Heloisa Pires de Lima: “Uma história bem contada desafia a contar outra”

30/11/2022

Racismo e representatividade negra são temas que, tardiamente, ganharam mais consistência nos últimos anos - e ainda há muitas batalhas para lutar nesse campo. No entanto, em 1998, Heloisa Pires de Lima trouxe o debate para as crianças, com Histórias da Preta. O livro veio quase junto de Histórias de Índio, de Daniel Munduruku, que falava dos povos indígenas. “Ambas as publicações quebravam, nos anos 1990, uma série de estereotipias para a referência negra e indígena”, aponta Heloisa, em entrevista ao Blog da Letrinhas

 

“A abordagem partia de uma historiografia de ponta sobre a escravidão, abria janelas para diferentes culturas no continente africano. Tudo formava um conjunto inovador para a época” (Heloisa Pires de Lima, autora)

O livro, que surgiu por meio de um desafio lançado por Lilia Schwarcz, na Universidade de São Paulo (USP), tem 25 anos, mas ainda é fresco e atual. Em um bate-papo, a escritora e pesquisadora conta um pouco mais sobre essa história, sobre os retornos que recebe do público até agora por conta disso e reflete sobre o futuro dos livros infantis e dos pequenos leitores. 

*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022), você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais.

Heloisa Pires de Lima

Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro para a editora e o que mais te marcou nesse processo?

A Lilia Schwarcz [fundadora da Companhia das Letras] dava aula na Universidade de São Paulo e lançou o desafio de apresentar para crianças algumas das questões relacionadas às populações negras no Brasil. Como uma possível resposta, criei o Histórias da Preta (1998), que acabou avaliado na editora, sendo, então, publicado. O material teve o acompanhamento de Heloísa Prieto, que já estava trabalhando com Daniel Munduruku na obra Histórias de Índio. Ambas as publicações quebravam, nos anos 1990, uma série de estereotipias para a referência negra e indígena.

No meu caso, a personagem menina com a fenotipia negra ocupa o centro da capa e este relacionamento entre a redação e a produção visual da obra foi o que mais me marcou. Fui algumas vezes ao ateliê da Laurabeatriz, levando elementos sobre o conteúdo, por exemplo, no detalhe, coroas africanas são distintas das europeias. O exercício também foi conversar sobre problemas embutidos nas singelas representações da humanidade negra que circulavam nos acervos. A expressão da face, a cor da pele, sem branqueamentos, o fato de a menina negra ter um pai com uma biblioteca. A abordagem partia de uma historiografia de ponta sobre a escravidão, abria janelas para diferentes culturas no continente africano. Tudo formava um conjunto inovador para a época. 

A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos em 2022. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?

A Companhia das Letrinhas foi um divisor de águas no histórico de qualidade gráfica e de conteúdo para leitores infantis e juvenis. Todos nós aprendemos e fomos impactados por essas produções. Muitas editoras se espelharam nesse modelo. Porém, mais especificamente, a presença negra em toda a cadeia de produção de livros, não. A Lei 10.639/03 e a  Lei 11.645/08 impactaram mudanças. Hoje, a autoria e o repertório sem voz e visibilidade no passado, ocupam a cena. O poder da literatura na construção de argumentos culturais, por um lado foi aliada e conivente com o racismo editorial e, por outro, vem superando a ignorância que atrasou a representatividade e a riqueza cultural nesse acesso.

Poderia citar três livros infantis que foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?

Nessa dimensão das relações raciais, digo que sempre me impressionou a posição de Joel Rufino na cena literária nacional. Desde a coleção Recreio, e depois a coleção Taba, o livro era um brincar da história com a musicalidade que reunia a nata de intérpretes como Gil, Nara Leão, Secos & Molhados, gente que pensava sobre a infância, Ilu Krugli, Maria Clara Machado, enfim, lá também estava Joel, com produções de destaque. Bem depois, marcante para mim foi o Quando voltei tive uma surpresa (2000, Rocco), que são as cartas que Joel escreve para o filho quando aprisionado pela ditadura, um jogo entre a ludicidade e a dura realidade.  O mundo black power de Tayó (2013, Peirópolis), de Kiusam de Oliveira, também é uma aula de como atravessar repertórios complexos com ludicidade. Benedito (Caramelo, 2019), de Josias Marinho, também é uma narrativa muito bem construída visualmente para um repertório particular, relacionado ao segmento negro da população. Da Letrinhas, De passinho em passinho, da dupla Otávio Jr e Bruna Bezerra Lubambo, é uma antena com fala direta. Também Onda, de Suzy Lee, proposta que soube destacar a experiência sensorial. E, Histórias da Cazumbinha, que reúne o ponto de vista na autoria, a riqueza cultural de uma identidade quilombola e os assuntos que ganham a dimensão de registro sobre uma comunidade na dimensão literária.

Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ou ao feedback e interação com os leitores ficou na sua memória ao longo desse tempo? Poderia contar um pouco qual história mais te marcou?

Entre imaginar e escrever uma história e ter o retorno de quem lê, posso ficar com os depoimentos que me chegaram a partir do Histórias da Preta. Embora tenha quase 25 anos, ainda há frescor nessa recepção. Ele conversa com diferentes faixas de idade e é constante nos cursos de formação. Certa vez, fui parar numa pós em etnomatemática. Imagine todo mundo lendo um infantil. Há muitas e muitas histórias e algumas constatações. Por exemplo, nas escolas que acabo visitando pelo fato de o livro ter sido adotado, é recorrente o interesse espontâneo das crianças pela parte das histórias de candomblé, que sabemos ser, formalmente, um tema tabu.  

Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança? 

A Companhia sempre deu espaço para o local e trouxe também os de longe. Atualmente, incluiu autorias negras para uma geração - e o mercado vem respondendo positivamente. Essa grandeza da editora, por sua vez, também provocou debates a partir de equívocos que, talvez, em outras, passassem despercebidos. É o caso de Abecê da Liberdade. Se o livro promovia um argumento cultural, ele pode ser contestado, gerando aprendizado para todos os lados envolvidos na sua produção.

Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?

O literário se comunica com questões internas. As alianças entre linguagens podem acontecer ainda mais em tempos de exploração tecnológica. Mas o básico humano sempre será a experiência estética e o cantinho de elaboração de algum conteúdo que uma história pode oferecer. O que é importante é a oportunidade de conhecer esse sotaque tão humano, tão brasileiro ou tão preto, de contar uma história no papel, na tela ou no gogó. O desafio para os próximos trinta anos, como leitora, é conhecer boas histórias. É uma busca que não para. E, como escritora, é inventar algumas com o que aprendi com elas. Uma história bem contada desafia a contar outra. Acho que isso não acaba. E, para as editoras, a diversidade, seja para a forma ou para o conteúdo, é a riqueza que podem publicizar.

 

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