nos livros ilustrados. Que relações você vê entre narrar musicalmente ou imageticamente?

Shin Dong-il – Acompanhar a história pela música é alcançar emoções não expressas pelas imagens. O ritmo é definitivamente importante no processo. O ritmo permite que você sinta o movimento enquanto escuta a música. Com o livro ilustrado não é diferente: sentir o ritmo é valioso, ao ponto de ser parte estruturante do fluxo do livro como um todo. A música é mais abstrata do que a imagem. Isso fica ainda mais evidente quando a música instrumental não vem acompanhada por letras. Por mais elaborada que a música seja, ela não irá transmitir informações específicas. 

O livro serviu como um parâmetro para a composição. Livros ilustrados e músicas podem ser obras independentes uma da outra, porém, o livro ilustrado e a música estabelecem uma relação íntima e complexa em Guarda-chuva amarelo. (Shin Dong-il, compositor)

Você pensa na criança na hora de criar, ou livros infantis podem ser para qualquer idade? Como você vê a questão do rótulo “literatura infantil”?

Shin Dong-il – Entendo que Ryu Jae-soo concebeu esse livro em específico como uma obra que minimizou o quanto possível elementos muito literários, com caráter narrativo demais. Foi um livro criado com o propósito de fazer com que o leitor sentisse a beleza do formato e não da história. Cabe ao leitor criar uma história ainda mais rica para Guarda-chuva amarelo

Não tenho certeza se os livros ilustrados estão inteiramente incluídos na chave da "literatura infantil", porém, observando as tendências recentes, é possível ter acesso a livros cada vez mais ousados e livres em termos de formatos e estilos. 

Acredito que arte para crianças é algo necessário, seja essa arte "literatura infantil" ou não. Penso que o mais problemático não seja a categorização em si, mas o fato de muitas das obras de arte para crianças serem criadas com base nos preconceitos dos adultos. (Shin Dong-il, compositor)

(Texto de Renata Penzani. Tradução de Luís Girão, pesquisador e tradutor do ARA Cultural/USP)

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