De novo: por que as crianças gostam tanto de repetições?

18/01/2024

Por mais que você busque variar o repertório de histórias, seu filho está naquela fase em que só quer saber do mesmo livro, dia após dia? Você não está só. Além de ser normal, o gosto pelas repetições faz parte da infância e é fundamental para o desenvolvimento. 

Muitas vezes, a preferência das crianças - sobretudo das menores - ainda é por livros que tenham repetições na estrutura, nas palavras e até nas ilustrações. Não é a toa que as obras de Susanne Strasser, autora de  Posso ficar no meio? (Companhia das Letrinhas, 2023), Muito cansado e bem acordado (Companhia das Letrinhas, 2017), Bem lá no alto (Companhia das Letrinhas, 2016), entre outros, acabam ficando entre as favoritas de bebês e crianças pequenas. Elas são bons exemplos de histórias que brincam com repetições e ainda trazem algo que fascina os pequenos: bichos! Para os mais crescidos, Carona (Companhia das Letrinhas, 2020), de Guilherme Karsten, é outro exemplo a ser citado. Essas histórias têm em comum partirem de um acontecimento trivial, que se repete acrescentando ou alternando personagens, repetidamente nomeados no texto - trazendo surpresa dentro da previsbilidade criada. Já em Eu grande, você pequenininho, de Lilli L’Arronge (Companhia das Letrinhas), a repetição acontece no intercalar das ações do pai, grande, e do filho, pequeninho, criando um paralelo cheio de ritmo, que brinca com opostos.

Mas o texto não é o único recurso capaz de criar repetições. No premiado Bárbaro (Companhia das Letrinhas, 2013), Renato Moriconi usa a repetição na ilustração. Em cada página, o valente guerreiro, em cima do seu cavalo, enfrenta vários obstáculos em sua jornada de aventuras, subindo e descendo... mas o leitor só entende os movimentos no final, quando o desfecho inusitado acontece em um parque de diversões.

Repetição: em

Repetição: em Carona, de Guilherme Karsten, as crianças encontram repetições em uma história cumulativa

Mas, afinal, por que as repetições agradam tanto? “As crianças gostam de ouvir as mesmas histórias, escutar as mesmas músicas, ler os mesmos livros, assistir aos mesmos filmes e desenhos porque, repetindo, elas sabem o que vai acontecer. Essa sensação de previsibilidade faz com que se sintam mais seguras e confortáveis”, explica a pediatra Ana Paula Scoleze, chefe do Ambulatório de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento e do Ambulatório Geral de Crianças com Condições Crônicas e Complexas no Instituto da Criança e do Adolescente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (SP). “Além disso, como a criança sabe o que vai acontecer a seguir, por exemplo, a fala de determinado personagem, sente que domina o assunto e que está aprendendo”, acrescenta.

E não é só isso. Cada vez que determinada situação se repete, não é mais uma total novidade para o cérebro, que, então, consegue observar outros detalhes, ampliando e aprofundando o conhecimento e a aprendizagem sobre determinada situação. Conforme a criança sente que domina o assunto, se abre para novas experiências e vai desenvolvendo a sua autonomia. “As repetições são muito importantes para o desenvolvimento infantil, principalmente em relação aos aspectos emocionais, cognitivos e à capacidade de memorização”, afirma. Segundo a médica, nesse processo, formam-se novas sinapses, que são conexões entre as células neurais, importantes na construção da arquitetura cerebral. 

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Vale a pena ver de novo?

O aprendizado no cérebro se dá pela repetição. Quanto mais repetimos detemrinado comportamento, mais fortalecemos nossas sinapses. Para a psicóloga Nathalia Heringer, especialista em Neuropsicologia e Terapia Cognitivo Comportamental do Instituto de Neuropsicologia e Psicologia Infantil (INPI), é como se nosso cérebro fosse uma floresta. “Se você passa por um caminho repetidamente, você ‘marca’ a estrada. Se essa via é importante, você a asfalta para ganhar agilidade e velocidade. De forma análoga, é isso que acontece quando repetimos uma ação”, compara. Isso significa que quando essa “estrada é asfaltada”, as informações podem ser acessadas de forma rápida. “Esse processo acontece em todas as idades, mas a infância é o momento de construir habilidades e o processo exige tempo, esforço e repetição, principalmente quando se trata de habilidades complexas e acadêmicas”, aponta.

Carona: O surfista vai encontrando vários personagens no caminho até a praia

Carona: O surfista vai encontrando vários personagens no caminho até a praia

O fortalecimento e a construção da memória também são favorecidos pelas repetições. Para a psicóloga Ariádny Abbud, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental com Crianças, também no INPI, é como o processo de aprender a dirigir. “Quando estamos aprendendo, precisamos guardar todas as regras na memória operacional. Então, você se esforça para memorizar que precisa soltar a embreagem devagar, enquanto pisa lentamente no acelerador, por exemplo”, diz ela. “Depois de meses dirigindo, você passa a fazer isso de forma automática, sem nem perceber. A fluência nas habilidades vem das repetições”, completa.

Tanto o estímulo às sinapses como o fortalecimento da memória são particularmente importantes durante o período pré-escolar, entre dois e seis anos de idade. “Nessa fase, a criança já tem um maior domínio da linguagem e está desenvolvendo a imaginação, a memória, a autonomia e as funções executivas”, diz a pediatra Ana Paula. É uma ótima forma de preparar o terreno, já que as funções executivas - ou seja, a capacidade de parar, pensar, prestar atenção e ter flexibilidade mental - serão fundamentais para o desenvolvimento cognitivo, que virá na fase escolar.

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As repetições também têm um papel significativo do ponto de vista emocional. “Além de trazer a sensação de conforto e segurança, elas estão relacionadas ao desenvolvimento da memória afetiva, isto é, permitem que a criança volte a ter as sensações boas e afetivas que sentiu da primeira vez que viu determinado filme ou ouviu determinada história”, explica a pediatra. 

Repetir e inventar

Embora motivo não falte para que as crianças adorem as leituras repetidas, os adultos, muitas vezes, acabam achando maçante ler a mesma história 527 mil vezes. Mas não precisa ser assim. “Os livros de repetição e acumulação, por exemplo, têm certa previsibilidade: sabemos o que vai acontecer, mas existe esse espaço da criatividade, porque o bebê ou a criança não sabe o ‘como’”, ressalta a psicóloga Cássia Bittens, mestra em Literatura e Crítica Literária e idealizadora do projeto Literatura de Berço. Para ela, é possível usar a imaginação, criando hipóteses dentro dessa segurança que as repetições oferecem. “Há esse previsibilidade da ação. Tem sempre um que chega, um que sai, a palavra que se repete, a estrutura muda, a última palavra muda, ou a primeira palavra muda… Isso mostra um respeito à criança, porque ela sabe que aquela estrutura vai se repetir. Mas, a partir disso, podemos exercitar os primórdios da imaginação”, aponta ela. 

Em Bárbaro, o que se repete é a ilustração

Em Bárbaro, o que se repete é o sobe e desce do pequeno cavaleiro, registrado nas ilustrações

A dica de Cássia para a mediação de uma leitura de repetição é não apenas ler, mas “ouvir” o que a criança ou o bebê "fala". “Então, você pode ir respondendo de acordo com o que a criança ouve e reage. Um diálogo vai se estabelecendo nessa leitura”, diz. Desta forma, embora seja uma história repetida, cada vez que você lê, é um momento diferente. 

Quando a repetição vira preocupação

Apesar de ser normal, esperado e até positivo que a criança queira ouvir as mesmas histórias muitas vezes, é importante prestar atenção, em algumas situações. Quando a criança se demonstra muito rígida com as rotinas, ou seja, quando parece incapaz de aceitar pequenas mudanças no que está acostumada a ouvir, ler, assistir ou fazer. “Quando o comportamento é muito inflexível ou quando essa necessidade de repetição se mantém depois dos sete ou oito anos de idade, é importante buscar um especialista para uma avaliação mais detalhada”, recomenda Ana Paula.

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Para as psicólogas Ariádny e Nathalia, uma criança com baixo repertório de habilidades básicas por ter um padrão restrito e repetitivo de ações é diferente de quando a repetição acontece justamente para a aquisição de novas habilidades. Isso também é um ponto de atenção. “Uma criança que brinca apenas de uma forma, sem variar ações e interesses precisa ser avaliada”, sugerem. “A repetição de comportamentos sem função não faz parte da repetição própria do aprendizado e pode, sim, ser um sinal de alerta para a avaliação de transtorno do neurodesenvolvimento”, indicam.

Histórias para ler uma, duas ou 25 (mil) vezes 

Se seu filho está na fase de amar repetições, aproveite essa seleção para vocês lerem juntos quantas vezes quiserem:

Bem lá no alto, Susanne Strasser (Companhia das Letrinhas)

Bem lá no alto

Neste livro, um urso avista um bolo. Ele parece muito apetitoso. Mas, puxa, está bem lá no alto... Como o urso vai conseguir pegá-lo? Uma história para crianças bem pequenas em que fica claro o quanto é bom poder contar com a ajuda dos amigos - e se surpreender com acontecimentos inesperados.

Eu grande, você pequenininho, Lilli L’Arronge (Companhia das Letrinhas)

Eu grande, você pequenininho

Este livro conta a história da relação carinhosa de um pai e seu filhinho. "Filhinho" porque é assim que o pai o vê: seu pequenininho. Com divertidas ilustrações e texto cadenciado, os leitores vão perceber junto com esses dois que o carinho de pai para filho é sempre imenso.

Carona, Guilherme Karsten (Companhia das Letrinhas)

Carona

Um surfista está pronto para ir à praia pegar umas ondas e aproveitar o dia de sol. Mas o que ele não imaginava é que a grande aventura seria o trajeto até lá - com um novo passageiro a cada parada. 

Uma planta muito faminta, Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

Uma planta muito faminta

Num certo dia de sol, uma planta carnívora nasceu. Ela era pequena e delicada, e estava com muita fome. Então passou a engolir todo tipo de criatura: lagarta, borboleta, coelho, vaca paraquedista, mamute voador... Quanto mais a planta comia, maior ficava, e nada nem ninguém parecia capaz de detê-la. Será mesmo?

Bárbaro, Renato Moriconi (Companhia das Letrinhas)

Bárbaro, Renato Moriconi

Era uma vez um bravo guerreiro que montou em seu lindo cavalo e saiu em uma perigosíssima jornada. Ele lutou contra serpentes e gigantes de um olho só, sobreviveu a flechadas, enfrentou leões monstruosos e plantas carnívoras, até que... Ué, ele de repente parou no meio do caminho e começou a chorar!

É preciso soltar o Gaspar!, Geoffroy de Pennart (Brinque Book)

É preciso soltaro Gaspar!

Gaspar, o cabrito, ficou trancado na despensa e o serralheiro não pode acudir. Quem será que irá ajudar Dona Cabra, sua mãe, a tirá-lo de lá? Nesta divertida história cumulativa, o autor francês Geoffroy de Pennart traz novamente personagens de diferentes contos de fada em novas situações.

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