Conhece a mala itinerante de livros ilustrados sobre refúgio?

10/02/2023

"Aqui estamos nós. Mas o que é aqui?". Essa é a pergunta contida no livro Barco de histórias (Companhia das Letrinhas, 2021), da autora canadense Kyo Maclear e da premiada ilustradora iraniana Rashin Kheiriyeh, obra que narra a imigração e o deslocamento forçado pela perspectiva das crianças. O premiado livro ilustrado é um dos 15 escolhidos para compor a chamada Mala dos Saberes Deslocados, uma mala com curadoria literária itinerante que vai percorrer escolas paulistanas para falar de refúgio, direitos humanos, e diversidade cultural dos povos em migração.

Um dos elementos mais comoventes do livro Barco de histórias é a referência da palavra “aqui” como um lugar que muda a todo instante, um não lugar que evoca a vida transitória das crianças refugiadas.

A iniciativa é do ACNUR Brasil - Agência da ONU para Refugiados, em parceria com o jornal infantojuvenil JOCA e a organização humanitária I Know My Rights (IKMR), além de diversas casas editoriais que apoiaram o projeto na seleção e cessão de acervo de obras infantis e infantojuvenis sobre o tema. A mala, que já esteve disponível para os leitores no Museu da Imigração, em São Paulo, durante a programação “Férias no Museu 2023”, agora parte rumo às escolas da cidade.

A ideia surgiu a partir de outro projeto de formação sobre o tema dos refugiados (Refúgios Humanos), junto a professores da rede pública de ensino fundamental de São Paulo, quando foi percebida a necessidade de uma ferramenta pedagógica que contemplasse a diversidade étnica dos estudantes, muitos deles de nacionalidades distintas.

"O nome do projeto deriva do fato de que o deslocamento forçado de pessoas, um fato trágico em si, traz aos países e locais de acolhida amplos saberes que podem ser incorporado no cotidiano das escolas, agregando conhecimentos, cultura e valores verdadeiramente humanos para a construção de sociedades pacíficas e solidárias às diferenças", explica Miguel Pachioni, assessor de comunicação do ACNUR Brasil.

A diversidade constrói o respeito e o potencial de sermos criativos. (Miguel Pachioni, assessor do ACNUR)

O conteúdo da Mala dos Saberes Deslocados oferece diferentes abordagens para as questões da população refugiada, e apresenta o tema às crianças pela mediação da linguagem literária

A violenta realidade das infâncias deslocadas

A iniciativa do ACNUR é um convite para que professores, educadores, mediadores de leitura, gestores de ensino e demais envolvidos na comunidade escolar abram espaço para conversar com as crianças sobre uma situação que já afetou dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo. De acordo com Pachioni, em 2022, por conta da continuidade e expansão de conflitos armados, perseguições e violação dos direitos humanos, o número de pessoas refugiadas já ultrapassa 100 milhões. Segundo o ACNUR, apenas em 2021, quando foi divulgada a edição mais recente do relatório "Refúgio em números", foram realizadas mais 29 mil solicitações da condição de refugiado no Brasil. 

Trata-se de um tema humanitário, que requer a colaboração de muitas partes envolvidas, é uma responsabilidade de todos, o que impulsiona o tema a ser discutido em diferentes esferas (pública, sociedade civil, academia, setor privado e instituições). (Miguel Pachioni, assessor do ACNUR)

Informações como essas relembram que “O que é aqui?”, a pergunta que abre este texto e aflige a personagem de Barco de histórias, é ainda uma questão sem resposta para milhões de pessoas sem endereço permanente, muitas delas crianças e adolescentes desacompanhados que são obrigados a deixar suas casas, famílias e país de origem para escapar de guerras e situações de calamidade social. 

Segundo o ACNUR, as crianças representam mais de 40% da população mundial refugiada em situação de migração compulsória. A atual Guerra da Ucrânia, por exemplo, até o momento já afetou mais de 2 milhões de crianças e adolescentes refugiados, que fugiram em busca de segurança além das fronteiras.

De acordo com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), outros 2,5 milhões de meninas e meninos foram deslocados dentro do país – isso significa que 60% das crianças e dos adolescentes da Ucrânia foram forçados a deixar suas casas, à medida que os ataques às áreas urbanas continuam.

Sensibilização para a causa 

Segundo Pachioni, o principal impacto esperado é criar espaços de educação mais inclusivos, abertos ao diálogo plural. Assim, será possível incentivar não apenas o entendimento dos motivos que fazem com que as pessoas tenham que se deslocar de forma forçada, mas também o apoio permanente para a acolhida e integração dessas pessoas.

Para além dos muros da escola, almejamos que essa proposta atinja as comunidades onde estão inseridas as escolas e as famílias destes alunos, destacando o potencial de sensibilização no longo prazo, atuando na juventude de agora. (Miguel Pachioni, assessor do ACNUR)

LEIA MAIS: Adriana Carranca: ‘As afegãs não são vítimas à espera de um príncipe. Elas são sobreviventes’

“A questão dos refugiados tem ganhado holofotes pelo mundo inteiro, mas o preconceito, a xenofobia, as fake news e o medo frequentemente atrapalham a discussão”, diz a apresentação do livro Valentes, de autoria de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza. Referência em literatura juvenil no tema refúgio, a obra também faz parte da Mala dos Saberes, ao lado de títulos premiados de autores contemporâneos nacionais e estrangeiros, como as brasileiras Marie Ange Bordas e Carolina Montenegro.

Além dos livros, o projeto oferece também um guia pedagógico gratuito. O intuito do material é instrumentalizar ainda mais os professores para discutir os livros na escola, e como mediá-los com crianças a partir dos 4 anos. "Pela diversidade proposta, buscamos destacar que o material pedagógico que acompanha a mala contemplasse a livre interpretação de cada um dos livros, favorecendo as discussões em grupo para que se busque um entendimento conjunto sobre o tema retratado. É uma forma de apresentar o tema do deslocamento forçado para que seja interpretado dentro da vivência e estrutura sociocultural de cada um/a das/os alunas/os", explica Miguel.

O livro Barco de histórias narra o percurso que famílias têm que fazer ao serem forçadas a sair do país em que nasceram em busca de refúgio

Literatura sobre refúgio: outra janela para o mundo

Os livros podem ser uma ponte para famílias e educadores discutirem a complexidade das infâncias em refúgio, desde a perspectiva da pluralidade cultural das milhões de crianças que vivem nessa situação, até as questões políticas e econômicas envolvidas na crise migratória global. Para Stéphanie Habrich, diretora do jornal JOCA, que apoiou o projeto, é importante conscientizar as crianças sobre realidades que não fazem parte do dia a dia delas. 

A criança é sujeito ativo da sociedade e, como cidadã, é essencial que elas entendam que são capazes de conhecer e mudar as múltiplas realidades do Brasil. (Stéphanie Habrich, fundadora e diretora executiva do Joca e do Tino Econômico)

Os livros da Mala dos Saberes são narrativas em que as crianças refugiadas assumem papel de protagonismo, e que apresentam a consciência infantil diante dessas histórias. Além de estimular a igualdade entre meninos e meninas desde a infância, é também uma forma potente de combater a desinformação e a discriminação. "As crianças conseguem viajar para o mundo de cada personagem retratado ali e, a partir daí, elas desenvolvem empatia e tato por essas narrativas. Contar histórias é poderoso e tem o grande potencial de mudar o mundo.", diz Stéphanie.

15 obras de literatura infantil que apresentam narrativas diversas para abordar com as crianças as complexidades do refúgio no mundo

A ideia da ação é que qualquer escola ou instituição educacional possa ter a mala em mãos para realizar atividades, apresentar a curadoria de livros às crianças e aumentar o repertório literário sobre o assunto. Os livros circularão gratuitamente por todos os Estados brasileiros, mediante disponibilidade de agenda. Funciona assim: os interessados devem enviar um e-mail para o endereço brabrpi@unhcr.org, identificando-se e solicitando participar do projeto. Depois, é só preencher o formulário que a instituição irá enviar para combinar os detalhes do envio. O projeto produziu três malas com conteúdos idênticos, para ampliar as possibilidades de circulação e otimizar o tempo de acesso. De acordo com o ACNUR, o prazo para que os livros cheguem ao solicitante é de no máximo quatro semanas. 

LEIA MAIS: O lugar das crianças refugiadas no Brasil

Outro elemento que amplia o valor cultural da Mala e aguça a curiosidade das crianças pelo conteúdo é que ela foi ilustrada pelo artista urbano Eduardo Kobra, internacionalmente conhecido pelos diversos murais que dão cor à capital paulista, e que recentemente pintou a sede da ONU, em Nova York. Em São Paulo, Kobra foi também o responsável pela arte da fachada do Museu da Imigração, no bairro da Moca, chamada "Janelas abertas para o mundo". O mural de mais de 700 metros quadrados apresenta oito migrantes inspirados em pessoas reais, uma celebração da diversidade cultural e étnica e um chamado pelos direitos humanos das pessoas em condição de deslocamento.

Confira a lista completa dos 15 livros que formam a Mala dos Saberes Deslocados

1. Barco de histórias, de Kyo Maclear e Rashin Kheiriyeh (Companhia das Letrinhas, 2021)

Por meio de ilustrações ricas em detalhes e uma narrativa poética, acompanhamos o percurso que famílias têm que fazer ao serem forçadas a sair do país em que nasceram em busca de refúgio. Elas vão embarcar em uma jornada repleta de obstáculos, mas também de novas histórias, que serão sementes de esperança em sua procura por um novo lar.
Com posfácio de Vivianne Reis, fundadora da I Know My Rights, organização humanitária que acolhe, cuida e protege crianças refugiadas no Brasil.

2. Valentes, histórias de pessoas refugiadas no Brasil, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza (Seguinte, 2020)

Com uma linguagem acessível, a obra também traça um panorama histórico do refúgio no Brasil e no mundo, apresentando conceitos e dados, e traz infográficos sobre os principais conflitos que geraram esses fluxos migratórios. O resultado é um material humano e sensível, que dá voz a quem precisa ser ouvido e celebra as diferenças que tornam nossa nação tão plural.

Capa do livro Valentes, de Aryane Cararo e Duda Porto de Souza, sobre refúgio e migração no Brasil

Para auxiliar na compreensão do assunto refúgio e combater a desinformação, as jornalistas Aryane Cararo e Duda Porto de Souza reuniram, no livro Valentes, histórias de vida de mais de quinze nacionalidades diferentes

3. Mustafá, de Marie-Louise Gay (Brinque-Book, 2019)

Capa do livro Mustafá, sobre refúgio e migração para crianças, de Marie-Louise Gay

Mustafá conta a história de um garoto que teve de sair de seu país com a família e aos poucos descobre seu novo lar. A Lua,as estações, as flores, os insetos e a música desse lugar ora lhe lembram a sua antiga terra, ora o encantam pelo que têm de diferente do que ele já conhece. Mesmo com esse mundo novo a descobrir, Mustafá sente-se invisível ali onde as pessoas falam uma língua que ele não entende. Mas, um dia, uma menina, com um gesto simples, irá mostrar a ele que a amizade, a gentileza e o afeto superam as fronteiras entre línguas e lugares.

4. Amal e a viagem mais importante de sua vida, de Carolina Montenegro e Renato Moriconi (Caixote, 2019)

Como seria para uma criança ter de cruzar sozinha mares e fronteiras? Para algumas crianças, uma possibilidade impensável. Para centenas de milhares de refugiados desacompanhados, uma dura realidade. O livro, que também existe em formato de aplicativo, conta com o apoio do ACNUR – Agência da ONU para Refugiados. Escrito pela correspondente Carolina Montenegro e com narrativa visual criada por Renato Moriconi, Amal é um livro que chama atenção para a realidade das crianças refugiadas.

5. A cruzada das crianças, de Bertold Brecht, ilustrado por Carme Solé Vendrell (Pulo do Gato, 2014)

Este comovente poema narrativo, do consagrado escritor alemão Bertolt Brecht, conta a história da árdua peregrinação de um grupo de crianças órfãs que foge dos horrores provocados pela Segunda Guerra Mundial e que, juntas, enfrentam dificuldades em busca de um lugar seguro onde refugiar-se. Sem perder a esperança e a solidariedade, os pequenos peregrinos lutam contra a fome, o frio, a miséria e o desamparo. O realismo dos desenhos em branco e preto, de traços rápidos, quase um esboço, reflete igualmente a crueza da guerra em oposição à fragilidade da infância. 

6. Dois meninos de Kakuma, de Marie Ange Bordas (Pulo do Gato, 2018)

Geedi e Deng são amigos inseparáveis. Geedi é Somali, Deng, sudanês. Companheiros de vida e sonhos, inquietações e dúvidas sobre o futuro, os dois vivem em Kakuma, um dos maiores campos de refugiados do mundo. Uma narrativa ficcional sobre a vida real, com fotoilustrações da própria autora, que coloca o leitor em contato com um tema urgente: as gerações de crianças que nascem e se tornam adultas em campos de refugiados prolongados. 

7. Para onde vamos, de Jairo Buitrago e Rafael Yockteng (Pulo do Gato, 2016)

Uma menina viaja com seu pai, mas não sabemos para onde vão. Durante a longa caminhada, ela vai contando os animais, as nuvens e as estrelas do céu. Também conta crianças e soldados. Às vezes, eles param em algum lugar, durante uns dias, pois o pai precisa ganhar dinheiro para prosseguirem.

8. Eloisa e os bichos, de Jairo Buitrago e Rafael Yockteng (Pulo do Gato, 2013)

Ao se mudar com o pai para uma nova cidade, Eloísa acaba por se defrontar com um mundo totalmente diferente do que conhecia, no qual se sente um bicho estranho. Com o passar do tempo, tudo o que a assustava começa a ser incorporado com naturalidade a sua rotina. Autor e ilustrador oferecem um terno e renovado olhar sobre problemas sociais, como o deslocamento, o respeito à diversidade e a recusa à intolerância.

9. Um outro país para Azzi, de Sarah Garland (Pulo do Gato, 2012)

Azzi e seus pais correm perigo e precisam fugir às pressas, deixando para trás sua casa, seus parentes, seus amigos, seus trabalhos e sua cultura. Ao embarcarem rumo a um país desconhecido, levam, além da pouca bagagem, a esperança de uma vida mais segura. Azzi terá de enfrentar a saudade que sente da avó e muitos desafios: aprender outra língua, compartilhar a preocupação dos pais, adaptar-se à nova casa e cidade, frequentar a nova escola e fazer novas amizades.

10. O Hati de Jean, de Cassiana Pizaia, Rima Awada Zahra e Rosi Vilas Boas (Editora do Brasil, 2020)

Jean e sua família tiveram que se separar: enquanto o pai buscava um lugar melhor para onde levá-los, Jean e a mãe tentavam sobreviver com o mínimo que podiam. A narrativa que se segue, através do olhar de um menino, mostra as dificuldades enfrentadas pela população haitiana para sobreviver após um fenômeno tão destrutivo como um terremoto. Não se trata apenas do relato de uma família do Haiti, mas a luta de toda uma população para recomeçar. Jean e seus pais rumam ao Brasil em busca de uma nova vida.

11. Ilegais, de Luiz Antonio Aguiar (Editora do Brasil, 2019)

O menino Jair tem um sonho: ser o melhor jogador de futebol. Mas os testes para alcançar esse sonho são pesados, cansativos e às vezes até injustos. Seu amigo Rildo também tem um sonho: uma vida nova nos Estados Unidos. Ele até já tem contato com um "coiote" e tenta convencer Jair de que essa é uma boa ideia. Ambos são jovens e têm pressa para alcançar o sucesso. Mas será que estão dispostos a pagar o preço? Tornar-se imigrante ilegal em um país estranho será mesmo a melhor saída? 

12. Layla, a menina síria, de Cassiana Pizaia, Rima Awada Zahra e Rosi Vilas Boas (Editora do Brasil, 2018)

Layla veio de Alepo, norte da Síria. Ela e sua família tiveram que deixar o país por conta da guerra, assim como quase todos os seus amigos e familiares, obrigados a procurar um lugar seguro para viver. No livro, Layla conta histórias do período conturbado que viveu até chegar ao Brasil. Por meio de sua narração, o leitor entrará em contato com um mundo completamente diferente, com outros cheiros, sabores, cores e dores. 

13. O sonho de Youssef, de Isabella Paglia (Editora do Brasil, 2018)

Youssef e Maryam são amigos desde sempre, mas a guerra os separa, e Maryam vai embora com a mãe em um barco. Youssef então desenha uma caravela na parede de sua casa: É o navio das descobertas que, um dia, o levará a Maryam novamente. Mesmo que tudo desmorone sob as bombas, o sonho de Youssef encontrará um jeito de se tornar realidade. Com uma linguagem poética e belas ilustrações, a obra traz um final aberto a interpretações, estimulando a imaginação do leitor. 

14. Origens, de Alexandre de Castro Gomes, André Kondo, Eliane Potiguara, Luis Eduardo Matta e Sonia Rosa (Editora do Brasil, 2019)

Pais, avós, bisavós, trisavós, tataravós. Todos nós temos uma história de origem, seja recente, seja tão antiga que só a memória que passa de uma geração a outra poderia preservar. Neste livro, o leitor mergulha no passado e na memória de cinco escritores que recriam literariamente as histórias de seus antepassados e as conexões com o presente, que nos unem e nos fazem humanos. Narrativas que celebram as raízes, a saudade, a diversidade e a igualdade.

15. Todo mundo junto, de Telma Guimarães e Evandro Marenda (Editora do Brasil 2018)

A turma do quinto ano tem quatro alunos novos, que vieram de outros países. A professora de Geografia está empenhada em ajudá-los na integração com a turma, mas não está sendo fácil: cada palavra pronunciada pelos novatos já é motivo de risadas dos colegas. Como ela pode resolver esse impasse? Este livro fala sobre imigração e também sobre as diferenças, o preconceito e a importância do respeito. 

 

(Texto: Renata Penzani)

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog