Palavra bem chegada no tempero

18/10/2023

Por Tiago de Melo Andrade

Dá licença para eu contar um pouco como foi o processo de escrever o livro Samambaia Canibal: um astuciado antropófago-tropicalista. Não é segredo para quem adora livros: quando a gente lê algo gostoso, sente uma vontade danada de inventar outras histórias por cima daquela que está lendo, misturando as coisas que são nossas com as coisas que o livro nos trouxe, ou seja, as nossas referências devorando a novidade, para depois, dentro de nós, ver surgir algo de novo.

Ilustração de Samambaia canibal: um astuciado antropófago-tropicalista de Tiago de Melo Andrade

A essa dinâmica interna, que acontece quando consumimos cultura, o Modernismo brasileiro chamou de Antropofagia. Inclusive, aqui por essas bandas, bem por debaixo da linha do equador, nem é considerado pecado, ou falta de etiqueta, comer de tudo misturado, por motivos de não sermos dados a purezas e gostarmos muito é de fazer mistura: salada de frutas, paçoca de pilão, farofa, feijoada. E ainda: as etiquetas por aqui mandam mesmo é falar com a boca cheia de histórias: inventar, contar, recontar, refundir... para não contrariar nosso natural miscigenado. O brasileiro, se a gente reparar bem, é uma intertextualidade de carne e osso.

Eu não coloco dúvida que o caldeirão cultural é a maior fortuna que um país pode ter, exibir e esfregar no focinho dos outros. Pois esse negócio de complexo de vira-lata, a gente pica com salsinha e faz estalgonofe com maçotomate do elefante. Assim, imbuído pelo espírito da mistureba antropófaga, tão habitué no cenário cultural brasileiro, que foram surgindo as primeiras ideias que moveram os processos criativos constituintes do livro Samambaia Canibal: um astuciado antropófago-tropicalista. Uma aventura tropical na qual, as gentes, a metrópole, a tecnologia, o capital, o mundo e suas influências, inclusive as que oprimem, são impiedosamente devorados por uma samambaia carnívora cuja a pujança e força vem de uma raiz  profunda e ramificada: a diversidade cultural brasileira que cria e multiplica conexões entre literatura, artes-plásticas, cinema, teatro, música... Tudo sem exceção se conecta e cria novas vertentes, bifurcações e ramos que se alastram  formando a floresta onde nossas mentes coabitam, e na qual nada escapa de virar comida e, ao mesmo tempo, ser o dente que mastiga.

Ao menos foi isso que o povo lá de casa lecionou, despretensiosamente, ao longo da minha vida e ao redor de uma cesta de pão de queijo, com todo mundo falando alto e ao mesmo tempo. Hoje eu tento escrever meus livros reproduzindo o ambiente barulhento da casa da minha vovozinha antropófaga: múltiplas vozes, sotaques, gírias e gargalhadas ao fundo. Um brigando para colocar sertanejo no som, outra quer MPB. Dói! Um tapinha não dói! Mas no final ninguém liga pra intriga, pois lá em casa todo mundo é bamba. 

Capa de Samambaia canibal: um astuciado antropófago-tropicalista

Não escondo o orgulho de descender de um povo que conta história com prazer em debulhar um astuciado inteiro, sem deixar uma semente na espiga, semeando.  Esse bolo de coisas, que somos capazes de lembrar e reunir para inventar, sempre me deixou fascinado. Quem me ensinou que a gente pode botar no papel, a polifonia nacional e escrever um belo livro, foi o Mário de Andrade. Quando li Macunaíma a primeira vez, tomei um susto muito grande, porque parecia até que o povo lá de casa tinha colaborado: aquele ritmo era tão parecido com o da casa de vó, uma história cheia de dobrinhas, encaixes, camadas, coisas escondidas, referências múltiplas...  Depois dessa leitura, peguei gosto nesse cultivo mimoso , de mil folhas!

Hoje em dia, mantenho no batente da janela da cozinha, um vasinho de barro com um pé de floresta tropical plantado, verdejante, que pretendo seguir usando para tempero do que escrevo. Ainda que eu, como bom antropófago, não recuse o que vem de fora, não adianta, a comida fica mais gostosa quando o tempero é de casa.  

 

***

Tiago de Melo Andrade nasceu em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, mas se criou no interior de Minas Gerais - onde vive até hoje. Já publicou mais de 40 livros, especialmente para o público jovem, e em 2001 ganhou o Jabuti com Caixa Preta. Suas obras receberam outras distinções importantes como os selos Altamente Recomendável da FNLIJ e a Distinção Cátedra Unesco.

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