A história da designer, professora e ilustradora Graça Lima se entrelaça com a história da evolução da literatura infantil brasileira. Ao todo, já ilustrou mais de cem livros, no Brasil e no exterior. Não, você não leu errado: mais de cem livros. E muitos deles, premiados - nacional e internacionalmente. Não é à toa que é considerada uma das maiores ilustradoras brasileiras.
“[Nos últimos 30 anos,] saímos de um período em que nos espelhamos numa produção estrangeira, para uma procura de raízes culturais.”
(Graça Lima)
Pela Companhia das Letrinhas, lançou Vizinho, vizinha, em parceria com Mariana Massarani e Roger Mello, Creuza em Crise, de Silvana Tavano e Dez patinhos, de sua autoria, entre outras obras memoráveis. Aqui, ela relembra um pouco de como começou essa relação, a trajetória do livro infantil no Brasil e projeta também um pouco do que deve vir por aí, nos próximos anos.
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*Para comemorar os 30 anos da Companhia das Letrinhas (em 2022) e o Mês das Crianças, durante outubro você confere uma série de entrevistas exclusivas com grandes autores e ilustradores brasileiros que fazem parte dessa história, sejam nossos primeiros parceiros, sejam aqueles que ganharam os maiores prêmios de literatura infantil. Acompanhe tudo no Blog da Letrinhas, no site criado especialmente para essa festa e nas nossas redes sociais.
Como começou a sua relação com a Companhia das Letrinhas? Como foi fazer o primeiro livro para a editora e o que mais te marcou nesse processo?
Sou do Rio de Janeiro e, aqui, a Nova Fronteira iniciou uma trajetória de valorização do design gráfico do livro, o interesse em embalar com qualidade um conteúdo bem selecionado. A Companhia das Letras dá continuidade a esse pensamento e cria selos gráficos, completando o projeto de cada um de seus segmentos. Torna-se referência. Cria o selo Companhia das Letrinhas com o mesmo cuidado, tanto em seleção editorial, quanto em projetos gráficos. Inova e passa a ser referência de qualidade.
Trabalhar para a Companhia das Letras era o sonho de todos nós, designers e ilustradores. Conheci a Lili Schwarcz e foi um encantamento. Uma editora com uma visão de cultura ampla. Uma pessoa generosa e enorme em seu saber. E meu primeiro contato profissional com a editora foi através da Helen Nakao [produtora], por quem tenho o maior respeito e honra de ser parceira. Lá se vão 23 anos. Trabalhar com a Helen é certeza de que seu projeto será respeitado e o produto final terá qualidade garantida. Existe um diálogo entre a produção, editores e autores e este é o melhor dos mundos.
A Companhia das Letrinhas está completando 30 anos em 2022. Nessas três décadas, qual foi a transformação mais importante na literatura infantil, tanto em termos de texto como ilustração e produção gráfica, na sua avaliação, e por quê?
O mercado editorial passou por muitas mudanças nesses 30 anos. Nos anos 1990, tivemos uma reestruturação do livro ilustrado no Brasil. Saímos de um período em que nos espelhamos numa produção estrangeira, para uma procura de raízes culturais. O Brasil com sua diversidade, sua paleta de cor saturada, suas narrativas populares, suas festas, sabores, sua poética. Não deixamos de observar o mundo, mas passamos a nos desvendar para o mundo. Nossas particularidades.
As gráficas estavam mais bem aparelhadas e nossos livros com melhor qualidade. Os programas de compra governamentais impulsionaram a produção e fizeram chegar às escolas livros de qualidade. Esses mesmos programas atraíram editoras estrangeiras, que implantaram um modelo de competição desigual, já que entravam na concorrência com muitos selos, ocupando o espaço e sufocando editoras menores. O relacionamento entre criadores e o mercado, que construíram numa convivência parceira, também mudou, influenciado pela dinâmica dos grupos estrangeiros que aqui aportavam.
Tivemos crises econômicas, o mercado editorial sofreu grande impacto com o corte dos programas de compra governamentais e se reinventou, apesar de crises e pandemias. Temos, hoje, um número enorme de criadores do livro ilustrado. Somos reconhecidos pela nossa produção no mundo todo. Temos o primeiro HCA (Prêmio Hans Christian Andersen) nas Américas, ganho pelo trabalho do Roger Mello, que atraiu o interesse internacional para muitos outros criadores brasileiros.
Poderia citar três livros infantis que foram mais importantes ou marcantes para você nesses últimos 30 anos? Dos publicados pela Letrinhas, qual você citaria?
A Companhia sempre aceitou projetos sofisticados, que não passariam em outras editoras. Diria que todos os livros que são do Roger Mello, editados pela Companhia, foram marcantes: Meninos do Mangue, Carvoeirinhos, Todo Cuidado é Pouco, Enreduana, João por um fio, Zubair e os labirintos... São todos projetos elaborados e muito diferentes em suas particularidades. Poderia citar muitos outros. Os mais recentes, que constroem uma nova linha, como Mariana Zanetti, Kammal João, Irena Freitas, Larissa Ribeiro, Aline Abreu, Guilherme Karsten, Vanina… São tantos livros incríveis que é difícil citar três.
Qual acontecimento relacionado ao processo de criação e produção dos livros ou ao feedback e interação com os leitores ficou na sua memória ao longo desse tempo? Poderia contar um pouco qual história mais te marcou?
Olha, em Vizinho, Vizinha somos três ilustradores em uma narrativa. Sempre trouxe um retorno muito legal. Os leitores infantis ou adultos ficam muito interessados em falar da história e dos desenhos. Dos detalhes. Do corredor onde acontece algo em imagem, que não acontece no texto. Criar com três traços diferentes foi muito interessante e houve, o tempo todo, um diálogo com a produção da Helen, estruturando o projeto em si.
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Como você vê/avalia a participação da Companhia das Letrinhas no mercado editorial e na própria história da produção literária para a criança?
A Companhia procurou sofisticar a produção do livro ilustrado. Nos anos 1970, o livro para crianças passa por inovações. O livro de histórias que, normalmente, tinha um texto mais longo e elaborado era lido por leitores já plenos, muitas vezes, adultos lendo para iniciantes. Então, esse livro passa a ser produzido para o leitor iniciante, que começava no mundo das letras. Mudam os formatos, muda o papel para impressão, mudam as ilustrações, que são coloridas e sangradas em toda a narrativa. Às vezes, no início, cadernos alternados em cor e preto e branco, mas era um livro com mais apelo visual. Palavra e imagem num contexto pensado para interessar a leitura. A Ática foi importante nesse entendimento do leitor iniciante, consumidor. A Companhia entrou com ótimas escolhas de texto e de projeto de design gráfico, o que inclui a ilustração, e tem feito, desde então, uma grande diferença.
Além dos livros, as crianças têm várias fontes de entretenimento, como telas, vídeos, streamings, games. Como acha que a literatura infantil será nos próximos 30 anos? Qual o grande desafio que autores e leitores terão?
Acho que a pergunta seria, qual o grande desafio que enfrentaremos no descompasso da produção tecnológica acelerada, que gera uma sociedade egóica, refém de sua própria alienação? A literatura, assim como outros tipos de arte, é estruturante no crescimento psicológico, afetivo, estético. Ler é um ato silencioso de desprendimento. É um ato meditativo, onde saímos de um estado de mundo, para um estado de imersão. Ler também pode ser coletivo e gerar afetos.
Ler em família, por exemplo, é fundamental para crianças e mesmo para maiores ou adultos. Saraus são mais edificantes do que telas solitárias. Meus filhos tiveram o privilégio de participar de saraus por dez anos. Meu filho não gostava de ler porque era tarefa didática e não construção poética. Com os saraus, hoje, adulto, é um leitor que valoriza a experiência da leitura coletiva. O livro como objeto sofrerá mudanças, se tornará tela, virtual, holograma, realidade expandida, etc. Mas não importa o suporte e, sim, a leitura. Leitura variada e compartilhada para fugirmos da ansiedade coletiva de pertencimento vazio e efêmero.
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