Uma panela serve para... cozinhar. Sim, mas não apenas para isso. Se ampliarmos o olhar, as possibilidades são inúmeras: a frigideira vira raquete de tênis, a caçarola se transforma em tambor, o escorredor de macarrão em um belo chapéu. Com A panela, a autora e ilustradora Patricia Auerbach fecha a Coleção Objetos Brincantes - que virou coleção meio por acaso. Composta por O jornal, O lenço e A garrafa, a série tem por essência transformar objetos cotidianos em brinquedos, como fazem as crianças. Quase sempre criando objetos brincantes bem mais divertidos do que os brinquedos vendidos em lojas, com botões e luzes e barulhos, que não deixam espaço para imaginar.
“É a minha forma de fazer um convite para que as pessoas se joguem, brinquem, inventem, reinventem, recriem em cima daquele comecinho de narrativa que eu indiquei com as ilustrações”, diz Patricia. Para a autora, nenhum dos livros traz uma história pronta. Eles são como um fiozinho: basta puxar para desenrolar a meada e deixar a imaginação correr solta.
Uma panela vira objeto brincante no livro de Patricia Auerbach que fecha a coleção
Imaginação, aliás, nunca faltou à autora, nem na infância, nem na vida adulta. Logo depois de receber a primeira cópia de O lenço, o segundo da coleção, Patrícia mostrou à mãe. “Ela o folheou devagar, com muita atenção. Quando terminou, ela fechou a obra, botou-a assim perto do peito e, com os olhos cheios d'água, me disse: ‘Minha filha, é você”, relata.
E, de fato, a menina do lenço tem muito da Patrícia criança. "Eu adorava brincar com panos e toalhas. Meu banho demorava muito porque depois eu ficava fazendo com a toalha um pouco de tudo aquilo que aparece no livro. Mais tarde tive o privilégio de repetir todas essas brincadeiras com os meus filhos”, acrescenta.
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Caçarolas se transformam em instrumentos musicais na capa de A panela, de Patricia Auerbach
Reviver todas as brincadeiras, como mãe, fez com que a autora resgatasse a própria infância, só que sob um ponto de vista diferente. Mas a experiência da maternidade foi além: virou a vida de Patrícia “de ponta-cabeça”, no melhor sentido da expressão. A chegada dos pequenos - que hoje já são os adolescentes - Eduardo, 17 anos, e Rafael, 15 - foi o que a fez voltar sua carreira para a literatura infantil, uma possibilidade que sequer passava por sua cabeça antes do nascimento dos filhos.
Arquiteta de formação, ela trabalhava com publicidade, mas, com a maternidade, o desejo de ficar mais perto dos filhos bateu forte. Era isso que a fazia feliz. Decidiu cursar Pedagogia e, mais tarde, fez curso de ilustração de livros infantis. Nessa fase inicial, escreveu O jornal (2012) e Pequena grande Tina (2013), suas primeiras obras publicadas. Era apenas o começo de uma longa e divertida história, que conta com outros livros, como Eu também! (2021), A queda dos moais (2018), Patacoadas (2016) e muito mais, publicados pelos selos editoriais Companhia das Letrinhas, Brinque-Book e Escarlate.
Na entrevista abaixo, ela conta um pouco dessas transformações pessoais e profissionais e explica por que a infância a encanta tanto. Confira:
O livro A panela completou a coleção Objetos brincantes. Como foi a elaboração dessa obra e, de maneira mais geral, da coleção? De onde veio a inspiração?
Patricia Auerbach - O jornal foi meu primeiro livro. Eu não tinha ideia de que viriam outros volumes formando uma série, muito menos que consolidaria uma carreira como autora. Fui lançando as obras sem essa ideia de coleção, sem formato definido, por isso cada uma saiu de um jeito um pouquinho diferente... Com o tempo, percebemos que os livros eram usados como coleção tanto nas escolas, como pelos pais. Sempre que um era lido, se fazia referência aos outros.
Foi muito gostoso poder oficializar a coleção e chamá-la de Objetos brincantes. Era assim que eu me referia a essas obras há muitos anos. Encerrar com A panela, a primeira obra em que os personagens dos outros três volumes aparecem juntos, foi um jeito bonito de terminar. Teve um processo muito prazeroso de elaboração dos desenhos, do roteiro, das ilustrações... foi prazer do começo ao fim. Foi uma obra de uma autora e de uma ilustradora já mais madura, mais tranquila, mais confortável nesse lugar. Então, estou superfeliz com todo esse movimento!
Capa de O jornal, de Patrícia Auerbach: um jeito divertido de navegar nas notícias
A série traz um olhar para esses objetos brincantes. Hoje, com o advento das telas, você acha que as crianças têm deixado de olhar para as coisas simples, de um jeito inventivo e criativo? Elas estão se esquecendo de como lidar com o tédio?
Acho que sim. Vivemos em uma sociedade que parece ter a necessidade de preencher a rotina das crianças o tempo inteiro. Como consequência, elas ficam um pouco perdidas quando se deparam com tempo livre ou com o incerto, com o não planejado. Acho que essas obras entram nesse espaço, não só porque fazem essa provocação com objetos e brinquedos não estruturados, mas também pela quantidade de espaços em branco. É interessante perceber que crianças já acostumadas com o brincar livre, solto, não estruturado, quando pegam o livro se apropriam dele. Das ilustrações, das histórias... se jogam. Criam.
O contrário disso é o adulto ou a criança que não fica muito confortável nesse lugar de criar em cima do vazio. Eles se deparam com essas ilustrações e falam: “E agora? Como é que eu leio esse livro? Por onde eu começo?”. Eu costumo dizer que é uma leitura muito fácil para as crianças e muito difícil para os adultos, que esperam as coisas um pouco mais prontas. Eles abrem o livro e esperam que a história esteja lá, dada - e, nesse caso, não está. É a minha forma de fazer um convite para que as pessoas se joguem, brinquem, inventem, reinventem, recriem em cima daquele comecinho de narrativa que eu indiquei com as ilustrações.
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Como era a sua relação com os objetos na infância? O que tem da Patrícia criança nessa coleção sobre os objetos brincantes?
A Patricia criança tem muito a ver com esse livro. Aliás, não só a Patricia criança, mas a mãe, a adulta, a educadora. Tem muito delas nas páginas de toda essa coleção. Gosto muito de olhar para os objetos e pensar em possibilidades para eles. Adoro procurar rostos nas paisagens, inventar histórias para as pessoas com quem cruzo na rua, olhar para os objetos pensando o que mais eles poderiam ser: onde estão seus olhos, como se mexeriam se pudessem...
Quando eu lancei O lenço, lembro que a primeira pessoa que encontrei quando chegou a primeira cópia em casa foi a minha mãe. Mostrei o livro e ela folheou devagar, com atenção. Quando terminou, ela fechou a obra, botou assim perto do peito e, com os olhos cheios d'água, me disse: “Minha filha, é você”. E, de fato, a menina do lenço tem muito da Patrícia criança. Meu banho demorava muito porque depois eu ficava fazendo com a toalha um pouco de tudo aquilo que aparece no livro. Mais tarde tive o privilégio de repetir todas essas brincadeiras com os meus filhos. Quando eles eram bem pequenos, brincávamos muito com panos em casa. Foi assim que nasceu O lenço. É uma forma de resgate da minha infância, a partir do meu lugar de mãe.
A mãe de Patricia ficou emocionada ao folhear "O lenço", porque havia muito de sua filha menina ali
E qual era a sua relação com os livros na infância? Como isso se relaciona com a autora e ilustradora premiada que é hoje? Se imaginou fazendo isso algum dia?
Acho que nunca me permiti sonhar em ser autora e ilustradora. Eu gostava de desenhar, mas nunca desenhei muito quando criança. De vez em quando, olhava imagens de revista, fotos em branco e preto que eu achava bonitas, e gostava muito de copiá-las. Ficava “redesenhando”. Mas nunca fui dessas crianças que desenhavam o dia inteiro. Sempre tive muito medo. Só criei coragem de me arriscar no papel depois de adulta.
Minha relação com os livros na infância começou na adolescência, na verdade, quando eu comecei a ter um pouquinho mais de autonomia para escolher o que ia ler. Não tive uma infância cheia de livros infantis em casa, mas entrei pela porta das narrativas orais. Venho de uma família de grandes contadores de história. Histórias de antigamente fala bastante disso. São recontos das histórias que ouvi na infância e que me marcaram muito. São a parte mais forte da minha construção como uma apaixonada pela literatura, pela leitura, pelas histórias. Digo que entrei pela porta das histórias, não pela porta dos livros. Só depois de adolescente comecei a descobrir que os livros me entregavam aquele mesmo encantamento, aquele mesmo deslumbramento e aconchego.
Você fez arquitetura e pedagogia. Como a sua trajetória profissional foi se transformando ao longo do tempo?
A minha trajetória profissional é muito interessante. Quando saí da escola, a única certeza que eu tinha era de que eu queria ter ideias. Eu gostava de ser criativa. Quando fiz arquitetura, nem por minuto eu quis projetar casas, prédios e pontes. Imaginava que trabalharia com embalagens, com design. Entrei no mundo da publicidade e me encantei. Fiquei ali durante alguns anos e acho que foi superimportante para a minha carreira, porque a linguagem da propaganda é muito próxima da linguagem do livro ilustrado, na medida em que trabalha com imagens muito fortes e frases potentes e curtas. É uma relação entre imagem e palavra muito parecida. Quando decidi escrever, o trabalho com a imagem e com o texto veio quase naturalmente.
A pedagogia veio depois que eu tive filhos e descobri que queria trabalhar com a infância: aí minha vida virou de ponta-cabeça. Não só porque eu tinha dois pequenininhos em casa, mas porque voltei para a faculdade e me apaixonei por educação. Os primeiros livros começaram a sair durante o curso de pedagogia. Eu ficava ali destrinchando a infância e tendo ideias o tempo todo. E não parou mais. Venho caminhando sempre com um pé em cada canoa: um pedaço de mim está na literatura e o outro, na educação. Acredito que são coisas que fazem muito sentido juntas porque não existe educação sem literatura e também não existe leitura sem a educação. É sempre uma costura. Continuo estudando muito e trabalhando bastante nas duas frentes.
Agora, a Redelê, que é um projeto de formação de professores, uma comunidade de suporte, tem me enchido de alegria, apesar do desafio gigantesco de assumir esse novo lugar, de coordenar um projeto e uma equipe tão grandes. Mas estou muito feliz por poder fazer isso e ajudar a chegar um pouco mais longe com o trabalho de formação de professores que eu já vinha fazendo.
Você desenvolveu muitos projetos riquíssimos relacionados à infância. Por que essa fase lhe encanta tanto?
A minha relação com a infância é sempre de deslumbramento. Me alimento muito do encantamento das crianças diante da novidade, sobretudo os bem pequenininhos. Tenho um olhar muito afetuoso para tudo que diz respeito à infância e sou muito grata por tudo que a infância me trouxe. Não só a minha experiência como criança, mas também como mãe, como educadora, como formadora de educadores. Isso me alimenta todos os dias e me desafia a pensar mais, a querer mais, a buscar entender cada vez mais e a pensar em como ajudar essas infâncias todas pelo país. Minha ligação com esse tema é muito afetiva e, ao mesmo tempo, foi se transformando em uma relação desafiadora, de uma responsabilidade muito grande.
Tive o privilégio de ter uma infância com muito conforto e uma boa educação, o que nem todo mundo tem. Então, me sinto bastante responsável por fazer a minha parte, para tentar levar essas possibilidades a outras crianças, para que todas tenham acesso a uma educação de qualidade. Só ela oferece a possibilidade de ter escolhas na vida. E eu prezo muito por isso.
A autora e ilustradora Patricia Auerbach trabalhou com publicidade antes de começar a criar livros infantis
Como foi o início de sua produção literária infantil?
Foi quando meus filhos eram pequenos. Nunca me imaginei trabalhando com isso. Fui tomada de surpresa e decidi que era isso que eu queria fazer da vida, porque era perto das crianças que eu me sentia bem. A produção começou ali. Durante o curso de pedagogia, me inscrevi em um curso que o Odilon [Moraes] dava, junto com o Fernando Vilela. Era um curso de ilustração para livros infantis. Decidi que eu queria desenhar e pensar sobre isso. Eu estava muito encantada com os livros infantis que conheci por conta dos meus filhos, enquanto lia para eles. Durante o curso, nasceram O jornal e Pequena grande Tina, que foram os primeiros livros publicados, um pela Brinque-Book e outro pela Companhia das Letrinhas. Foi assim que começou, uma mistura da Patrícia pedagoga e da Patrícia mãe, com um empurrãozinho do curso do Fernando e do Odilon.
Então, a maternidade é uma grande influência para o seu trabalho como autora e ilustradora…
A maternidade influencia bastante, sempre. Influenciava muito mais quando eles eram pequenos. Hoje, meus filhos são adolescentes, mas ainda não consigo me imaginar escrevendo para essa faixa etária. Estou achando uma delícia ser mãe de adolescente, estou adorando, mas ainda não fui fisgada pela vontade de escrever pensando neles. Acho que ainda tenho muito para dizer sobre as questões desse comecinho da infância.
O que mais costuma te inspirar nos projetos e, sobretudo, na criação dos livros? Como é seu processo criativo?
Caótico. Normalmente, trabalho em muitas obras ao mesmo tempo. Eu tenho, sei lá, mais de vinte projetos abertos no meu computador. Dependendo da época, vou me aprofundando em um, evoluindo em outro, até que chega um momento em que me encanto por algum deles, normalmente por mais de dois ou três. Aí me aprofundo e vou até o final. Mas, no começo, são meses, às vezes, anos, que eles ficam ali, meio que sendo cozidos, sabe?
Eu gosto de fazer referência à massa de pão. Você mistura tudo e deixa ali para crescer. É isso que eu faço. Deixo ali no computador, esperando para ver se cresce. De tempos em tempos, vou lá, olho, vejo o que tem ali de rascunho, de ideias. Então, fecho de novo, abro, mexo um pouquinho, fecho e vou esperando para ver se cresce. Quando, em algum dia, em alguma hora, aquilo faz sentido e me toca de verdade.
Mas é sempre um processo caótico. Não me lembro de ter trabalhado em uma obra só durante um período longo. Preciso desse tempo de descanso e de afastamento, até que eu considere a obra pronta para ser apresentada para alguém, para sair do meu computador, para começar a ilustrar. Geralmente, começo pelo texto. Quando escrevo, já sei qual é a imagem, vou pensando nela e deixo isso indicado, mas só começo quanto o texto está mais maduro.
Capa de Pequena grande Tina, um dos primeiros livros de Patricia, com Ronaldo Fraga
Que outros autores e livros te inspiram?
São muitos e eles mudam de tempos em tempos. O próprio Odilon Moraes, com quem já tive o privilégio de trabalhar, tem uma delicadeza de traço que me inspira. A Suzy Lee, claro, não dá para deixar de mencionar. Foi muito transformador quando conheci Espelho, realmente me marcou demais. São muitos autores, até de livros direcionados ao público adulto, mas mudam a cada mês, a cada ano... difícil elencar.
Você se lembra de ter recebido feedbacks especiais de leitores?
Lembro de alguns. O que eu mais gosto é quando encontro com os alunos, às vezes, visitando escolas ou em algum evento, e, de repente, eles abrem um olhão, aquele olhão de encantamento. Às vezes, estou contando a história, olho para eles e vejo que aquilo está transbordando. O melhor retorno é esse: quando eu estou ali vendo o livro acontecer, vendo a história tocar as outras pessoas, ao vivo. Gosto muito do contato com as crianças.
Tive uma experiência no ano passado que me marcou demais. Primeiro, conversei com as crianças de uma escola, que eram bem pequenas. Depois, fizemos um trabalho com carvão em um papel enorme, colocado no chão de uma quadra. As crianças se sujaram todas. Foi um privilégio enorme viver a forma como aquelas crianças se jogaram nas histórias, na brincadeira e, depois, no carvão - literalmente. Encantamento puro.
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