Se você tivesse uma máquina de dar marcha ré, de viajar no tempo, para que ponto da sua vida regressaria?
A pequena Liz, protagonista de Liz sem medo (Escarlate, 2024), quer voltar para sua vida de antes: quando sua mãe estava viva. Ainda criança, a menina se despede inesperadamente da mãe e da vida que conhecia. Ela dá adeus ao apartamento na cidade grande e se muda para a casa de uma avó que é quase uma estranha no meio do mato. É na imaginação e no autoconhecimento que Liz encontra recursos para lidar com tantas turbulências - uma fortaleza que ela compartilha com a autora, Martha Batalha, no livro que marca sua estreia na literatura infantojuvenil.
Martha Batalha no lançamento de Liz sem medo (Escarlate, 2024)
Ainda criança, Martha descobriu o poder de sentir e de encontrar respostas em si mesma. “Me conecto com a Liz e com a Lygia Bojunga, que foi uma autora que me ajudou a me entender, a me permitir ter sentimentos e a dar nome para eles”, conta em entrevista ao Blog Letrinhas. Jornalista de formação, Martha mora na Califórnia (EUA), nasceu em Recife, mas carrega o Rio de Janeiro, onde cresceu, como o seu lugar de inspiração para escrever. Seu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão (Companhia das Letras, 2016), foi um estrondoso sucesso. Ganhou uma adaptação para o cinema, com direção de Karim Aïnouz, e representou o Brasil concorrendo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2020. Martha também publicou Nunca houve um castelo (Companhia das Letras, 2018) e Chuva de papel (Companhia das Letras, 2023).
Liz sem medo surgiu pelo acaso do encontro entre a autora e a ilustradora Joana Penna, conhecida pela série Diário de Pilar. Em entrevista ao Blog Letrinhas, Martha fala sobre o nascimento deste livro, infância, finitude e sobre o que faz melhor: escrever.
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Confira a entrevista com Martha Batalha
Blog Letrinhas: Se você tivesse uma máquina de dar ré, para que ponto da vida voltaria e por quê?
Martha Batalha: Eu adoraria voltar um pouco para a minha infância, para o colégio Santa Marcelina (no Rio de Janeiro), para entender melhor quem eu era.
Você já escreveu que precisou resgatar a Martha criança para criar esse livro. O que ela tem em comum com a Liz?
Martha Batalha: A gente se esquece de como a infância é difícil. A gente ainda não sabe os limites das coisas. Há tanto que não sabemos. O que é uma escola? Como fazer amizades pela primeira vez? Como é ter um parente que fica doente? Você ainda está criando uma noção de mundo, os desafios são imensos.
No livro, eu pude ter de volta a minha voz de criança, e tentei responder àlgumas questões que eu tinha quando menina. A memória recente da infância dos meus filhos também me ajudou. Meu filho só falava de cocô, assim como o irmão da Liz, e era muito engraçado.
Os medos ainda permanecem, e também a coragem e a curiosidade. É algo que devemos ter a vida toda. As respostas, como disse a mãe da Liz para ela, estão na gente.
Quando criança, quais eram seus maiores medos?
Martha Batalha: Medo do desconhecido, daquilo que eu não podia explicar. Eu era uma menina sensível e introvertida, por isso escrevo um pouco sobre solidão também.
E hoje, como adulta, quais são seus medos?
Martha Batalha: Eu não diria medo, mas estou muito atenta para não viver uma vida sem sentido. E cada vez mais eu penso na disciplina e preparo que essa vida exige. E tem muito disso no livro. A avó fazendo meditação. A Liz entendendo e aprendendo a estar com os próprios sentimentos, mesmo os ruins. Não é, de modo algum, um livro religioso, mas um livro que toca na questão da espiritualidade através do autoconhecimento.
Esse encontro com a sua menina de antes te mudou hoje?
Martha Batalha: Sempre no início de um livro os personagens não estão definidos, e na medida em que escrevemos eles se revelam. A Liz é uma menina que quer muito entender o mundo, não só de ouvir falar, mas de experimentar e tirar as próprias conclusões. Num mundo cheio de ruído e informações, exercer o pensamento crítico é fundamental.
O livro começa com a perda da mãe da Liz. Você escreveu na sua newsletter que, ao completar 50 anos, "lembrou que agora há mais possibilidades de instantes relativos ao fim”. Como você se relaciona com a morte?
Martha Batalha: Quando eu era criança, achava que meus pais iam viver para sempre. A ideia de finitude para mim só chegou depois, quando minha filha mais velha nasceu. Quando eu fiz 50 anos, me veio de novo esse pensamento sobre a finitude que deu início a uma busca por espiritualidade. Até agora eu, como todo mundo, me preocupei em construir e manter uma vida. É tudo muito pragmático, como tem que ser mesmo. E deixei de lado a parte espiritual. Um pouco também porque fui criada católica e me decepcionei com a religião institucional. Mas venho sentindo cada vez mais a necessidade de alimentar essa parte em mim. Tenho estudado o budismo e por isso há muitos conceitos budistas no livro - como quando a avó da Liz diz que só respirar faz bem para você.
É importante dizer que Liz sem medo não é só sobre o luto. A perda da mãe é um mote para que a Liz descubra respostas em si mesma. É um livro sobre a vida, sobre como enfrentar as mudanças e atravessá-las.
E como surgiu a ideia de escrever para crianças?
Martha Batalha: O livro surgiu por muitos acasos. Joana é uma grande ilustradora e se mudou para Los Angeles. Quando você é imigrante, simplesmente poder falar o português com uma amiga é uma alegria. Começamos a conversar, nos encontrávamos para falar de tudo: casamento, morar fora, trabalho e foi daí que veio a ideia de fazermos o livro juntas. Na época, estava terminando Chuva de Papel, que é um livro com uma proposta totalmente diferente.
O nome da personagem veio muito rápido: eu sabia que ia ser Liz. E queria falar sobre como uma criança lida com os próprios medos. Mas não aprendendo com outra pessoa. Por ela mesma: olhando para os próprios sentimentos, dando nome. Para mim, isso é o mais importante desse livro. Mostrar como a Liz lida com o medo, um sentimento desegradável, mas que vai ficando mais fácil, quando ela mesma percebe que tem as respostas.
Martha Batalha e Joana Penna no lançamento de 'Liz sem medo'
Esta também é a primeira vez que uma história sua foi ilustrada. Como foi isso?
Martha Batalha: Eu a Joana criamos uma amizade muito forte e senti uma emoção muito grande em ver a personagem interpretada por ela. É vida em cima de vida. É uma história em cima de outra história. A Joana tem um traço muito cheio de afeto, tudo o que ela faz tem um carinho, uma energia. A primeira vez que vi as ilustrações, meus olhos se encheram d’água. Muitos dos pensamentos da Liz são abstratos - e a Joana soube captar e retratar essas ideias muito bem. Fizemos uma parceria muito feliz. Somos boas amigas e foi um projeto muito gostoso de criar, muito fluido.
Você trabalhou muito tempo como jornalista e seus livros para o público adulto exigem muita pesquisa. Como foi, de repente, escrever para crianças?
Martha Batalha: A escrita da ficção requer que você tenha uma voz de autor. No jornalismo, você só dá os fatos. Na ficção, eu tive que entender que existe a voz ficcional com a qual o leitor vai se conectar. Eu trouxe do jornalismo toda essa parte de organização da informação, de saber o que dizer, quando dizer, como dizer. Mas precisei desenvolver uma voz própria. É um exercício de desaprender um pouco o que você traz do jornalismo para poder contar.
O principal ajuste em Liz sem medo foi a linguagem. Quando eu comecei, notei que a história falava muito de um jeito adulto, não como uma criança falaria. Essa foi a maior mudança editorial em todo o processo. O livro passou por umas cinco edições da minha parte e depois mais umas três na editora. Eu estava muito preocupada em fazer um livro para as crianças gostarem, sem dar lição de moral.
Você percebe diferenças entre fazer literatura nos Estados Unidos e no Brasil?
Martha Batalha: A literatura americana tem parâmetros muito fixados. Se você vai escrever para uma faixa etária, tem que usar uma lista específica de vocabulário, por exemplo. Acho que existem vários tipos de escritor, como o que segue as regras de mercado e consegue produzir dentro disso. Mas eu não conseguiria escrever o que eu quero. Acho que seria até mais fácil escrever não-ficção em inglês. Mas meu desejo é contar as histórias do Brasil para o Brasil.
Escrever sobre o que eu sei é uma forma de me deixar conectada à minha cultura. Além disso, todo escritor precisa ter uma sintonia muito grande com o coletivo.
Meu primeiro livro, A vida invisível de Eurídice Gusmão, é de 2016. Ainda não existia esse movimento feminista forte - nem no Brasil nem nos Estados Unidos. Mas, de certa forma, eu escrevi um livro que muita gente precisava ler naquele momento. Existem vários canais de conhecimento, um deles é o racional, mas também tem a intuição, essa capacidade de captar um algo que parece estar ali, pairando.
(Texto: Naíma Saleh)