O Sr. Pereira anda sempre sobre duas rodas, pedalando para lugar nenhum. Ele sempre se encontra com um garotinho, que está aprendendo a dar suas primeiras pedaladas. Será que o Sr. Pereira se lembra das primeiras vezes que se equilibrou em uma bicicleta quando vê aquele menino e bate palmas? Será que o menino acredita que, depois de finalmente aprender, vai poder ser como o Sr. Pereira e pedalar por muitos e muitos anos, até ficar bem velhinho? Cada um está sobre suas rodinhas, cada um de um lado, na jornada da vida. Mas essas linhas se cruzam mais do que se magina. Pereira, um homem de 87 anos, que usa boné e vive sobre sua “magrela”, é um dos personagens do livro Manuel, Rita, Flor... (Companhia das Letrinhas, 2024). Nele, Renata Bueno conta histórias deste e de outros personagens - fictícias e reais, misturando velhice, história, infância.
Histórias de infância e velhice, em Manuel, Rita, Flor...
O match entre duas gerações
Embora os idosos e as crianças estejam nos dois extremos opostos da vida, eles têm muito em comum. E mesmo suas diferenças podem ser complementares: enquanto um pode oferecer todo o tempo do mundo, porque, provavelmente já correu demais nessa vida, outro tem disposição e alegria de viver suficientes para dar um belo sopro de fôlego e ânimo para quem pode estar cansado ou precisando encontrar mais motivos para sorrir. Até os pensamentos se parecem!
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O Serviço Social do Comércio, mais conhecido como Sesc, ofereceu algumas edições de um projeto batizado de Era uma vez... atividades intergeracionais, que tinha o objetivo de juntar grupos de idosos e crianças, estimulando essa convivência e a comunicação, por meio - veja só! - da literatura infantil. Depois de alguns encontros, com leitura, conversa e atividades, um estudo entrevistou os participantes, para entender os efeitos da convivência e como cada grupo enxergava a si mesmo e aos outros. Uma das perguntas, feitas tanto para as crianças como para os idosos, foi: “O que é ser criança?”.
“É se divertir com os amigos” – L, 12 anos
“É ser alegre e saber despertar para o futuro” – V – 76 anos
“Quando perguntados sobre o que é ser criança, os itens que prevaleceram para os pequenos foram iguais aos dos idosos, apenas em ordem diferente: brincar, fazer amigos e, logo em seguida, ser alegre e feliz. Já os idosos, referem-se primeiro a ser alegre e feliz e, depois, a fazer amigos e brincar”, diz o estudo sobre o projeto. “A imagem da criança está relacionada, tanto para as crianças como para os idosos, à amizade, brincadeiras, felicidade e alegria”, diz o relatório.
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Os participantes também deram sua visão sobre o que é ser idoso e a maioria das respostas, mais uma vez, foi convergente, sempre em torno do conhecimento e da experiência.
“Idoso é uma criatura que já viveu muito e tem muito conhecimento e experiência” – A, 70 anos.
“É ter muito conhecimento” – R, 10 anos, masculino.
A ciência confirma: a convivência faz bem para idosos e crianças
Não que o amor e as trocas afetivas precisem ter o aval da ciência para sabermos o quanto são indispensáveis para nós, humanos. Basta sentir. Ainda assim, é importante dizer que existem evidências já estudadas sobre alguns dos benefícios específicos dos chamados projetos intergeracionais, ou seja, projetos que estímulam a convivência entre pessoas de diferentes faixas etárias. Um estudo de caso, publicado no periódico científico Early Child Education Journal, em 2023, analisou os resultados de um pequeno projeto intergeracional entre crianças de uma creche e residentes de uma casa para pacientes idosos com demência, na Inglaterra. Os cientistas avaliaram a qualidade e a profundidade das interações durante a visita semanal das crianças ao lar de idosos e, depois, fizeram algumas entrevistas com as pessoas envolvidas. Eles também somaram ao trabalho algumas revisões de estudos anteriores. Algumas das vantagens encontradas foram:
Para os idosos
- Aumento da sensação de bem-estar
- Aumento do interesse em interações sociais e engajamento
- Melhor senso se propósito, confiança, autoestima e autoaceitação
- Benefícios cognitivos, como o estímulo à memória
Para as crianças
- Melhora do pensamento negative sobre o envelhecimento
- Aumento da consciência sobre questões relacionadas ao envelhecimento, como a demência
- Mais facilidade de fazer amizades
- Mais empatia
- Melhora nas habilidades de comunicação
- Melhora na autoestima
Pelo contato com crianças, os idosos costumam ficar mais ativos, um benefício que se reflete na saúde física e mental. “As diferentes gerações podem conviver e, geralmente, os relatos clínicos, sociais, são relatos de alegria, são relatos de regozijo, uma geração gosta e ajuda a outra”, afirma o psicólogo Guilherme Falcão, especialista em gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG). “Idosos que, por exemplo, ficam sentados em uma poltrona o dia inteiro, assistindo televisão... Quando estão com crianças, com os netos em casa, ficam mais em movimento, vão para a cozinha, vão ao parque, brincam. A convivência faz muita diferença”, aponta o especialista. Para as crianças, os idosos são adultos que estão ali, contando histórias, se divertindo, com atenção plena para elas – diferente, muitas vezes, dos pais, que passam o dia no trabalho ou ocupados com as tarefas domésticas, entre outras funções.
Há outros livros para crianças que mostram o quão inspiradoras podem ser essas trocas. O jardim da minha Baba (Pequena Zahar, 2024), de Jordan Scott e Sydney Smith, é uma celebração comovente da relação de ternura entre um neto e sua avó, em fases diferentes da vida. Primeiro, a avó cuida dele, conta histórias e o ensina muitos segredos da vida. Mais tarde, o jogo se inverte e é a avó quem vai morar com o neto, que passa a ajudar nos cuidados de que ela precisa.
Em Quem foi?! (Brinque-Book, 2024), Ana Palmero Cáceres e Alejandra Acosta trazem um neto muito travesso. No fim, é a avó quem prega uma peça nele, tentando ensinar uma lição. Já em As Aventuras de Dorinha (Companhia das Letrinhas, 2023), com muita sensibilidade, Cláudio Thebas mostra, com poesia, a história de uma senhora que andava um pouco só e desanimada... Até decidir sair de casa, de sua cidade, e conhecer outras vivências, outras pessoas, outras idades... E receber muitas cartas, que mudam sua forma de enxergar a vida.
Falta convivência?
Se os idosos e as crianças têm tanto em comum, por que, afinal, vivem tão separados? Alguns netos e avós têm o privilégio de morarem perto, juntos ou de se encontrarem bastante, ainda que alguma distância os separe. Mas isso, é claro, não é um arranjo que funciona para todas as famílias. Às vezes, até moram juntos ou perto, mas, por diferentes razões a convivência não funciona tão bem. É preciso lembrar que cada indivíduo tem suas características e cada família tem uma história ou um contexto.
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Ainda que não seja possível conviver de forma tão constante com os avós, é importante que pais e professores promovam momentos de contato entre gerações. “Eu tenho estimulado que lares de criança e lares de idosos, pelo menos uma vez por mês, possam criar esses momentos de interação”, afirma o psicólogo da SBGG. “Essas instituições precisam perceber a importância disso e criar meios de levar à prática, com frequência. Os dois grupos com certeza saem ganhando”, avalia o especialista.
É claro que nem tudo é um mar de rosas e os conflitos e dificuldades também existem nessas interações. O próprio estudo britânico que mencionamos antes mostrou alguns desses obstáculos. Como a observação foi feita em um lar de idosos com demência, alguns deles tinham características comportamentais específicas, que eram desafiadoras e exigiam a participação de outro adulto, facilitador. Em outras situações, o comportamento das crianças também não ajudava. Quando elas não se sentiam preparadas, por algum contexto, elas poderiam ser negativamente impactadas pela convivência. O jeito, em cada caso, era aprender com as dificuldades e tentar proporcionar um tempo de interação com resultados mais positivos das próximas vezes. As atividades que funcionavam melhor, segundo os pesquisadores, eram as que envolviam música, histórias ou propostas de brincadeiras que envolviam solucionar problemas em conjunto, onde tanto os mais jovens, como os mais velhos colaboravam para encontrar a resposta.
Vale lembrar que desafios e problemas existem em qualquer tipo de relacionamento, seja qual for a idade e o tipo de ligação. O importante é tentar superar e enxergar que amigo não olha tamanho, o número de velas em cima do bolo de aniversário e nem a quantidade de fios brancos na cabeça. Amigo que é amigo gosta mesmo é de estar junto, de criar memórias e de oferecer o que tem de melhor para o outro.
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