“Manhêee, cadê meu caderno?”.“Ô, paaai, onde tá minha meia?”. Quem nunca ouviu apelos como esses das crianças não conviveu com crianças. Brincadeiras (nada) à parte, a eterna arte de perder as coisas é o mote do novo livro do cartunista Caco Galhardo. Doutor Sumiço (Companhia das Letrinhas), escrito e ilustrado por ele, é a redenção total dos esquecidos de carteirinha, que agora podem ser super-heróis. São Longuinho nunca esteve tão ocupado. Paciência. Como escreveu o poeta Paulo Leminski, "distraídos venceremos".
Em sua estreia autoral na Companhia das Letrinhas – o autor tem outros dois livros voltados ao público infantil, Crésh! (Peirópolis, 2007) e Bilo (Giraffinha, 2019) – Galhardo lança mão de sua reconhecida habilidade de narrar com palavras, imagens e recursos gráficos para contar a história de Lico, um garoto que vive perdendo tudo.
O verdadeiro superpoder do Doutor Sumiço é tão humano que nem parece habilidade de herói: sumir com todas as coisas. Crianças e adultos podem se identificar com esse anti-herói que transforma a falha em algo extraordinário
Transformar o "erro" em qualidade
Um dia, Lico olha no espelho e tem uma epifania: se é ele mesmo quem está por trás de tantos desaparecimentos, isso só pode ser um superpoder. Então, ele decide investir na carreira de super-herói e usar seu dom para eliminar tudo o que há de chato, das aulas sem graça às conversas difíceis. Mas essa não seria uma história de humor se não tivesse aqui um grande porém. É esse porém que enriquece as possibilidades de interpretação do livro, que, se para a criança pode ser hilário, para os adultos pode também ampliar diversas questões filosóficas.
Quem já teve que dar três pulinhos depois de achar a chave do portão, provavelmente vai se identificar e comemorar a reaparição de uma porção de coisas perdidas. Afinal, se São Longuinho nem imagina que existe por aí um super-herói capaz de sumir com todas as coisas, imagina o trabalhão que o santo terá para encontrar não só tudo o que desapareceu, mas o próprio Doutor Sumiço. O livro guarda várias surpresas sobre o paradeiro disso tudo, e parece revelar o motivo por trás de tanto sumiço. Das crianças ao tataravô, passando pelo primo e a tia do vizinho, o caso é de avisar os distraídos de plantão, porque o mistério está por um triz.
Roteirista e dramaturgo, Caco Galhardo escreveu o longa-metragem Mulheres alteradas, adaptação da obra da argentina Maitena, que estreou no cinema em 2018. Sua adaptação de Dom Quixote foi uma das obras finalistas do Prêmio Jabuti 2014, na categoria ilustração
Contra toda unanimidade, a celebração da diferença
Ao descobrir que pode fazer sumir o que não gosta, Doutor Sumiço faz desaparecer o sorvete de flocos e precisa enfrentar a fúria dos fãs do sabor. Depois de sumir com quase tudo e quase todos, o que era para ser uma trajetória triunfante na luta contra a chatice do mundo acaba virando um aprendizado sobre as diferenças de cada um. Afinal, o que seria da banana se todo mundo gostasse de morango? Ou do frio no pescoço, se as blusas de gola alta fossem extintas? E as dores de barriga, o que fariam sem os remédios?
Recomendado para leitores a partir de seis anos, Doutor Sumiço apresenta uma narrativa de humor refinado, que pode arrancar gargalhadas da família toda enquanto diz umas boas verdades. Para além de sua articulação bem-humorada do jeito infantil de enxergar o mundo, o livro abre caminho para elaborações fundamentais do desenvolvimento da criança, como o ganho de maturidade emocional, ao entender que a vida é feita de gostos e desgostos, e a relação com o outro, que nem sempre vai querer as mesmas coisas que nós.
Cartunista, roteirista e dramaturgo, Galhardo é autor de diversas publicações pelos selos adultos do Grupo Companhia das Letras, como Cinco mil anos (2019), Baladas (2016), de Fabrício Corsaletti, e ilustrador de duas obras infantis pela Companhia das Letrinhas, As aventuras de Glauber e Hilda (2014), de Índigo, e João do Pum (2017), de Mario Prata.
Nesta entrevista ao Blog da Letrinhas, o autor fala sobre a elaboração do novo livro – que surgiu em um sonho e, segundo ele, reavivou as conexões com a literatura infantil –, comenta sobre o humor enquanto recurso narrativo e também de humanização, e fala de suas referências preferidas. Questionado sobre o que pediria para o Doutor Sumiço eliminar do mundo, Caco é categórico: os grupos de Whatsapp.
Confira a entrevista completa com Caco Galhardo!
O personagem principal de Doutor Sumiço foi inspirado em alguma experiência que você viveu quando criança ou com suas filhas?
Caco Galhardo – Desde pequeno, as coisas sumiam na casa dos meus pais. Eu vivia perdendo e procurando as coisas, às vezes não achava, desistia e, semanas depois, encontrava o capacete do Playmobil no fundo de uma gaveta, o livro de Geografia embaixo da cama. A vida inteira foi assim, e até hoje é um drama encontrar o controle da TV. Na hora de sair às pressas, já atrasado para um compromisso importante, cadê as chaves? Elas sempre somem nessa hora. Mas, para o Doutor Sumiço, isso não é um problema, pelo contrário, é um superpoder.
O livro faz essa inversão, o que era um problema vira um superpoder. Daí nasce toda a história de Lico, um menino que descobre que tem o poder de fazer as coisas desaparecerem. (Caco Gualhardo, cartunista e escritor)
Quais são para você os grandes temas desta história e como as crianças podem se relacionar com eles?
Caco – É uma história maluca e muito divertida que acaba tocando em várias questões que fazem a gente pensar. O que eu faria se pudesse fazer as coisas desaparecerem? O que acontece quando a gente ganha muito poder? Adianta a gente sumir com os nossos problemas? Tudo isso está na história, mas de um jeito que a gente nem percebe, acho que essa é uma das virtudes do livro.
Todo mundo sabe o que é perder algum objeto dentro de casa, todo mundo já teve que apelar a São Longuinho para achar uma boneca, um anel, o pé de um par de meias, então acho que todo mundo vai acabar se identificando com o Doutor Sumiço – as crianças principalmente, mas não só elas. (Caco Gualhardo, cartunista e escritor)
As crianças frequentemente adoram os anti-heróis, que têm superpoderes que no mundo real poderiam ser percebidos como algo errado. O Doutor Sumiço é um exemplo disso. Como você construiu o personagem?
Caco – O Doutor Sumiço me veio em um sonho. Acordei de manhã com a história toda na cabeça, liguei e contei para a minha mulher, que estava viajando, e ela adorou. Aí fui tomar café com a história na cabeça, já sabendo que seria um livro infantil. Então não teve muita construção, quer dizer, o personagem foi construído enquanto eu ainda estava dormindo! É claro que depois tem toda uma elaboração, uma afinação da história até chegar na versão final, mas ainda assim foi um processo muito intuitivo.
O livro dialoga com fenômenos do humor para crianças, como o Capitão Cueca e O Homem-Cão, do Dav Pilkey. São referências pra você? Que relações você vê com estes e outros clássicos do gênero?
Caco – Tenho duas filhas crescidas e quando elas eram pequenas, apesar da minha insistência, elas preferiam a Píppi Meia-Longa ao Capitão Cueca, então acabei não me familiarizando com os livros do Dav Pilkey, mas sei que são todos muito divertidos.
Eu, como cartunista, trago humor em tudo o que faço, então tem essa similaridade, livros para criança com uma boa dose de humor. Todo mundo gosta de se divertir com um bom livro. (Caco Gualhardo, cartunista e escritor)
Um dos pontos que chama atenção no livro é o ponto de virada do personagem. Como você pensou essa relação entre a idealização do Lico e a vida real?
Caco – O livro tem algumas boas surpresas reservadas. Uma delas é quando Lico se dá conta de que as coisas tomaram um rumo bem diferente do que ele imaginou. É algo que pode acontecer nas nossas vidas e aí temos de tomar uma decisão. Às vezes, a gente perde uma coisa, sai procurando e acaba encontrando outra coisa. É o caso do Lico.
Outra questão instigante é a identificação imediata do leitor com o Lico. Quem já perdeu ou vive perdendo as coisas agora pode ser super-herói. Brincadeiras à parte, a história articula uma valorização do erro, transformando o que seria uma falha em algo positivo. Qual a importância desse elemento da história para as crianças?
Caco – Às vezes a gente sofre muito com besteira. Perde a carteirinha da escola e fica transtornado. O humor se ocupa o tempo todo dos nossos defeitos, ele nos faz rir de nós mesmos e, com o riso, a gente às vezes até se reconcilia com eles, os nossos defeitos. Quando o humor é bem feito, é claro.
Dos seus primeiros livros infantis até aqui, mudou algo para você na hora de criar? Alguma concessão em termos de linguagem ou adequação ao público? E, pensando um pouco sobre esse rótulo “literatura infantil”, o que é para você uma história que as crianças vão gostar?
Caco – Tenho dois livros infantis que foram publicados há mais de dez anos (Crésh e Bilo), da época em que minhas filhas eram pequenas, fiz para elas. Depois que elas cresceram, achei que tinha perdido essa conexão com a literatura infantil, mas o que acabou acontecendo foi o oposto.
Em 2019, lancei Cinco mil anos, minha coletânea de 20 anos de trabalho em quadrinhos – também pela Companhia das Letras –, e sabia que ali se encerrava um ciclo na minha carreira. Eu só não sabia o que viria depois. Foi uma surpresa pra mim mesmo essa forte reconexão com a literatura infantil. Fiz o Doutor Sumiço com um enorme entusiasmo e acho que é um dos meus melhores trabalhos. Virão outros com certeza, me liguei no infantil!
Reavaliando a sua trajetória, o que você percebe de transformações na recepção das histórias, sobretudo em relação aos quadrinhos? O que faz desse gênero uma linguagem capaz de perpassar tantos públicos e faixas etárias diferentes?
Caco – Os quadrinhos são um jeito muito legal de contar histórias. Passei toda minha infância lendo os gibis do Mauricio de Sousa, e desde então nunca larguei os quadrinhos. Agora, por que a galera se liga tanto em quadrinhos? Deve ser porque é bom demais!
Quais temas e universos você ainda não explorou no seu trabalho e pretende elaborar em uma história futuramente? E será que vêm aí mais livros infantis?
Caco – Já estou pensando em mais infantis, sim, o Doutor Sumiço abriu minha porteira dos infantis. Quero escrever para as crianças.
O público infantil está muito mais adulto do que o público adulto, que por sua vez, está muito mais infantil do que o público infantil. As crianças estão mais inteligentes que os adultos, não resta dúvida, é só ver o jornal. (Caco Gualhardo, cartunista e escritor)
No livro, o Doutor Sumiço dá um fim nas blusas de gola apertada, nas aulas chatas e até no sorvete de flocos. O que você pediria para ele eliminar do mundo, sem pedir de volta?
Caco – Pediria para sumir com todos os grupos de whatsapp! E, se ele pudesse me trazer algo de volta, seriam todos os discos de vinil de que me livrei nos anos 90, quando tudo virou CD. Em retribuição, darei mil pulinhos!
(Texto: Renata Penzani)