Na correria do dia a dia, nem sempre estamos atentos à sua passagem - quem tem criança sabe que os dias são longos, mas os anos voam! Mas algumas circunstâncias, quase sempre súbitas, escancaram o escorrer do tempo, trazendo com ele fins de ciclos, mudanças de papeis, novas etapas. O envelhecimento de nossos pais e avós é uma dessas circunstâncias.
A cabeça do avô ia já tão longe que parecia próxima de levantar voo em 'O astronauta' (Pequena Zahar, 2024)
Em algumas famílias, os avós são as pessoas mais idosas com quem as crianças convivem. Muitos são ativos, trabalham, assumem os afazeres de casa, têm hobbies, amigos, viajam, passeiam, participam da educação e do cuidado com os netos. Só que algumas vezes, com o avançar da idade, essa disposição para tantas atividades vai se reduzindo, assim como a capacidade física e mental. De repente, uma simples queda pode acabar em uma fratura séria, já que ossos não são mais tão resistentes. E lembrar de informações simples, como o nome de um velho conhecido ou de um livro, pode gerar muita angústia à medida em que a memória vai falhando... Em casos ainda mais extremos, os avós se esquecem de coisas importantes e nem lembram mais dos filhos e dos netos, como quando há um diagnóstico de Alzheimer. Essas questões de perda de memória podem ainda acarretar em outras questões de saúde mental, como oscilações de humor, ansiedade e depressão.
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Em O astronauta (Pequena Zahar, 2024), de Carol Fedatto e Amma, esse apagamento da memória é retratado de forma comovente. Na obra, assistimos ao envelhecimento do avô, que "sempre teve os pés no chão", mas agora parece estar com a cabeça nas nuvens, flutuando à deriva, no vazio deixado pelas lembranças obliteradas. Até os traços do rosto dele vão se apagando, como uma metáfora da identidade que se esvai quando não consegue mais se ancorar nos pensamentos e memórias que a constituem.
O avô Cacá começa a mudar quando sua lembranças ficam cada vez mais distantes Bento Vento Tempo (Companhia das Letrinhas, 2024)
A perseguição das lembranças também está no centro de Bento Vento Tempo (Companhia das Letrinhas, 2024). O menino Bento começa a reparar nas mudanças de seu vô Cacá. Antes, ele trabalhava, era inquieto, não parava. Agora, é calado, quietinho e passa a maior parte do tempo sentado em uma cadeira de balanço. Mas o neto tem uma ideia: ele decide levar vô Cacá para passear na feira da cidade, em uma bicicleta amarela que estava encostada em casa. Então, uma grande jornada tem início. A delicadíssima narrativa em cordel de Stênio Gardel ganha ainda mais potência com as ilustrações de Nelson Cruz. Assim, Bento e seu avô se conectam e se encontram novamente. O tempo pode passar, mas as memórias e a conexão do amor seguem firmes – ainda que em algum lugar bem escondido.
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Saúde, memória e (novas) perspectivas para o envelhecimento
Hoje, os avós têm vivido mais e melhor. De acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), a expectativa de vida aumentou 16 anos, nos últimos 45 anos. No Brasil, a população idosa já é de quase 30 milhões de pessoas. Por aqui, são consideradas idosas pessoas a partir de 60 anos, embora uma proposta de lei pretenda adiar esse marco para 65. Se há algumas décadas uma pessoa de 60 anos já pareceria muito frágil e seria vista como alguém "no fim da vida", hoje o cenário é bem diferente. O aumento da longevidade e a melhora na saúde da população mundial prolongaram a meia idade e mudaram oa perfis etários. É como se os 60 fossem os novos 40. Um estudo realizado pelo International Institute for Applied Systems Analysis (IIASA), na Áustria, em parceria com a Universidade Story Brook, nos Estados Unidos, mostrou que a velhice, no mundo, tem sido adiada para depois dos 70.
Por outro lado, as pessoas estão tendo filhos mais tarde, o que implica no surgimento da geração que ficou conhecida como “sanduíche”, composta por pessoas que cuidam dos filhos e dos pais ao mesmo tempo. “Este termo, geração sanduíche, é muito relevante hoje e afeta mais as mulheres porque, culturalmente, elas ainda são vistas como as principais cuidadoras”, explica a psicóloga Desirée Cassado, professora na The School of Life. “As mulheres da geração sanduíche, muitas vezes, carregam o peso duplo de cuidar dos filhos, dos pais idosos e ainda tentar manter uma carreira profissional. Esse duplo papel pode ser extremamente estressante e desgastante, por isso é essencial reconhecer e valorizar esse esforço, além de buscar redes de apoio para aliviar a sobrecarga”, afirma.
Conforme a idade avança e estes avós passam a precisar de cuidados, o cenário fica devastador para muitos filhos. Além de terem de assistir os pais, antes tão fortes, ativos, figuras que os criaram e os levaram até ali, se transformarem em seres frágeis e dependentes, ainda precisam enfrentar a realidade e reorganizar a vida para fornecer a eles a assistência necessária. E as crianças, muitas vezes são espectadoras desse processo. Para elas, essa nova dinâmica também pode ser muito confusa, mesmo que o processo tenha acontecido de maneira vagarosa. Cadê aquela vovó com quem eu ia passear na feira e me chamava para ajudá-la a preparar um bolo ou o almoço? Cadê aquele vovô que me colocava sobre os ombros e jogava bola comigo? Eles agora precisam de ajuda para realizar tarefas que me ajudaram a aprender, como comer e tomar banho? Então, eles não sabem mais quem eu sou? Eles esqueceram meu nome? Esqueceram de mim?
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O que está acontecendo com a vovó?
São muitas as dúvidas que rondam a cabeça, enquanto os pequenos tentam compreender o complexo – e bonito, se olharmos direitinho – ciclo da vida. Para Desirée, os pais e outros adultos envolvidos na vida daquela criança precisam conversar, além de mostrar, na prática, como a rotina vai se transformando e como os pequenos podem se sentir úteis no novo contexto. “É importante explicar com carinho que, assim como os avós cuidaram das crianças quando eram pequenas, agora é a vez de retribuir esse cuidado. Use comparações simples, como cuidar de uma plantinha que precisa de atenção para crescer saudável. Mostre que isso faz parte do ciclo da vida e que todos precisamos de ajuda em algum momento”, sugere.
Além de ser difícil entender o que aconteceu com aqueles avós, o fato de eles precisarem de mais cuidados, seja por alguma condição de saúde, física ou mental, também implica na divisão da atenção dos pais. Se antes, pais e mães estavam focados em cuidar apenas dos filhos, agora, esse tempo será repartido. Mais uma vez, a solução para ajudar os pequenos a compreenderem a situação complexa passa pelo diálogo. “Os pais devem conversar abertamente, explicando que o amor não mudou, mas que agora eles precisam dividir o tempo para cuidar de todos”, diz a psicóloga. “Envolver a criança em pequenas tarefas, como trazer um copo de água ou dar um abraço, pode ajudá-la a sentir-se parte do cuidado. E, claro, é crucial que os pais também cuidem de si mesmos, encontrando momentos para relaxar e recarregar as energias”, sugere.
No livro O jardim da minha Baba (Pequena Zahar, 2024), o poeta Jordan Scott traz exatamente essa mudança de contexto familiar, com uma história pessoal profunda, contada de uma maneira que faz muita gente se identificar. A obra narra a vida de um menino que visita sua avó todas as manhãs, enquanto ela cuidava dele. Eles colhiam ingredientes no jardim, cozinhavam juntos e tinham uma rotina que gerou toda uma memória afetiva. Mais tarde, a avó precisa se mudar para a casa dele e agora a situação se inverteu: o neto ajuda a cuidar dela, leva seu café da manhã e faz de tudo para retribuir pelo menos um pedacinho de todo o amor que recebeu e segue recebendo, de uma maneira diferente.
As situações que envolvem a saúde mental desses idosos pode ser ainda mais impactantes. Como é que um avô que colocava essa criança no centro de suas atenções, com mimos e carinhos, de repente, nem se lembra mais dela? Desirée orienta a conversar sobre tudo da forma mais simples e honesta possível. “Explique que, às vezes, o cérebro pode ficar ‘cansado’ e esquecer coisas, inclusive nomes e rostos. Diga que isso não muda o amor dos avós por elas. Atividades que reforcem as memórias, como olhar álbuns de fotos ou contar histórias, podem confortar”, afirma.
Depois dessa fase de declinío da memória e da capacidade mental, pode vir um momento ainda mais difícil, dependendo da situação: o final da vida. Mais uma vez, é necessário conversar com os pequenos, respondendo às dúvidas com amor e sinceridade. “Diga que, à medida que envelhecemos, nosso corpo muda e, às vezes, ficamos doentes. Use exemplos da natureza, como o ciclo das estações, para ilustrar que a vida tem seu tempo. Livros infantis que abordam esse tema podem ser uma grande ajuda para abrir a conversa”, recomenda a psicóloga. O processo é delicado, mas é importante falar da morte como uma parte natural da vida, usando exemplos que as crianças consigam entender. “Se possível, introduza o tema antes que aconteça, para que a criança tenha tempo de assimilar a ideia. No entanto, cada criança é única, e a abordagem deve ser feita com sensibilidade e respeito ao tempo dela”, reforça.
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Memórias que ficam - e que devem ser preservadas
Mesmo quando os avós já não têm mais tantas condições para brincar junto, rolar no chão e cuidar das crianças é possível criar memórias, que se fortalecem e vivem para sempre. “Contar histórias da família, ouvir músicas juntos, ou simplesmente estar presente pode fortalecer o vínculo. Essas atividades mostram que a presença e o amor não dependem de grandes ações, mas dos pequenos momentos compartilhados”, indica Desirée.
A especialista lembra ainda que, nestes cenários, sentir-se útil é uma maneira importante de as crianças serem inseridas na rotina e na “engrenagem” da família. “Peça ajuda com pequenas tarefas, como trazer um livro ou dar um abraço. Isso ajuda a criança a sentir que está contribuindo sem sobrecarregá-la. Sentir que é parte da equipe de cuidado é bom para o desenvolvimento emocional delas”, completa.
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