Os sapinhos Beto e Gilberto mal conseguem conter a alegria quando percebem que tiveram uma ideia ge-ni-al para uma história na nova aventura do Clube do Pepezinho - Colaborações (Companhia das Letrinhas, 2024), de Dav Pilkey. A dupla inventa um personagem chamado Sapozilla, que surge quando o corpo de um sapo é jogado no lixo de um laboratório, com uma fórmula do crescimento e lixo atômico. A criação parece mesmo incrível! Exceto pelo fato de que… Não era, exatamente, muito original.
O personagem e o enredo acabam ficando bem parecidos com o famoso monstro de origem japonesa famoso por destruir metrópoles, o Godzilla. Molly, uma das irmãs dos autores, é quem lembra que eles não podem “roubar” a ideia de outra pessoa porque isso é contra a lei. Mas logo Pepezinho dá uma ideia para resolver a questão: e se, em vez de “roubar a ideia”, eles se inspirassem nela para fazer uma paródia? Isso, sim, estaria permitido.
Mas... por que será que copiar uma ideia é crime? E o que diferencia uma imitação de uma paródia?
Capa da nova aventura do Clube do Pepezinho - Colaborações, de Dav Pilkey
Para entender um pouco melhor como todo esse universo de leis funciona - e evitar que mais pessoas caiam na cilada em que quase caíram Beto e Gilberto -, conversamos com Ana Clara Ribeiro, que é escritora e também advogada de Propriedade Intelectual da Baril Advogados, em Curitiba (PR).
“Roubar uma ideia”, como diz Molly no livro, é um crime que tem nome: plágio. O plágio é definido como a apropriação indevida de uma obra intelectual, por meio da atribuição de autoria ao plagiador. Traduzindo: é o que acontece quando uma pessoa diz que inventou uma obra que, na verdade, copiou de outra pessoa, seja parcial ou integralmente. Ana Clara ressalta que “o plágio é uma violação de direito autoral”, um conceito usado para se referir a uma série de direitos relacionados à proteção de obras intelectuais, como filmes, livros, músicas, textos e ilustrações.
Dentro dos direitos autorais estão tanto os direitos morais quanto os direitos patromoniais. Na prática, direito moral é o direito de alguém ser indicado como autor de sua obra e poder ter o “controle” sobre ela. E direito patrimonial é o direito do autor autorizar ou não o uso de seus trabalhos e determinar as condições para isso aconteça. A lei de direitos autorais no Brasil também protege a integridade da obra. Isso quer dizer que "o autor é o único que pode modificá-la ou autorizar que outros a modifiquem”, explica a advogada.
Os limites entre imitação e invenção - que nem sempre são claros
A diferença entre paródia e plágio está basicamente na intenção - mas também na execução. "A paródia tem uma finalidade cômica, serve para fazer as pessoas analisarem a obra parodiada por um outro viés. Se a paródia apenas reproduz elementos originais da obra sem grandes mudanças substanciais, ela não é paródia, é uma violação do direito do autor da obra original", explica a advogada. A Lei de Direitos Autorais autoriza a paródia, desde que ela não seja uma reprodução da obra original, e desde que não cause descrédito a ela. "Esses requisitos são importantes porque, na prática, às vezes é difícil diferenciar uma paródia de um plágio", completa.
O personagem Sapozilla, inventado por Beto e Gilberto, em Clube do Pepezinho - Colaborações. Lembra alguém?
Mas nem toda ideia é automaticamente protegida pela lei de direitos autorais. Informações ou ideias de uso comum não estão inclusas na lei. “Só quando a exteriorização dessa ideia é feita com certa originalidade”, aponta Ana Clara. Para citar um exemplo, vamos pensar em quantos livros e contos infantis têm animais como personagens principais. "Esse conceito não é exatamente original e não é protegível por direitos autorais. Mas, a partir do momento em que desenvolvo melhor um personagem, crio uma história para ele e escrevo um livro contando essa história, eu passo a ser titular de direitos autorais sobre esse livro e esse personagem”, detalha a advogada.
Desde que a ideia seja original e específica, as obras nem precisam ser registradas para que os direitos autorais se apliquem - embora isso facilite o processo, caso haja necessidade de comprovar a anterioridade dessa criação, segundo a especialista.
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O autor (quase) nunca morre
Ainda que Godzilla tenha aparecido pela primeira vez em um filme de 1954, Beto e Gilberto não poderiam copiar o personagem sem autorização. Na lei brasileira, os direitos autorais do criador do monstro ainda estariam protegidos. Por aqui, os direitos da obra permanecem com o autor por 70 anos, que começam a ser contados a partir de seu falecimento. Mas há alguns detalhes que incluenciam nesse prazo.
Primeiro, é importante saber que esses 70 anos valem para à exploração comercial da obra - os direitos patrimoniais que falamos mais acima, lembra? Já os direitos morais nunca prescrevem. Isto é, a autoria pode - e deve - ser sempre reconhecida. “Quando o autor falece, os seus sucessores legais podem administrar os direitos patrimoniais até a obra entrar em domínio público [em 70 anos], e podem administrar alguns dos seus direitos morais, independentemente de prazo”, explica a advogada. Quase dá para dizer que quando você inventa uma história, pode permanecer “vivo” por muitas e muitas décadas. Pelo menos, aos olhos da lei.
Só a lei não basta - é preciso aprender sobre direitos
Em um mundo ideal, todo mundo deveria saber que “roubar” uma ideia de outra pessoa não é uma atitude bacana e honesta. Mas especialmente em tempos de internet - quando o compartilhamento e a exposição de textos, músicas, imagens e produções audiovisuais foi elevado a outro nível - seria interessante que todos fossem ensinados, desde cedo, sobre o conceito de propriedade intelectual. Para a professora Antonia Burke, líder do programa socioemocional Raízes e colunista de educação da revista Vida Simples, esse é um assunto que precisa fazer parte do aprendizado social e escolar. “Alguns educadores tendem a agir como se esse conhecimento [sobre propriedade intelectual] já fosse intuitivo para os estudantes, mas a escola precisa ensinar o respeito aos direitos do autor, sobretudo na era digital”, explica.
Para ela, é importante que essas questões sejam abordadas de forma clara e objetiva com crianças e jovens, explicando os princípios éticos envolvidos, de acordo, é claro, com a idade e a capacidade de comprensão de cada aluno. “É possível fazer analogias com o mundo físico, explicando que, assim como não podemos pegar algo que pertence a outra pessoa sem permissão, também não podemos usar obras sem dar crédito aos seus criadores. É preciso ensinar a elaborar um trabalho, por exemplo, citando e verificando as fontes”, diz ela.
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Exemplos simples e claros funcionam muito bem para ajudar as crianças menores a compreenderem esse conceito. Contar histórias continua sendo um recurso muito eficiente, como aponta Antônia. “Você pode, por exemplo, contar uma história de um personagem que queria criar algo único e original, mas acabou copiando o trabalho de outra pessoa e teve de lidar com as consequências disso”, sugere. “Além disso, aulas que falam sobre criatividade e estimulam a originalidade nas produções também podem ser bem efetivas”, recomenda.
A provocação de empatia, mexendo com os sentimentos, por meio da suposição de situações é outro meio. “Questionar como as crianças se sentiriam se um colega de outra sala apenas trocasse o seu nome e apresentasse seu texto ou desenho dizendo que era dele é um exemplo”, sugere. Já para os adolescentes, a professora sugere trabalhar o tema de forma mais objetiva, com pesquisas sobre casos de plágio ou com textos e vídeos que falem sobre o assunto.
Os adultos podem ajudar nessa criação de consciência mostrando aos pequenos e aos jovens alguns exemplos positivos de respeito aos direitos autorais. “Incentive-os a checar fontes e dar créditos quando compartilham obras de outras pessoas e estimule o desenvolvimento do senso crítico para ajudá-los a discernir entre o que é original e o que é copiado. As aulas que falam sobre fake news também têm entre as atividades a pesquisa sobre mecanismos seguros para identificar fontes confiáveis”, diz a educadora. São assuntos que, sem querer, acabam convergindo.
Em tempos de inteligência artificial, onde fica o direito autoral?
Não se fala de outra coisa. A inteligência artificial veio mesmo para ficar - e também se relaciona com a questão dos direitos autorais. Se você escreve em um programa, como o ChatGPT, que precisa de uma história divertida, curta e rápida para ninar para crianças com idades entre 6 e 8 anos... Voilá! O texto vem prontinho, em alguns segundos, conforme a encomenda. Legal, mas já parou para pensar em quem foi que inventou aquilo tudo? Não, não foi só o programa de computador. A IA é uma ferramenta, alimentada por informações que, em algum momento, foram criadas por alguém e disponibilizadas na rede, com diferentes objetivos. Rapidamente, o software caça e reúne as informações solicitadas, gerando a resposta para o seu problema ou pedido. Mas esse conteúdo que ele mistura para apresentar em um formato de história de ninar para crianças, divertida, curta e rápida, deriva do trabalho de outro ser humano - ou de vários.
Se já era muito simples usar a internet para fazer pesquisas, traduções, coletar conteúdos prontos e apenas reorganizá-los (a Wikipedia que o diga), dando uma nova roupagem, as ferramentas de IA criaram um atalho poderoso para criar muitos tipos de produções textuais. E imagine o impacto disso na escola. Se, antes, os professores já passavamm um sufoco checando trabalhos com potencial de serem meras cópias de conteúdos encontrados na internet, com o ChatGPT ficou ainda mais difícil verificar a autoria de redações, artigos, pesquisas...
Isso porque dá para pedir que a ferramenta deixe o texto com uma linguagem que se pareça mais com a de um trabalho escolar, desenvolvido por um aluno de uma série específica. Então, como os professores devem agir?
“Existem algumas técnicas para verificar se um texto foi produzido com ferramentas de IA, como análise de estilo e uso de ferramentas específicas de detecção, mas não acho que essa deveria ser a preocupação nesse momento”, alerta a professora Antonia. Para ela, a saída passa por uma educação para o ambiente virtual, imostrando as possibilidades positivas e responsáveis. “O uso ético que os alunos farão depende de outras vertentes da educação, que também podem e devem ser trabalhadas na escola. Quem cola ou copia, fará isso com a IA ou não”, avalia. “Por isso, é mais interessante propor atividades práticas, que envolvam a criação de conteúdo original e o uso consciente de recursos digitais, mostrando que essas ferramentas podem ser poderosas aliadas, mas devem ser usadas com responsabilidade”, completa.
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