Além do "eu te amo": como as crianças percebem o amor no dia a dia?

03/06/2024

Crescer sentindo-se amada faz toda a diferença na vida e no desenvolvimento de uma criança. Afinal, o amor traz conforto, segurança, coragem e traz a confiança de que, ainda que situações difíceis aconteçam – e elas vão acontecer - vai ter sempre alguém para segurar as pontas, para acolher, para abraçar.

Mas, para se sentir amada, uma criança precisa muito mais do que ouvir reiterada e repetidamente “eu te amo”. O amor tampouco tem a ver com grandes sacrifícios ou com o esforço de preencher a vida com presentes e experiências. Ouvir “eu te amo” é gostoso, mas mais importante do que isso é saber que se é amado incondicionalmente e ter a tranquilidade de poder descansar nesse amor - sem precisar lutar para marecê-lo ou ter medo de perdê-lo. Por isso, é importante que as crianças aprendam a identificar no dia a dia como as pessoas expressam amor e como elas mesmas são amadas. 

A mamãe do pintinho
Em "A mamãe do pintinho", uma forma inusitada de amor aparece, quando a gata, antipática, sente brotar um sentimento diferente pelo pintinho

A psicóloga e psicanalista Elisa Motta Iungano, da Entrelaces Psicologia (SP), explica que bem antes de compreender palavras, as crianças entendem o amor com o corpo, que é a linguagem delas ao nascer. O bebê, aponta ela, entende o colo e a segurança afetiva como amor. “É aquela sensação de ser enxergado, de ser ouvido”, diz a especialista. “É chorar e entender que alguém vai chegar, que alguém vai entender que ele está com fome”, exemplifica. Para ela, "o amor tem um pouco a ver, nesse começo, com adivinhar os sentimentos”, compara. 

LEIA MAIS: Saudade na infância: como ajudar as crianças a lidar?

Só conforme a criança vai crescendo e vai sendo “inundada” de palavras é que dizer e ouvir “eu te amo” ganha importância, porque ela passa a entender o que significa – e é bonito. Ainda assim, lembra a psicóloga, são palavras indissociáveis do gesto. “Quando uma criança ouve ‘eu te amo’, isso vem com um beijo, com um carinho, com um abraço e com uma sensação de segurança. Ela, então, entende que aquilo é amor”, explica. 

Ilustração do livro Mãos

Na palma da mão: o menino Orion, protagonista do livro Mãos (Companhia das Letrinhas, 2024)

No livro Mãos (Companhia das Letrinhas, 2024), o menino Orion escolhe as mãos de seus dois pais, Pedro e Paulo, para um trabalho da escola. "As mãos dos meus pais, especialistas em produzir carinho, seriam minha inspiração!", narra no livro. Só que, mesmo animado para fazer sua apresentação, uma fala preconceituosa quase o desencorajou... Felizmente, as mãos de sua professora o acolheram e ele sentiu seu brilho voltar. Em uma narrativa sensível, o livro ilustra o poder das mãos - e dos gestos - de fazer chorar, mas também de amar e acolher.

Além de se manisfestar nos gestos, o amor continua aparecendo nas atitudes e nos hábitos e cuidados. O livro Lelê é pequenininha (Brinque-Book, 2023), de Rafaela Deiab e Tieza Tissi, por exemplo, mostra que a rotina da menina Lelê é repleta de afeto. O cotidiano dela tem brincadeiras com os amigos, passeio com o papai, pastel e caldo de cana com a mamãe e o caminho da escola na companhia da vovó. Pelas páginas do livro, o leitor acompanha as sensações e emoções, mesmo nos menores e mais corriqueiros gestos, que ilustram como o amor se faz presente no dia a dia.

 Lelê é pequenininha
Lelê é pequenininha (Brinque-Book) ilustra como a companhia e os pequenos gestos podem manifestar amor

A troca de carinhos na hora de dormir também tem tudo para ser um momento para desmonstrar à criança como ela é amada. Há muito amor quando, mesmo cansados, os pais colocam os pequenos em uma cama quentinha, leem uma história - que pode tanto ser uma nova quanto aquela que será lida pela milésima vez. Então, eles a cobrem, abraçam, beijam... Que o digam os coelhinhos que tentam fazer o bebê dormir em Um belo ursinho, um baita livro e um bom cobertor (Brinque-Book, 2024), de Lou Peacock e Ged Adamson. Já em Se eu tivesse asas (Brinque-Book, 2022), Guilherme Karsten recorre à hora de dormir para sonhar muito, com um misto de fantasias e memórias afetivas marcantes. Depois de tantas aventures, o personagem ainda descobre que não há nada como saber que há um ninho seguro para voltar. É ou não é amor?

Um belo ursinho, um baita livro e um bom cobertor
Um belo ursinho, um baita livro e um bom cobertor (Brinque-Book)
Se eu tivesse asas (Brinque-Book)
Se eu tivesse asas (Brinque-Book)

Uma criança também sente o amor quando alguém traduz o que nem ela sabe que precisa. “Sabe quando bate o sono e a criança começa a ficar manhosa, começa a chorar mais, a dar um pouco mais de trabalho? Alguém diz que ela está com sono, o que ela nega até o fim", diz a psicóloga Elisa. Lembrou de algo parecido por aí? "Em algum canto, ess criança sabe que precisa mesmo é de alguém que a leve para a cama ou para um ambiente calmo e a coloque para descansar”, continua. Isso também é se sentir amado, é saber que alguém está atento às suas necessidades, mesmo que nem você entenda direito quais são. 

Há vários outros exemplos, comuns em qualquer família. Como quando a criança está triste ou frustrada e recebe um abraço ou se manchuca, sendo "curada" pelo beijinho da mamãe. Como quando você prepara aquele prato que seu filho ama para o jantar e sabe que ele vai abrir aquele sorrisão. Como quando você programa um passeio em algum lugar que ele adora ou quando você ouve uma música e lembra que cantava essa mesma canção para ele, desde bebezinho, na hora de dormir. Gostar de estar junto, mesmo em momentos que não parecem nada especiais, como o trânsito na volta da escola ou a passada rápida no supermercado.

Amar: o simples desfrutar da companhia do outro

um mar de amor

"Às vezes, Urso e Pinguim ficavam acordados até tarde. Então compartilhavam seus sonhos e pensamentos mais profundos." Em Um mar de amor (Companhia das Letrinhas, 2024), conhecemos a história de um pinguim que se apaixona por um urso. Apesar de saber que os dois eram muitos diferentes, o pinguim sabia que o "amor a gente sente por dentro, como uma tempestade que percorre todo o nosso corpo. A barriga parece revirar e os dedos dos pés começam a formigar". O urso, porém, só se dá conta de que o sentimento é recíproco na convivência do dia a dia. Foi só lado a lado com o pinguim, compartilhando momentos aparentemente banais, que ele percebeu como a presença do pinguim era essencial em sua vida. 

Aproveitar a companhia e a presença do outro é uma parte importante do amor - e as crianças também percebem isso. Ah, e presença não é só estar de corpo presente, não. Em um mundo com tantas tarefas e distrações, entregar sua atenção plena para uma criança é uma forma importante e intensa de amá-la. E ela percebe a diferença. “Às vezes, o adulto olha a tela enquanto conversa, mas as crianças são espertas e muito sensíveis. Desde que nascem, sabem quando recebem atenção integral”, explica a psicóloga. “Sabemos que não é possível se entregar 100% para a criança o tempo inteiro, mas se é algo consistente, isso conta muito”, alerta Elisa.

LEIA MAIS: Amizade não tem idade: convivência entre gerações pode ter benefícios - de mão dupla!

Amar é responsabilidade

Amar uma criança ou mesmo dizer que ama pode ser bom, mas é preciso lembrar que traz consigo uma grande responsabilidade. Em algumas famílias, o “eu te amo” pode vir acompanhado de certa violência, o que é perigoso. “Algumas crianças vão dizer que aprenderam que amor significa ‘dar limites’ ou que ‘os pais batem e castigam porque amam e precisam ensiná-las’. Provavelmente, esses pais também aprenderam assim com os pais deles”, pontua a psicanalista. Ela ressalta que ensinar limites é, sim, uma forma de amar, mas não precisa ter um contorno de violência- os limites podem, sim, ser modulados com carinho e respeito. Segundo ela, não há uma definição absoluta de amor, mas o sentimento vai sendo aprendido no contexto em que é apresentado – o que pode ser bom ou ruim. Se uma criança associa amor a violência ou se cresce em um ambiente em que só é amada e reconhecida quando é obediente e deixa de lado as próprias vontades, pode ser que ela procure por esse tipo de amor na vida adulta.

E isso vale também para o amor que ela observa nas relações ao seu redor. Da mesma forma como a criança percebe se suas necessidades e vontades são atendidas com afeto, ela nota como os pais se relacionam: se são gentis um com o outro, se são companheiros, se dão risada juntos, se realmente olham um para o outro ou se apenas respondem como monossílabos sem despregar os olhos do celular. Observar as interações entre outras pessoas também é uma forma de construir esse repertório sobre o amor - e conhecer suas várias linguagens possíveis.

Aquilo que se entende por amor e as diferentes formas de demonstrá-lo é algo que seu filho vai levar para a vida. E que vai ajudar a moldar as relações em que ele estiver.

LEIA MAIS: Amor paterno: como criar memórias de pai para filho em 7 dicas e 3 livros

Amor por todos os lados

Embora o amor dos pais e cuidadores principais seja fundamental para uma criança, é importante lembrar que esse sentimento pode vir de diversas outras formas, que os pequenos vão conhecendo, conforme o convívio social vai se ampliando. Tem o amor dos irmãos, dos avós, dos amigos, dos professores – e até do bichinho de estimação, por que, não?

“Gosto de pensar que a criança é como um girassol que vai buscando a luz”, diz Elisa. “Às vezes, ela não conta com pais que ofereçam um apego seguro, por diversos motivos. Ela não tem um vínculo tão forte nesta relação específica, mas, se tiver, em algum outro lugar, ela encontra”, explica.

“A criança precisa de amor e é constituída por ele. Então, vai procurando por onde for. Nem sempre é só a mãe ou o pai que exercem essa função”, Elisa Motta Iungano

Em O quintal das irmãs (Pequena Zahar, 2024), de Waldete Tristão, duas meninas crescem e constroem um mundo mágico, repleto de afetos, baseados na intimidade e na convivência entre elas, com muita imaginação envolvida. Laila e Jasmim (Escarlate, 2024), de Guilherme Semionato, traz o amor envolvido na construção de uma amizade, entre meninas que têm muito em comum, mas também são muito diferentes. Ambas precisam aprender a cultivar e a adaptar a relação, ainda que nem sempre fiquem perto uma da outra. 

O quintal das irmãs
O quintal das irmãs (Pequena Zahar)
Laila e Jasmim (Escarlate)
Laila e Jasmim (Escarlate)

O amor também pode vir de lugares inesperados, como em A mamãe do pintinho (Companhia das Letrinhas, 2024), de Heena Baek, em que uma gata antipática cria e nutre um sentimento bonito de afeto em relação a um pintinho. Muitas vezes, o amor nos surpreende e nos transforma. 

A mamãe do pintinho
A mamãe do pintinho (Companhia das Letrinhas)

O amor de verdade simplesmente existe e transborda entre as pessoas, em vários formatos. Palavras, gestos e afetos são como veículos para este sentimento, que é tão difícil de definir, quanto imprescindível para todos nós. 

LEIA MAIS: Irmãos: como ajudá-los a melhorar a relação sem ter medo de conflito

 

Compartilhe:

Veja também

Voltar ao blog