
Clube do Pepezinho: um manifesto pela criatividade e pela autenticidade da infância
O spin-off da série Homem-Cão, de Dav Pilkey, abre possibilidades de criar, imaginar e contar histórias resgatando a liberdade criativa típica da criança
Em O Clube do Pepezinho - colaborações (Companhia das Letrinhas, 2023), de Dav Pilkey, o gato Pepezinho sugere que os sapinhos Beto e Gilberto transformem o quadrinho que criaram em uma paródia. Acontece que os dois “inventaram” um monstro que é a cópia de um famoso personagem: o Godzilla. Então, em vez de insistir no plágio, Pepezinho sugere que os dois transformem a história em uma paródia, que como ele mesmo explica é: “uma versão humorística da ideia de outra pessoa”.
Pepezinho e os sapinhos em O clube do Pepezinho - Colaborações
Segundo a especialista em Língua Portuguesa e mestre em Estudos do Texto e do Discurso pela pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Camila de Oliveira Groppo Lourenço Lima, podemos encontrar diferentes definições de paródia, que variam de acordo com os conceitos teóricos adotados. “Em síntese, a partir da perspectiva semiolinguística de análise do discurso, podemos dizer que paródias são textos essencialmente humorísticos nos quais o efeito de humor tem sua origem na coexistência de dois textos: o original, que permanece como referência, e o paródico, que, por meio de um movimento de imitação e de transformação, questiona e debocha do anterior.”
No caso da literatura, os contos de fadas também são motivos frequentes de paródias na literatura. Como as obras da Coleção Canoa, escritas por Janaina Tokitaka e ilustrados por Flávia Borges. Bela, a fera, e Fernão, o belo (Companhia das Letrinhas, 2023), Cinderela e o baile dela (Companhia das Letrinhas, 2023), O pedido da fada madrinha (Companhia das Letrinhas, 2023) e O pequeno sereio (Companhia das Letrinhas, 2023) trazem elementos pouco vistos nos contos de fadas, como princesas que não gostam muito de frufru, uma Cinderela que resolve tocar o próprio baile, uma fada madrinha cansada de resolver os problemas de todo mundo sem descanso e um sereio tímido. Além de terem o humor como elemento, os livros ajudam a desconstruir padrões que antes eram pouco questionados, oferecendo caminhos alternativos para as histórias e personagens com os quais os pequenos leitores possam se identificar ao longo da leitura.
A paródia tem cara de figura de linguagem moderninha, principalmente por sua forte presença nos meios digitais - Youtubers fazem paródias de clipes, filmes e propagandas, e muitas das obras que circulam online acabam se tornando memes por seu caráter humorístico. Mas a verdade é que a paródia é bem mais antiga do que parece. Suas origens remontam à Antiguidade Clássica, e o primeiro uso do termo paródia de que se tem registro é na Poética de Aristóteles. Tendo como significado etimológico “canto paralelo”, na Grécia Antiga, a paródia aparecia no teatro como forma de ironizar temáticas sociais e políticas da época, sendo bastante utilizada por dramaturgos como Aristófanes. Ao longo do tempo, a paródia foi conquistando espaço em outras manifestações artísticas, como no cinema, na música e até mesmo nas artes plásticas.
No que diz respeito à literatura, a paródia frequentemente é citada como um exemplo de intertextualidade, conceito referente ao diálogo estabelecido entre diferentes textos - ou seja, a maneira como as obras conversam entre si, fazendo referências uma à outra e, assim, estabelecendo conexões. Muitas vezes, esse diálogo que a intertextualidade propõe não está explícito na estrutura do texto; por isso, a produção de sentido depende diretamente do leitor. Nesse caso, cabe a ele precisa mobilizar conhecimentos prévios para que o texto adquira o significado pretendido.
Como a paródia depende diretamente de uma obra original para existir, ela é muitas vezes vista como um gênero literário de menor importância - ou de segunda categoria - como uma simples imitação cômica. Esse pensamento acaba subestimando o potencial que as paródias têm de trazer novos pontos de vista, promover reflexões sobre diversos assuntos e, especialmente, criar novas camadas de significado.
Sendo a literatura um sistema que influencia a sociedade ao mesmo tempo em que é influenciada por ela, é esperado que as histórias incorporem formas de pensar e valores propagados historicamente. Só que, conforme as sociedades evoluem, se sobressai a necessidade de rever esses valores e questionar como lidamos, coletivamente, com determinados temas. Dessa forma, as paródias surgem como obras que, por meio da subversão, trazem novas perspectivas e instigam o leitor a pensar criticamente. Em relação a esse aspecto, Camila ressalta o papel de tipo de texto em relação aos contos de fadas: “muitas paródias propõem, indiretamente, uma reflexão a respeito de alguns aspectos da sociedade, como, por exemplo, comportamentos e hábitos considerados constituintes do universo feminino, como vemos em muitas paródias de contos de fadas que ressignificam a figura da mulher. Por meio desse exemplo, é possível compreender como muitas paródias, sobretudo as que têm, como público-alvo, crianças, são responsáveis por fomentar uma visão crítica a respeito da realidade que nos circunda", explica.
Para Camila, que também é professora, a capacidade das paródias de promover reflexões e questionamentos por meio do humor, além de atrair a atenção dos leitores, também traz muitos benefícios no que diz respeito à formação leitora. "Não é à toa que eu dediquei uma parte das minhas pesquisas acadêmicas a paródias de contos de fadas. Considerando que a paródia está a serviço do questionamento, da crítica, da reflexão, da contestação, promovendo tudo isso por um viés de humor, que, muitas vezes, desperta o interesse de diferentes leitores, trata-se de um importante recurso no desenvolvimento de competências leitoras". Ela ressalta ainda que o contato com esse tipo de texto oferece a possibilidade de ampliação de repertório cultural das crianças, outro ingrediente essencial na formação leitora.
Sendo tanto a paródia quanto a paráfrase duas figuras de linguagem que promovem intertextualidade e possuem textos originais em que se baseiam, é comum que exista uma certa confusão para defini-las. Segundo Camila, a paródia e a paráfrase se distinguem na medida em que a paródia é um meio de contestação das ideias do texto original, enquanto a paráfrase é uma confirmação dessas ideias. “Falar de paródia é falar de intertextualidade das diferenças, ao passo que falar de paráfrase é falar de intertextualidade das semelhanças. A paródia, então, é uma forma de contestar ou ridicularizar outros textos. Nela, há um choque de interpretação: a voz do texto original é retomada para transformar seu sentido e levar o leitor a uma reflexão crítica. Na paráfrase, por sua vez, as ideias do texto original são confirmadas no novo texto, em que sentidos são reafirmados" explica. Dessa forma, enquanto a paródia consiste na releitura cômica de um texto, subvertendo seu significado, a paráfrase traz as mesmas ideias do texto original, mas usando palavras diferentes.
Confira uma seleção de livros do nosso catálogo que trabalham com esse gênero textual, e que podem ser apresentados a leitores de diversas faixas etárias:
Então, você pensa que conhece a história da Chapeuzinho Vermelho? Às vezes, as coisas não são como parecem ser. Quando o Lobo escreve à Chapeuzinho Vermelho pedindo que o ensine a ser bom, ela fica eufórica. Mas, assim que o Lobo, agora bonzinho, torna-se uma celebridade, a menina ciumenta, decide fazer alguma coisa. Uma variedade de papéis e de novas texturas complementa esta divertida história.
Nesta paródia obviamente inspirada em três contos clássicos, conhecemos Branco, Belo e Cinderelo, três príncipes que não aguentavam mais suas vidas pacatas no reino. O trabalho que sobrava para eles era sempre o mais entediante: costurar, cozinhar e cuidar do jardim, enquanto suas esposas tomavam grandes decisões sobre o futuro de seus impérios - soa familiar, só que ao contrário? Mas até parece que, de tanto reclamarem, certo dia seus resmungos foram ouvidos, e quem apareceu para trazer um pouco de aventura à vida dos príncipes foi um enorme e assustador dragão. Essa era a única chance que os três teriam de viver um pouco de emoção e - mais do que isso: ganhar o protagonismo com que sempre sonharam.
Uma menina que usa um chapéu vermelho (ela mesma!) precisa visitar a sua vovozinha para levar uma cesta de comida, sendo proibida pela mãe de entrar na floresta por causa do Lobo mau... Mas Chapeuzinho Redondo não é exatamente a vítima dócil e indefesa que corre o risco de ser devorada. Ela é até um pouco atrevida. Já a Vovó é moderna e jovem. Será que o lobo, que não é tão feroz e malvado quanto se imagina, vai se dar bem neste divertido reconto?
São atualmente oito títulos que trazem paródias de livros clássicos da literatura infantil, como A Branca de Neve. João e Maria, Os três porquinhos, João e o pé de feijão e A Bela Adormecida. Uma ótima opção para rir muito com as crianças e apresentá-las a leituras interativas, já que em alguns livros é o leitor que pode escolher os rumos da história.
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